sábado, 26 de março de 2022

UMA PEÇA PARA FELLINI


Dedicar-se a homenagear uma expressão do cinema internacional, em um país que pouco valoriza a própria cultura, é fato raro, inusitado. Porém, guerreiros das artes conseguem fazer com os pés nas costas. Márcia do Valle, Cavi Borges, Joaquim Vicente e uma generosa e talentosa equipe técnica, uniram forças para nos presentear com “Uma Peça para Fellini”.

Cinema e teatro, juntos, no saguão do Espaço Net Rio, que já teve tantos nomes, mas continua sendo um dos melhores de Botafogo. Ali no espaço, a antiga livraria-sebo, foi ressignificada (só para usar a palavra chata do momento) em uma sala de exposição sobre Frederico Fellini, e também local de venda de livros de arte, CDs e DVDs cujo tema é cinema. Sob as bênçãos de Cavi Borges, nosso guerreiro locador da CaVídeo da Cobal do Humaitá, mergulhamos em um breve recorte da vida e da obra de Fellini. Tudo para abrilhantar mais ainda o que acontece no saguão durante a peça.

Pois ali, entre mesas, balcão de café, escadas, painéis e cartazes de filmes em exibição, é o local onde Márcia do Valle se apresenta com o ótimo texto de Joaquim Vicente. Com citações históricas, frases do homenageado, rica pesquisa didática, Joaquim mistura, na medida certa, humor, dramaturgia, história do cinema, fofocas de bastidores, citações e posicionamento político. É muito difícil equilibrar tais pratinhos rodando em varinhas que plástico e, com seu texto, Joaquim torna o malabarismo seguro e tranquilo para o brilho da atriz.

Na equipe técnica, o sempre ótimo Djalma Amaral ilumina o espaço com uma qualidade e técnica incríveis. Rebatedores e difusores, sem ofuscar a vista, auxiliam os refletores a dar cor e vida às cenas. Figurino de Flávio Souza cai como uma luva para Márcia. Leonardo Miranda cria uma trilha sonora típica do homenageado, sem deixar de modernizar e agradar aos ouvidos mais apurados. André Salles dá vida aos telões construídos com perfeição, assim como os bonecos de Miguel Velhinho. Patrícia Niedermeier assina a suave e elegante direção de movimento.

Cavi, co-criador, produtor e realizador nos presenteia com o melhor de Fellini, as cenas famosas, atrizes belíssimas e uma direção construída junto com Márcia do Valle, dominando todo o espaço, que é praticamente a extensão da sua casa.

E, não menos importante, pelo contrário, de extrema e imensa competência, temos Márcia do Valle, que mistura sua vida de atriz com a vida da personagem criada para contar causos pessoais e curiosidades de Fellini. Márcia está ótima. Segura, firma, consciente do texto, acerta todas as frases, não desperdiça um canto do saguão, se entrega de alma e corpo, cérebro e pele, para este papel desenhado e escrito como uma renda das mais altas costuras e linhas. Aplausos de pé para Márcia do Valle.

Como bem disse meu amigo que estava comigo assistindo: a peça não tem nenhum ajuste a ser feito. Está tudo na medida exata. 

É extremante agradável e contagiante ver um grupo de profissionais se entregar a um espetáculo, em um espaço alternativo, correndo contra todas a marés de desabono que nossa classe artística sofre diariamente por parte de quem deveria zelar pelo nosso trabalho e, principalmente, por aqueles que deveriam valorizar a cultura nacional. Pois Marcia, Cavi, Joaquim, Leo, Flavio, Djalma, Chapinha, Patrícia, André, Marina, Clóvis e todos os que estão na ficha técnica merecem nossa reverência e agradecimento. A peça é um primor, uma joia cinematográfica e teatral. Assistam!! Viva Fellini, Viva o Teatro!

quarta-feira, 9 de março de 2022

BORDADOS

Minha avó, parte de pai, sustentava marido e filhos com sua máquina de costura. Nunca soube a profissão do meu avô, mas lembro dele cambaleante pela casa e a vó tentando manter o que ainda era uma família. Deduzo que ela tenha sofrido os diabos com ele. Tenho cartas dele para uma antiga namorada. Nunca me atrevi a ler tudo, mas ali tinha um homem frágil e apaixonado. Minha avó? Calil. Meu avô? Aouila. Arabes de sangue. Libaneses. Esta ligação com o oriente médio me rendeu uma dupla cidadania.

Corta para uma Copa do Mundo qualquer. Na sala, as 4 mulheres ao redor da mesa, falavam sem parar durante todo o jogo, que era assistido, no mesmo ambiente, pelos filhos e maridos. Incapazes de solicitar silêncio, eles aumentavam o som da televisão. Elas? Aumentavam a voz! Ali as mulheres árabes, parentada do papai, dominavam a cena. Inesquecível.

Em cartaz no CCBB, está BORDADOS, um espetáculo baseado em entrevistas do documentário “Humanos” e “7 Bilhões de outros”, costurado por Ana Teixeira. Histórias de 6 mulheres, reunidas em torno de uma tarde de chá árabe de menta para conversar, desabafar, trocar confidências, ideias, crenças e afetos. Casamento, assédio, amor, filhos, liberdade, religião, tudo que se possa falar e, principalmente, ouvir, para que a vida se torne mais leve para elas. Temos o embate elegante entre modernidade e tradição, o amor arranjado e a paixão avassaladora. É tanta emoção no texto que daria mais que um parágrafo para contar a perfeição dos temas selecionados e compilado por Ana Teixeira.

No palco, uma sala árabe marcada por tapetes, objetos de chá, taças de chá, cadeiras e luminárias, é o necessário e elegante para a reunião das mulheres. O figurino é perfeito, leve e colorido. Figurino e cenário assinados por Ana Teixeira e Stephane Brodt. A iluminação permite saborear o chá daquele encontro amoroso é assinada por Renato Machado, sempre elegante e certeiro. A direção musical, também da dupla Ana e Stephane, traz referências certeiras. Aplausos para os números em que as atrizes cantam e tocam instrumentos.

As atrizes Jacym Castilho, Carmen Frenzel, Sandra Alencar, Flávia Lopes, Vanessa Dias e (não menos importante!) Vania Santos dão um show!! Um show!! Começando pela harmonia, entonação, aproveitamento do texto, expressão corporal, entrega, companheirismo, carisma e talento. Pra ficar horas aplaudindo de pé.

As diretoras Ana Teixeira e Stephane Brodt criaram um espetáculo delicado, forte, elegante e necessário. Segunda criação do “Ciclo das Mulheres”, projeto do Amok Teatro, abordando temas universais sob a ótica feminina, BORDADOS é um espetáculo feito à mão, com linha e agulha de pessoas, mulheres, que sabem bordar com fios nobres, as tradições, os olhares, o acolhimento. A cena das 6 mulheres amparando uma delas, em um abraço coletivo, é de chorar de lindo. A ideia da mais nova folheando o álbum, recordando os encontros daquelas reuniões, é um achado. Sem falar no tempo, nos silêncios, no uso do palco, na parceria com as mulheres da plateia que se sentam também ao redor da cena.

BORDADOS é um dos melhores espetáculos que eu já vi e que retrata o universo árabe, feminino. Como diz o programa: “Para que uma conversa aconteça é preciso o encontro, a presença aqui e agora”. Pois vá correndo ao CCBB-RJ assistir BORDADOS. Emociona-se com as histórias, perceba que tanto nas arábias quanto nas terras tupiniquins, as mulheres são o elo mais forte e importante na cadeia da vida. Aplausos emocionados e de pé. Viva BORDADOS! Viva o Amok Teatro!