terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A AFORISTA


A sensação de ser um completo ponto irrelevante diante do oceano, do universo, que é A Aforista, me tira as palavras de como explicar em poucas linhas a beleza deste espetáculo perfeito. Graças ao óbvio e ao trivial, farei uso de palavras já ditas, mas que, aqui, devem ser lidas com hipérboles, aumentativos e superlativos.

Segundo nosso amado Google, aforismo é uma máxima ou sentença que, em poucas palavras, explicita regra ou princípio de alcance moral; apotegma, ditado. Um texto curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na escrita filosófica, geralmente relacionado a uma reflexão de natureza prática ou moral. Mas, simplificando, como nos diz o programa da peça, “Aforismo é o mais pretensioso gênero literário, que tenta, em uma ou duas linhas, dar conta da vida e do mundo. Fatal!”

Temos aqui um texto brilhante e, como ele mesmo diz, confuso, que nos toma todo o tempo da atenção para que não pecamos um só respiro do que é dito. Uma história que se passa toda na cabeça da personagem principal, uma pianista que se torna aforista. Ela, junto com um outro amigo pianista, vai visitar um terceiro amigo. Este considerado mais brilhante que os dois visitantes. Ficou confuso? Não fique. Pense. É assim a cabeça da gente. Pensamentos misturados, sobrepostos, mas que no final, chegamos a conclusões. Penso. Marcos Damaceno é o autor deste texto incrivelmente bem construído, trabalhado, pensado e escrito. 

No palco, o próprio autor criou uma cenografia costurada junto com o belíssimo figurino de Karen Brusttolin. Um mega vestido preto que, do pescoço para baixo, se estende para o fundo do palco, sobe pelo ciclorama pintado, dando a impressão do infinito, mas que é rastro de pensamento, é plantio de ideias. Sei lá. Além do perfeito casamento cenário-figurino, a fantástica luz de Beto Bruel é personagem do espetáculo. Refletores têm vida própria, o caminho da luz, o foco atingido, tudo é caprichado. Boquiaberto fiquei. 

A direção musical e composições é assinada por Gilson Fukushima e mostra o virtuosismo dos personagens da história, muito bem executados por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique. Tudo resultado de cabeças privilegiadas e de inteligência acima da média.

Marcos Damaceno nos apresenta uma direção nunca antes vista na história deste país. E não tô brincando. Eu nunca vi nada parecido. No programa – tive que pedir ajuda para escrever sobre a peça – ele nos diz que seu objetivo era valorizar a palavra, uma conversa múltipla: da aforista com as suas minhocas, das várias minhocas das várias cabeças pensantes com o público. Daí a certeira escolha por manter apenas cabeça e braços em movimento, quando todo resto se torna irrelevante. Muitas vezes observamos pessoas falando sozinhas nas ruas, porém movimentando os braços. O fato de andar ou estar parado pouco importa, a conversa da pessoa consigo mesma é o que faz deste espetáculo algo inédito e impactante. Justamente por ser uma direção inédita para minha visão de teatro, é que este espetáculo se torna impactante e brilhante.

Não menos importante, pelo contrário, a genialidade de Rosana Stavis. Qualquer adjetivo e elogio será pouco para descrever o que a atriz está nos presenteando com seu trabalho impecável. É impactante ver a força, perfeição, aproveitamento e comportamento cênico de Rosana. Se outras vezes disse que algo seria “uma aula”, aqui, em A Aforista, temos além da aula de teatro. É PhD, é pós-doutorado, é exemplo a ser seguido e aprendido. E mesmo dizendo isto tudo, é pouco pelo que nos é mostrado no palco do Teatro I do CCBB Rio. Cada vírgula, entonação, final de frase, velocidade e lentidão; cada espaçamento, pensamento, movimento é executado sem nenhuma dúvida, nenhuma outra alternativa. É isto. É exato, perfeito. Pronto. Penso. Escrever mais será chover no molhado. “Porque é para isso que servem os artistas, para dar ao mundo a dose de loucura que o mundo precisa”.

A Aforista é o espetáculo teatral mais impactante que já assisti. Tem tudo que eu gosto junto ao mesmo tempo: texto que faz pensar, chorar e rir; uma atriz excepcional, músicos de primeira, equipe técnica (cenário, luz e figurino) que mergulham na cabeça de uma direção exata e perfeita. Nada está fora do lugar. Não há nenhuma outra palavra além de “Perfeito”, que possa servir como adjetivo para A Aforista. Imperdível para os amantes do teatro. Necessário para jovens atores, diretores e dramaturgos. Ao grande público: aceite este presente que a Cia Stavis-Damaceno está dando para todos nós e corra para o teatro. Aplausos de pé de meia hora até as mãos ficarem em carne viva.