quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

AS PESSOAS



A Síndrome da Cabana (ou Casulo) ficou evidente quando a pandemia deu uma trégua e os encontros voltaram com tudo. Só a ideia de ter que sair de casa depois de tanto tempo em isolamento social, enfrentar multidões, já dá taquicardia. E se eu não for?  

Porem, “dendicasa”, sozinho, com quem falar? Sozinho consigo mesmo! E a hora de desabafar sobre todos os assuntos, sem amarras, sem preocupação social, soltar o verbo, exorcizar, falar mal dos comportamentos humanos, das pessoas ao redor, do governo fascista, do vizinho reaça, falar, falar, falar.

Marcia Santos teve a ideia: uma mulher, sozinha, em casa, prestes a se mudar, rodeada de vida empacotada, propõe um desabafo consigo mesma - e com as caixas - sobre a vida, as pessoas, o país, o mundo, o comportamento. Marcia produziu um texto sólido, fluido, inteligente, cheio de referências, atual e bastante lúcido.

No palco, a cenografia de Daniel Leão compõe o espaço do apartamento em processo de mudança. Ao fundo, uma janela-quadro, com imagem de pessoas. Paulo Cesar Medeiros ilumina toda a ação com a perfeição de sempre. Wanderley Gomes assina o figurino. Marcelo Alonso Neves propõe uma bela trilha original e assina a direção musical. Sabe quem faz a valiosa preparação vocal? Jorge Maya! 

Rogério Fanju é o diretor. Sábio, deixa Marcia à vontade, porém pontua a utilização do espaço, acerta na escolha das caixas como “alguém que escuta e troca segredos”, acelera e retrai as falas no momento certo. 

Marcia Santos tem total domínio do texto e do espaço. Aproveita cada vírgula, cada nuance da palavra, para passar a informação que deseja. Sua dicção é impecável. Sem falar na sua beleza e força cênica, que deixa o público, as pessoas, hipnotizadas. Sabe tirar graça dos dramas da vida, sabe expor seu descontentamento, joga luz em questões dúbias dando à plateia a oportunidade de se reconhecer e se melhorar.

As Pessoas é um espetáculo de excelente qualidade. Todos somos as pessoas ali retratadas: os que evitam festas, adoram ficar em casa e estão “por aqui” com os absurdos do dia a dia na politica, negacionismo, preconceitos, falta de amor ao próximo. 

As Pessoas faz um recorte do mundo atual, marcando bem o momento que estamos vivendo. Desejo que fique um longo tempo em cartaz para que outras pessoas possam assistir e saírem modificadas, como eu saí. Aplausos calorosos!




quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

KING KONG FRAN


A ordem chegou de Barcelona! “Vai ver a Fran! Ela me segue, a gente se fala de vez em quando!” - Matheus Rangel manda em mim até de longe...

Apesar de também seguir a Fran, também por causa deste amigo brasileiro-europeu, tinha pouco contato com a sua “obra”. Corri pro Instagram para me atualizar e lá está ela com a sua imensa plateia virtual, criando conteúdos divertidos e muitas vezes para maiores de 18 anos.

Eu obedeço, né? Comprei meu ingresso e fui assistir a King Kong Fran no Teatro Ipanema, com temporada de sexta a domingo, até dia 18/12!

E quem é Fran? Personagem criado pela atriz Rafaela Azevedo - que além disto é palhaça e criadora do Laboratório Online Estado de Palhaça. Na rede social, Fran (@fran.wt) responde a questionamentos dos seguidores, dando dicas de comportamento nas relações amorosas. Quer exemplo? “Fran, terminei meu relacionamento e não consigo esquecer a diaba da minha ex. Conselhos?” E Fran responde de pronto:  “ex é para sempre… e aí vc vai estar com a sua atual pensando na ex. E quando ela virar ex, vc vai ficar pensando nesta também… E por ai vai.” Sábia influenciadora.

No Teatro Ipanema, publico cativo do Instagram lota a sala de espetáculo para assistir Fran ao vivo e a cores com suas dicas e histórias sobre relacionamentos. A peça, escrita por Rafaela Azevedo e Pedro Brício está “no limite entre o constrangimento e a tortura”. Dividida em três partes (Ficção,   História e Depoimento), temos três narrativas que se ligam ao tema abordado na peça: o que os homens estão fazendo com as mulheres não tem desculpa. A ficção vem junto com a história de King Kong, que dá titulo à peça. A parte da história conta um acontecimento surreal vivido por uma mulher no século passado. E em depoimento, temos um relato sério e angustiante de algo vivido na realidade.

No palco temos uma ambientação assinada por Gabriela Prestes e Carola Leal, com um disco de atirador de facas, uma jaula e um camarim cheio de plumas. Natasha Falcão assina o ótimo figurino de sado-masoquista com toques de humor e brilho. A luz de Ana Luiza de Simoni é sempre eficiente e necessária ao espetáculo. Tem ainda a contribuição luxuosa da artista Letrux na direção musical.

A função do teatro é deixar a plateia ao menos pensativa. Que possa discutir depois sobre o assunto e, quem sabe, possa se modificar.

Pedro Brício e Rafaela Azevedo sabem muito bem disto e, também juntos na direção, levam a platéia por caminhos de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Como um programa de auditório que recebe tons sensacionalistas, vai se armando uma peça que começa com humor, passa pela ansiedade, beira o constrangimento, chega ao medo e ao terror. Seja ele psicológico ou real (sem causar ferimentos físicos).

Temos aqui uma história de superação, ou estamos assistindo a um processo de recuperação de um trauma causado por motivos fortes que somente assistindo a este ótimo espetáculo, o público - e aqui o leitor - ficará sabendo. Rafaela exorcisa uma dor, se vinga com elegância e arte, desconta seus mais secretos sentimentos através deste espetáculo de imenso poder de transformar a plateia, técnicos, equipe…

Quando se diz que a arte salva, temos aqui um excelente exemplo de como se pode sobreviver a um trauma gigante e tirar algum proveito dele. Mais até. Ajuda outras pessoas a falarem no assunto que as incomoda, a debaterem o tema, pautar a discussão, para que nunca mais episódios vividos pela atriz, em sua vida real, voltem a acontecer.

King King Fran é além de uma peça de teatro. Serve como uma aula de comportamento moderno, é didático, forte, cujo objetivo é 100% atingido. Rafaela Azevedo é um exemplo a ser seguido. Que força. Vida longa ao espetáculo e que possa modificar cada vez mais o comportamento dos homens e das pessoas. Aplausos de pé!

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

UMA REVOLUÇÃO DOS BICHOS


Eu escolhi estar numa sala de teatro no momento mais catártico e importante para o Brasil. A arte que foi – e ainda é – tão atacada como responsável pelas mazelas nacionais, acusada de ser desnecessária. Eu sou um ser de artes. Vivo financeiramente e me dedico a espalhar a cultura brasileira. Por isto, estar ali, junto com a minha bolha, público, atores, direção, refletores, sons, cenário, caracterização, fumaça, figurino, coreografia, é estar entre os meus. E não poderia ter sido mais acertada a escolha.

Entrei no teatro com mais de 1 hora e meia de antecedência à récita, comprei o ingresso e pedi para ficar ali até o inicio da peça. Eu não poderia acompanhar pela televisão o andamento da apuração. A ansiedade gritava. Chega a hora da apresentação, entrei, escolhi a cadeira, o coração a mil batidas por segundo. Mentalizei que, dali em diante, eu focaria na peça, esquecendo o mundo lá fora.

No Espaço Sérgio Porto iniciou-se a temporada de “Uma Revolução dos Bichos”, baseada no livro “Animal Farm” (A revolução dos bichos), de George Orwell, com texto de Daniela Pereira de Carvalho. A construção dos diálogos, adaptados para uma fazenda qualquer, é toda criação da autora. A fluidez, as narrativas, o clímax, a curva dramatúrgica são muito bem pensados e elaborados com competência e segurança. O texto é ótimo. Temos uma perfeita tradução e adaptação da história do livro para o palco. E não é tarefa fácil, mas Daniela tem mãos de fada e o resultado é perfeito.

A história da peça rapidinho: os bichos se revoltam por serem explorados pelo humano, expulsam o humano da fazenda, criam 7 regras de ouro sobre como devem agir daqui pra frente, os porcos assumem o comando, se desentendem pela direção que devem tomar, racha na porcada, um deles assume as rédeas, cria uma milicia, ameaça os que não seguem sua cartilha, mata, manda, desmanda, começa a infringir as 7 regras a tal ponto que passa a repetir os desmandos do humano expulso.

A Cia Teatro Esplendor, sob a direção de Bruce Gomlevsky é a responsável pela encenação. O grande mérito do espetáculo é o perfeito casamento entre figurino (Maria Duarte), caracterização (Mona Magalhães), mímica corporal dramática (Gustavo Damasceno), atuação e preparação vocal (Yasmin Gomlevsky). É muita coisa para um ator só guardar, mas o trabalho feito por eles é brilhante. A gente vê porcos, cabra, vaca, bode, gato, cachorro, cavalo, égua, burro, corvo, galo e galinha. Eles são reais. É impressionante o trabalho. Bruce tem o mérito de aglutinar os talentos individuais e dar uma harmonia ao todo, além de dirigir entradas, saídas, cenas, orquestrando o espetáculo como se fosse um filme. Aplausos de pé. A cena do nascimento dos novos integrantes da fazenda é fantástica. O cenário (assinado pelo diretor) é um pasto com feno e ótima a ideia de criar o moinho com baldes em pirâmide. Tudo lindamente iluminado por Elisa Tandeta.

É destaque a música criada por Zélia Duncan – o Hino dos Animais – e a trilha sonora original de Marcelo Alonso Neves onde os cavalos batem castanholas simulando os cascos no chão.

Mantive meu celular desligado para que nenhuma interferência me fizesse lembrar que lá fora, a vida pegava fogo. Entre as falas dos atores, escutávamos gritos da população. E foi no intervalo da peça, que Bruce, ao microfone, nos informou que Lula havia passado a frente na contagem dos votos, o choro começou ali. Como continuar sem saber o resultado? Sigamos.

No segundo ato, os porcos seguem dominando os demais bichos com armas e humilhações, se mostrando pior que o humano lá do início. Eis que chega o corvo, sob a voz de Glauce Guima, e anuncia que Luiz Inácio Lula da Silva estava eleito presidente do Brasil. O choro foi coletivo. Gritos, aplausos e abraços. Mas o show tem que continuar e, aliviados e radiantes, acompanhamos a tragédia daqueles animais até a finalização da história.

O numeroso elenco brilha cada um a seu momento. São eles: Camille Leite, Daniel Leuback, Eder Martins de Souza, Gabriel Albuquerque, Glauce Guima, Gustavo Damaceno, Jean Marcel Gatti, Lucas Gargois, Pedro di Carvalho, Raiza Noah, Ricardo Lopes, Sol Souza, Victoria Reis, Yasmin Gomlevsky, Gabriel Sednen, Jéssica Luz, Lea Nogueira, Mariana Bittencourt, Paulo Tarsia e Valentina Ghiorzi. A forma como se entregam a retratar animais, com vozes e gestos, é belíssimo. Muitos ficam cenas e cenas de 4 ou em posições doloridas para humanos imitarem bichos.

E a catarse coletiva veio ao final, quando, juntos, aplaudimos a este trabalho sem nenhuma falha, oportuno, necessário, digno de prêmio. Nos abraçamos, mesmo desconhecidos, cantamos o hino do presidente eleito, agradecemos aos deuses do teatro e as esperanças por dias e uma vida melhores voltarem ao povo brasileiro.

É por causa de espetáculos como este que dizemos que a arte resiste. A arte salva. Uma Revolução dos Bichos é mais que uma peça de teatro, é um esforço artístico coletivo. Eu estava certo quando escolhi acompanhar a apuração onde eu me sinto mais feliz, no teatro. Só agradeço. Aplausos de pé. Bravo!

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

FICÇÕES


Quando a gente se coloca diante de uma questão básica da vida: “você está satisfeito?”, tudo ao seu redor passa a ser questionado: o amor, o trabalho, a família, o governo, o país, as amizades, o presente, o legado, o futuro. Responda mentalmente. “Você está satisfeito?”.

Sou muito fã de espetáculos de teatro que derivam de livros. O casamento de literatura e teatro, bem como cinema, traz obras primas para a cultura mundial. “Sapiens – uma breve história da humanidade” (2014), do professor e filósofo Yuval Noah Harari é um best-seller que trata sobre a revolução cognitiva (capacidade humana de criar e transmitir informação), agrícola e científica e é o livro que dá origem ao espetáculo Ficções. 

O release nos diz que “O grande diferencial do homem em relação às outras espécies é sua capacidade de inventar, de criar ficções, de imaginar coisas coletivamente e, com isso, tornar possível a cooperação de milhões de pessoas – o que envolve praticamente tudo ao nosso redor: o conceito de nação, leis, religiões, sistemas políticos, empresas etc. Mas também o fato de que, apesar de sermos mais poderosos que nossos ancestrais, não somos mais felizes que esses. Partindo dessa premissa, o livro indaga: estamos usando nossa característica mais singular para construir ficções que nos proporcionem, coletivamente, uma vida melhor?” 

É esta a grande questão levantada pelo espetáculo.

Ficções está no CCBB Rio até dia 30 de outubro. Idealizado pelo produtor Felipe Heráclito Lima e escrito e encenado por Rodrigo Portella, o texto é um grande recorte do livro. Como se estivéssemos com um controle remoto nas mãos, as cenas mudam aos nossos olhos: uma professora de biologia, uma palestrante futurista, uma esposa ao celular com o marido, dois artistas tocando piano, a mulher que desabafa, enfim, personagens que contam situações da vida humana e fazem a plateia refletir o tempo todo.

A cenografia de Bia Junqueira é uma imensa pedra “no meio do caminho” e um quadro metálico que nos leva ao passado e projeta ao futuro ao mesmo tempo. O ótimo figurino de João Pimenta é épico, atual, medieval, futurista. Paulo Medeiros ilumina tudo com competência. 

Frederico Puppi cria uma trilha sonora original e a executa ao vivo com seus instrumentos. Segura, criativa, divertida e intensa, a trilha sonora - e consequentemente Frederico – é personagem vivo e marcante no espetáculo. Jorge Maya é o preparador vocal e Tony Rodrigues o preparador corporal. Voz e corpo unidos em uma ótima simbiose.

Rodrigo Portella tem aqui um dos seus mais geniais trabalhos.  Diretor do momento, sábio, criativo e moderno, Rodrigo nos apresenta um espetáculo dinâmico, profundo, sóbrio, sério, divertido, intenso, amoroso e empático. Está nos detalhes a qualidade do trabalho, como a singela presença do ponto no canto do palco, a delicada troca de roupas, as pausas, a troça com a plateia antes da entrada da atriz, o jogo com o público ao final do espetáculo. Tudo ali é coletivo. Deduzo que o maior mérito do espetáculo é a coletividade, o humano.

Existem atrizes que pertencem a uma caixinha mágica. Um seleto grupo de profissionais que não se explica o talento, o dom, a competência, a verdade. Vera Holtz está nesta caixinha. Ela é uma das melhores atrizes do Brasil, quiçá do mundo. Temos em cena alguém que se empresta, entrega, de alma e corpo para o espetáculo. Vera usa as palavras como suas – e são! -, empresta seu corpo às diversas personagens, muda sotaque e envolve o público, como poucas artistas fazem. Domina os olhares, o espaço cênico. Está em casa. Ali, o palco, é seu home-office. Como uma sacerdotisa, Vera chega com seu cajado e dali em diante é só ensinamento e sabedoria. 

O dicionário diz que “Satisfeito, do latim satisfactum, é um adjetivo de quem se encontra contente, de quem se satisfaz; ou de quem está farto, saciado. Algo que se realizou ou se cumpriu”. Sobre Ficções eu digo sem medo de ser feliz: sim, estou satisfeito. Embora a vontade de mergulhar no livro – nos livros – de Yuval Harari seja imensa, para que eu fique saciado de sabedoria. 

Ficções é um dos melhores espetáculos de teatro que já assisti na minha vida. Está no “Top 5”. Pelo assunto oportuno, pelos questionamentos, pela qualidade técnica, pela emoção e por servir de exemplo ao que se propõe uma obra teatral: incomodar, instruir, incentivar, oferecer. 

Aos produtores Alessandra Reis, Felipe Heráclito Lima e Natália Simonete, minha imensa admiração e respeito. Agradeço a Felipe Heráclito Lima pela ideia inspiradora, ao Rodrigo Portella por me causar emoções diversas, à Vera Holtz por alegrar meu coração. À Factoria Comunicação (Vanessa Cardoso e Leila Grimming) minha gratidão pela oportunidade de apreciar tamanha beleza! Aplausos de pé. Imperdível! A peça do ano.

sábado, 1 de outubro de 2022

COMO SOBREVIVI A MIM MESMA NESTA QUARENTENA

Quem sobrevive a um isolamento social, a um vírus letal e a um governo do mal, sobrevive a tudo. Até mesmo ao pós-morte. Ficará vivo pelas histórias contadas, pelas memórias registradas, pelas lágrimas e gargalhadas acumuladas e derramadas.

Quando assisti ao espetáculo CAOS, da autora e atriz Rita Fischer, descobri uma intensa artista, que expurgava pela palavra as agruras da vida mundana. Rita olhava para fora, para o mundo podre que a cercava, a confundia e a agredia com a desordem que se encontrava tudo. Isso em 2019. Ai, no ano seguinte, vem a pandemia e cria o pandemônio na vida de todos nós.

Na peça COMO SOBREVIVI A MIM MESMA NESTA QUARENTENA, Rita olha para dentro de si, do mundo, do apartamento, de sua trajetória. A peça é um apanhado destas histórias vividas, postadas e gravadas por Rita Fischer – por ela mesma! – no Instagram.

Esperta como sempre foi, Rita, isolada, resolveu comunicar-se com o mundo através da onda de lives e vídeos de Stories. A auto-convivência forçada fez várias descobertas na vida da atriz/autora. Manhas e manias evitadas por um dia a dia comum, agora ficam explicitadas e intensificadas, pois, só tendo a si mesma para conviver, a personagem se dá conta que tem que sobreviver a algo letal mesmo sendo hipocondríaca; tem que se manter bela e faceira com os cremes, escovas e maquiagem apenas com o disponível em casa; precisa ir ao mercado rápido e higienizar tudo, literalmente, antes que a “não-gripezinha” a pegue de jeito. Enfim: o que tinha tudo para ser uma vida pacata, se transformou em uma micro-selfie-zona!

No palco, temos a atriz, dona de si, com seu esvoaçante vestido multiuso acompanhada de uma fiel e escudeira cadeira. Ali, Rita, mesmo vestida, está nua diante do público. Sabe quando a gente diz para si, em voz alta, aquilo que jamais poderíamos dizer na frente de alguém? Rita diz. Sabe aquela soma de palavrões cabeludos, os segredos nem revelados ao terapeuta, as propostas indecentes e sonhos não realizados que temos? Rita conta. A atriz-autora fez uma seleção caprichada, em cima de um material bruto e traz um texto divertido, desnudo e intenso.

“O nosso amor, a gente inventa, pra se distrair”. Além de tudo, a personagem, que sofre com sua solidão imposta, cria para si uma aventura com um vizinho de prédio. Ali, ela dá vazão a sua caça-animalesca de um animal enjaulado e, nos poucos momentos de “passeio na rua”, ao encontrar o vizinho, se declara e se exibe. É gargalhada na certa.

Assina a direção Thiago Bomilcar Braga, que deixa a atriz livre para criar em cima da própria criação. Porém, sob ameaças fortíssimas, impede a mesma atriz-autora de fugir do texto e mergulhar por mares ainda não navegados.

Na luz temos Jack Santtoro fazendo das tripas coração para iluminar o micro-palco do Espaço Provocações. A trilha sonora traz a força de Edith Piaf, mulher forte tal qual a personagem.

Atuar, escrever, produzir, divulgar, convidar e agradecer no final... é tudo culpa e mérito de Rita Fischer, que nos alimenta, brinda e alegra com reflexões, verdades, 3% de mentiras e muita entrega. Rita não para um minuto. Espoleta, metralhadora, segura e consciente de como manter os olhos da plateia atentos, aproveita cada minuto em cena para mostrar todo seu talento.

Como sobrevivemos a nós mesmos na quarentena e na pandemia é livro aberto para várias tribos. Rita já fez a parte dela. Online e presencial. Registrou tudo para outros rirem, aprenderem e reviverem este momento único e trágico na nossa geração.

Que o espetáculo sirva de referência positiva  de como transpor do online para o presencial sem perder a qualidade e a intensidade. Vida longa a COMO SOBREVIVI A MIM MESMA NESTA QUATRENTENA e aplausos de pé para a mega-plex-hiper-ultra talentosa Rita Fischer!


domingo, 25 de setembro de 2022

GRAU ZERO

Lembro das aulas, na escola ou na faculdade, onde os professores obrigavam os alunos a pensar. Um professor específico, após “dada a matéria”, parava tudo e dizia: Pausa para Amadurecimento Profissional. E era nesta pausa que ele dava a dica, mostrava o lado que não víamos, indicava onde pesquisar, contava a realidade, soltava perguntas, propunha hipóteses diferentes da “matéria dada”. Daí aprendemos um “processo investigativo”, onde, embora acreditássemos no que os livros estavam dizendo como verdade, pensávamos sobre como poderia ser “se não fosse”. Ele nos ensinou a pensar. A escrever nossa história, a contar até a mesma, só que sob nosso ponto de vista.

Está em cartaz até hoje no Teatro Gláucio Gil, porém com torcida para que siga adiante, o espetáculo Grau Zero, texto brilhante de Diogo Liberano. A peça tem por base 3 alunos que recebem grau (nota) zero em suas monografias de mestrado. Aí resolvem tirar satisfação com a professora, mestra, orientadora. A história é contada e recontada sob vários olhares, os alunos são tiranos, ratinhos de laboratório, crianças de colégio, adultos irresponsáveis, aprendizes de feiticeiros. Uma genialidade. AMO quando o texto me faz ficar de boca aberta, quando recebo qualidade, me faz pensar sobre o que está sendo dito, quando concordo com o método da escrita apresentada. E este texto de Diogo Liberano, Grau Zero, me trouxe momentos de extremo prazer mental.

A partir daqui contém spoiler.

No palco, um cenário composto de estruturas de ferro e madeira, com quadros brancos. Deduzi que seja para caracterizar o desmonte, o descrédito, a decadência com que as escolas públicas estão sendo tratadas fisicamente. São 4 estruturas que compões perfeitamente tanto uma sala de aula quanto um cativeiro. Ótimo trabalho de Nícolas Gonçalvez. No figurino, Ticiana Passos dá vida aos alunos e professora com roupas atuais e confortáveis. Na luz, a sempre ótima Fernanda Mantovani dá a mesma importância de qualidade quando a plateia é convocada a virar aluno e quando a cena vira um interrogatório. 

O elenco é composto de 3 alunos homens e 1 professora mulher. João Pedro Novaes, Manoel Madeira e Pedro Yudi são “os meninos-homens” que questionam a mestra. Cada um brilha a seu tempo: Pedro na ótima cena da confissão de interesse pelo colega, João Pedro na cena da agressão à professora e Manoel quando busca se livrar do assédio do amigo. 

Talita Castro é a mestra. Seu trabalho arrebata corações, atrai olhares. Como uma verdadeira professora, nos dá uma aula de teatro. Para os “meninos-atores”, Talita é sua mestra, mostrando a eles, e ao público, como se faz, como se diz, como se comporta, como se atua em um espetáculo de teatro. Talita olha no fundo do olho da plateia – meninos, eu vi! – encara e defende sua causa (e a causa do texto); aproveita toda vírgula, cada espaço, toda respiração para dar seu recado. Convence a qualquer um a mudar seu ponto de vista, a imaginar uma outra história em cima de fatos deturpados ou verdadeiros. Talita Castro precisa e merece uma indicação a um prêmio de teatro.

Conduzindo e dirigindo o espetáculo, Marcéu Pierrot assina seu difícil trabalho com partituras e marcações seguras e certeiras. Difícil dirigir a mesma cena, porém com texto diferente. Este é o destaque de seu trabalho: quando a professora recebe um aluno atrasado, essa cena muda 4 ou 5 vezes, recontando a história sob novo olhar. E tudo se mantendo fiel a direção do espetáculo. Acerto também na cena em que os 3 alunos sequestram e torturam psicologicamente e ficticiamente, ou não, a professora. A violência está ali, não a vemos de fato acontecer, mas a forma como faz de um simples balde o saco de pancadas, é ótima. Aplausos de pé.

Grau Zero é daqueles espetáculos necessários para o agora. É o vira-voto, é o tapa na cara do fascista, reacionário, conservador que não enxerga a liberdade no outro. É a forma do dizer, sem dizer, que o que vivemos agora em nosso país é triste, trágico e truculento. É urgente que Grau Zero fique em cartaz até que muitas pessoas assistam a este trabalho digno de prêmios, aplausos e reflexões. Agradeço a Diogo Liberano, Talita Castro, Marcéu Pierrot, e não menos importantes João Pedro, Manoel Madeira e Pedro Yudi por usarem meu cérebro e me apresentarem um trabalho dos grandes e memoráveis. Vida longa a Grau Zero. Aplausos de pé. Bravo.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A PLEBE DO CORIOLANO


É inegável que, no momento atual, o assunto de todas as rodas seja “política”. Impossível não falar, respirar, sentir, sofrer sobre este assunto às beiras do primeiro turno de uma das eleições mais importantes do nosso país. Depois das Diretas Já, com a primeira eleição para presidente em 1989, esta, de 2022 é a segunda mais importante e simbólica.

O livro “Como as democracias morrem” fala sobre como as democracias tradicionais entram em colapso. Os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt - professores de Harvard - comparam o caso da eleição de Trump com exemplos históricos de rompimento da democracia nos últimos cem anos: da ascensão de Hitler e Mussolini nos anos 1930 à atual onda populista de extrema-direita na Europa, passando pelas ditaduras militares da América Latina dos anos 1970. O alerta do livro: a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas - como o judiciário e a imprensa - e a erosão gradual de normas políticas de longa data.

Por acaso... assim como quem não quer nada... estamos vivendo isto, exatamente neste momento, no Brasil? Cartas para a redação.

Precisamos escolher entre a barbárie e a democracia. Não basta eleger um presidente com “P” maiúsculo, é preciso se atentar para o legislativo. Quem faz as leis: deputados – federais e estaduais – e senadores. Temos que eleger pessoas que se preocupem efetivamente com o povo que, neste momento, passa fome, é discriminado, morto por balas perdidas, marginalizado. Já volto ao discurso político. Pausa para algo importante: teatro.

Está em cartaz no Espaço Cortiço Carioca, na simbólica Lapa carioca, uma versão das obras de William Shakespeare e Bertold Brecht que têm o personagem Coriolano como protagonista. “A Plebe de Coriolano”, texto de criação coletiva, que bebe na fonte dos dois autores famosos, propõe uma inversão de protagonismo: o povo tem voz narrando os acontecimentos ocorridos com o general romano Coriolano.

Extremamente oportuna, a montagem tem adereços e ótimos figurinos criados pelo grupo e direção musical de André Poyart bastante pontual e importante. Destaque para o excelente samba enredo “Samba da Plebe de Coriolano” (letra de Xando Graça e música de André Poyart).

A direção de Adriana Maia é inteligente e criativa. Usa todos os espaços possíveis e imagináveis do Espaço Cortiço Carioca para dar vida, voz e movimento ao espetáculo. Ótimas as intervenções na escada, nas entradas e saídas das salas/quartos laterais, e todo o comportamento cênico dos atores. Destaque ainda para a perfeita utilização dos objetos de cena e o completo domínio da palavra pelos atores. Falas sem pressa, com precisão.

É o numeroso elenco que brilha nesta peça-show. Em ordem alfabética, Ana Achcar, Anna Wiltgen, Angelo Bessa, Aramís Correia, Gilberto Góes, Henrique Manoel Pinho, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Paula Muricy, Stefania Corteletti e Xando Graça, cada um a seu momento, tem a presença marcada, forte e segura. Estão ali defendendo não só seus papeis, como valorizando o fazer teatral, e, mais que isso, dando voz à democracia. Tenho meus personagens favoritos, mas prefiro que você assista e escolha os seus!

Não poderíamos ter melhor momento para levar este trabalho ao público. Mostrar como a escolha de um congresso competente é também de suma importância para nosso país. Após a apresentação, tivemos um bate-papo com atores, publico e quem mais lá estivesse. Cada um pode falar sobre sua visão do momento e sobre a urgência das boas escolhas nas próximas eleições.

Votei para presidente, com 17 anos, pela primeira vez em 1989, junto com minha mãe, aos 44 anos – também primeira vez - pós ditadura.

Faço votos que “A Plebe de Coriolano” fique em cartaz por muito tempo, para que os indecisos, os que não ligam para política, mas amam teatro, possam avaliar a importância de espetáculos como este para nossa democracia, nossa cultura, nossa arte. Agradeço a oportunidade de assistir a um trabalho tão rico e necessário. Aplausos de pé!

sábado, 30 de julho de 2022

AS METADES DA LARANJA

Existe um documentário chamado “A Pessoa é para o que Nasce”. Encaro esta frase como um chamado da vida para que a pessoa siga o rumo “traçado”. O dom de cada um, aquilo que você sabe fazer de melhor, e faz por prazer, e faz porque sabe fazer, e faz porque é de dentro que vem a vontade. É incontrolável. Muitos artistas sentem essa força interna e só lhes resta fazer.

Durante a pandemia, o canal de Tauã Delmiro no Instagram – sim, é um canal. Não é perfil. É entretenimento puro! – foi um dos que mais me alegrava. Sua capacidade de inventar pequenas histórias nos stories, a edição sempre genial e criativa, dizia – e diz – que ali tem alguém que nasce para o que é. Ele é um ator, cantor, escritor e diretor completo. Nato. 

Esteve em cartaz no Rio, o brilhante musical “As Metades da Laranja”, com canções de Fábio Jr. A ideia? Do Tauã Delmiro. Dois irmãos gêmeos separados pela vida se reencontram depois de anos. Um rico, outro pobre. Você já viu isso em algum lugar... mas, calma. Todas as histórias já foram contadas. A forma como Tauã conta esta versão é o que importa. 

Cercado de amigos e talentos, Victor Maia e Analu Pimenta são "alma gêmea, carne e unha", os dois parceiros de cena que contam, interpretam e cantam, junto com Tauã, esta peça. O trio embarca nas brincadeiras, tons, vozes, crenças dos personagens e, juntos, constroem uma história divertida para o público, cheia das mais variadas emoções. Cada um ao seu momento brilha em cena. Analu Pimenta, sempre linda e entregue, Victor Maia sempre atento, afinado e no compasso mesmo descompassado, se fundem ao cérebro de Tauã e embarcam, sem medo nem dúvidas ao que ele propõe. Tauã, generoso, entrega de bandeja todo seu talento de ator e cantor para os colegas brilharem em cena e o público se divirta. O trio é mais que competente.

Junto deles está Tony Lucchesi. Se você não sabe quem é, 7 em cada 10 espetáculos musicais nos últimos 6 anos tem Tony Lucchesi na direção musical e nos teclados. Além de tocar e criar os arranjos, Tony é personagem perfeito para encarar o trio de atores e fazer parte deste espetáculo inesquecível. Tony entra de corpo e alma no papel de “todos os outros personagens” e músico de cena.

O palco, todo em laranja, tem cenografia idealizada por Tauã com “post-it” laranjas em dois tons que fazem meia laranja ao fundo. O figurino, todo laranja com camisas brancas e gravata preta – ideia do Tauã. A luz, de JP Meirelles abusa do âmbar (laranja) e acerta nos momentos de comédia e emoção.

Tauã inventou isso tudo. Como disse Victor Maia no momento dos aplausos, Tauã tinha pensado em usar um dinheiro guardado para comemorar seu aniversário com uma festa ou uma viagem, mas... resolveu montar uma peça. Ele nos dá de presente aquilo que ele tem de sobra. Ele prega botão, chuleia, atua, escreve e dirige. De sua cabeça saem as cenas mais hilárias dos últimos tempos em teatro – pena não poder escrever para não dar spoiler – mas tem desde alguém que cai da cadeira até o exercício da sementinha que vira árvore. Tem ator que simula ser um fantoche manipulado até conserto de cenário ao vivo. E logo depois de um numero que faz a plateia se acabar de rir, vem uma música de impacto em que todos choram de soluçar. É muita criatividade e generosidade para uma cabeça só. Tem ainda Manu Hashimoto como co-diretora que embarca na palhaçada-organizada com competência.

Não sei definir o tipo de teatro inovador que estamos vendo nascer com esta peça. Tem pastelão, tem besteirol, tem teatro de revista, tem musical. A harmonia do visual, a ordem das canções contando histórias, o exato tempo de cada piada, a afinação e a entrega dos 4 grandes artistas (Analu, Victor, Tony e Tauã) , faz de “As Metades da Laranja” um espetáculo brilhante, forte, inteligente, rico em conteúdo e referências de vida e de internet. 

Tauã Delmiro sabe muito bem como se divertir e como levar a sua alegria ao público. Ele é para o que nasceu... Não tem medo de ser criticado nem rotulado. Ele faz e rir e chorar, manipula a plateia com ciência. Ele é pra ser. E nós, publico, povo que ama teatro, só tem a agradecer. Obrigado Tauã. Obrigado equipe.

Agora fico cá rezando, torcendo para que “As Metades da Laranja”, um sonho lindo de viver, volte logo aos palcos cariocas e que muitas pessoas possam assistir, se divertir, cantar e se emocionar com este vulcão de talento em cena chamado Tauã Delmiro e seus comparsas, irmãos metralhas, carismáticos e competentes Analu Pimenta, Victor Maia e Tony Lucchesi. "Estou morrendo de vontade de você!" Aplausos de pé, com gritos de bravo. Imperdível.


domingo, 24 de julho de 2022

JUDY, O ARCO-ÍRIS É AQUI



A falta de referência, de memória, de conhecimento é o que mais precisa ser combatido para que o futuro não repita o passado e, melhor, que se aprenda com as coisas boas já vividas para melhorar o futuro. Em recente pesquisa inglesa, 1/3 dos entrevistados, da geração Z (jovens entre 10 e 16 anos), não conhece o trabalho dos Beatles ou Elvis. E, pior, para os próximos 10 anos a tendência é a redução do número de fãs... Alerta vermelho, alerta vermelho!

Por aqui, cada vez mais terceiro mundo, onde a cultura vem sendo demonizada, cachês faraônicos de sertanejos, ausência de público nas salas de teatro e cinema, mergulhar de cabeça em um espetáculo sobre uma estrela de cinema americano do século passado, é um ato corajoso e, mais que isto, (é clichê, mas é verdade) um ato de amor e resistência à história mundial da cultura e à falta de memória coletiva.

Flávio Marinho nos presenteia com um texto brilhante – Flávio Marinho e Brilhante são sinônimos! – sobre Judy Garland, atriz do mais famoso filme O Mágico de Oz, mãe de Liza Minelli (aquela que entrou de cadeiras de rodas ao lado de Lady Gaga na entrega mais recente do Oscar... que esteve com Bibi Ferreira em Nova York...), lembrou? Não? Não conhecia? Como você não conhece Judy Garland? Nunca ouviu falar de Bibi Ferreira? - (Pausa: corre pro teatro Riachuelo pois a história de Bibi Ferreira está em cartaz) - Nem sabia que Liza Minelli era filha de Judy Garland? Lady Gaga pelo menos você conhece? ... É pra reativar a sua memória, ou te fazer conhecer essas pessoas, que Flávio Marinho escreveu este musical. Não só trazer uma referência para todos os artistas, contar uma história exemplar sobre altos e baixos na carreira incerta de quem vive do trabalho e do amor à arte, mas para servir de exemplo para todas as gerações a respeito das constantes quedas e levantes que a vida nos dá.

No palco, o cenário de Ronald Teixeira é o necessário para se contar a história com o mínimo necessário: um baú, um “três tabelas”, um banco e um cavalete “flip-chart”. Ainda no fundo, um painel com lampadinhas. É dele também o excelente figurino, com 2 trocas de roupa que só enriquecem o trabalho. A luz de Paulo Cesar Medeiros é sempre certeira.

Liliane Secco é a diretora musical, arranjadora e tecladista em cena. Ao seu lado, André Amaral. Linda a cena em que ambos tocam juntos, à quatro mãos, no mesmo piano. Destaque também para a leveza dos movimentos mesclados com típicos movimentos de mãos da homenageada, sob o cuidado de Tania Nardini.

Luciana Braga está divina. Não existe outra expressão. Captadora de olhares e sorrisos, ela se expõe, se atira como alguém que “anda” de asa delta e voa alto. Nunca desce. Em suas mãos, e voz, e corpo, o espetáculo só cresce ao longo da encenação. Afinadíssima, segura, preparada, entregue, confiante. Nos seus olhos, nas mãos, no andar, temos ali a atriz em sua majestosa forma e esbanjando talento.

O grande maestro deste trabalho é Flávio Marinho, o nosso maior – e talvez mais completo – amante e apreciador de espetáculos de teatro de qualidade. Além de idealizar e escrever, Flávio dirige a peça. Sabe onde colocar a atriz e desenhar o espetáculo. Aproxima palco do público, desde o momento em que a plateia é recebida com Luciana já no palco, até o último e tão esperado grand finale com Luciana Braga sentada na beirada do palco, Além do Arco-Íris. Um espetáculo refinado cuja ficha técnica é a nata da classe artística.

“Judy, O Arco-Íris é Aqui” já pode ser considerado o marco da retomada teatral carioca. Com nenhum patrocínio, contando apenas com recursos próprios, amor e apoios culturais, fica provado que o teatro está vivo. É obrigatório assistir. Pela mensagem, pelo conteúdo, pela história de Judy, pela necessidade de se reinventar e se reconstruir, de Judy e Luciana. Pelo amor de Flávio Marinho pelas artes cênicas. Pelo talento de toda a equipe. Aplausos de pé! Vida longa a “Judy, O Arco-Íris é Aqui”.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

JOÃOSINHO E LAILA : Ratos e Urubus, Larguem minha Fantasia

Foto: Cláudia Ribeiro

A primeira vez, a gente não esquece: Caprichosos de Pilares, grupo de acesso, ala do sorveteiro. Aceitei. Fomos buscar fantasia, trouxe no saco preto pra casa. No dia marcado, lá fui eu pra Presidente Vargas. Não lembro se era do lado do “Balança-mas-não-cai” ou dos Correios. Aquela muvuca, zona, bagunça de gente com fantasias diversas e diferentes, uma gritaria, um povo alegre e outros preocupados, uns chefes de ala tensos, umas baianas desmontadas, os carros alegóricos lindos e imensos... Achamos nossa ala pois havia um pitoco com o número acima das nossas cabeças. “Isso não vai dar certo... é impossível! Muitas variáveis para dar errado! O risco é imenso!”. Ah, eu sabia o samba, tá? Era sobre chocolate o enredo. “É bom, que bom, bombom / Gostoso é o que você me dá / Chora cavaco, bate bum bum / Vem no meu samba, vou comer mais um”... só de lembrar, os zóio ficam cheios de água. É inesquecível. 

A escola “armada” na concentração, do nada, do nada, começa a andar... as alas se formam como por milagre, os carros se colocam entre as alas e a gente vai atrás. De repente, a escola vira pra Sapucaí... e ali, a emoção toma conta num tamanho único; o mundo todo está te olhando, te aplaudindo, te cantando, te torcendo, junto contigo. É a maior emoção da vida. É a alegria mais pura que um ser humano pode experimentar.

E foi essa a emoção que tocou minha alma e corpo quando começaram os primeiros acordes de “Beija-flor, minha escola / minha vida, meu amor”, no teatro de arena do SESC Copacabana começando a peça “Joãosinho e Laíla”. Dali em diante, nem precisei piscar os olhos para irrigá-los. Chorei mesmo.

O belíssimo texto de Márcia Santos tem tudo que uma boa dramaturgia de teatro precisa: pesquisa, personagens bem construídos, enredo, trama, uma questão a ser resolvida no fim da peça, impasses e desafios durante. Joãosinho Trinta é o carnavalesco da Beijar-Flor (carnaval de 1988 - construção / 1989 - desfile). Laíla é o diretor de carnaval/harmonia da escola. Um é o corpo, o outro a alma. Joãosinho é o gênio criativo, Laíla é o meticuloso perfeito. Obvio que atritos aconteceram. A pergunta da peça: será que eles vão conseguir apresentar o enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” com competência? A resposta já sabemos. Mas aguardamos até o final para saber “como será reproduzido” na peça.

Wanderley Gomes assina o figurino e a cenografia perfeitos. Um barracão minimalista cuja mesa vira Cristo Redentor no final. Sabe quando, ainda na concentração, o carro alegórico precisa abaixar pra passar sob a passarela ou o viaduto? Ou quando precisa abaixar pra passar na (antiga) “Torre da Imprensa”, quase na Apoteose? Pois foi assim que, “do nada”, a mesa virou Cristo Redentor. Igual aos carros alegóricos na avenida! Gênio!!

Valdeci Corrêa cria uma luz bonita e competente. Marcelo Alonso Neves é sempre perfeito na direção musical. Foi lindo relembrar os sambas da agremiação de Nilópolis! Colocar ritmistas era o obvio, mas, além disso, eles brincam com os instrumentos e fazem parte das cenas como personagens. Ótimo! Marlon Júlio é o assistente da direção musical e Felipe D’Lélis fez os arranjos da bateria. Os músicos: Felipe D’Lélis, Leo Antunes, Marlon Júlio, Juliane Procópio, Markinhos e Vitor Medeiros.

O ótimo elenco tem como protagonistas Wanderley Gomes (Joãosinho) e Cridemar Aquino (Laíla). Entregues, seguros, firmes. Os dois brilham ao seu tempo. São homenagens perfeitas. Anna Paula Black tem seu melhor momento como Tia Eulália, e ainda brilha como Rosângela. Fabio D’Lélis encanta com seus Jenilson e Hamiltinho. Mas, se me permitam um aplauso um pouco maior, Milton Filho é pura alegria, beleza e generosidade em cena. Sempre que está presente sabemos que tem coisa boa. 

E, não menos importante, Édio Nunes. Idealizador e diretor, sua sacada em montar esta peça é ótima. Um recorte do que seria a preparação do desfile mais importante da Beija-Flor (pra mim, né!) na Sapucaí, o embate entre dois gênios: Joãosinho Trinta (que eu admirava!) e o Laíla (que eu temia!), as fofocas de bastidores, o Cristo Mendigo, a solução pra entrar na avenida... Édio controla e comanda este espetáculo como num desfile: arma o elenco e os carros alegóricos (mesas) no palco, depois, no final, ele explode os corações na maior felicidade com o belíssimo, marcante e inesquecível desfile concentrado no Cristo coberto e depois empapelado com matérias de jornais. Édio é puro carnaval. Sua direção é como diz o samba: “Firme, belo perfil / Alegria e manifestação. Eis a Beija-Flor tão linda / Derramando na avenida / Frutos de uma imaginação”. Aplausos de pé com olhos cheios de água.

Na fantasia do sorveteiro, tínhamos um isopor que colocamos cerveja e bebemos durante o desfile. Meu sapato se desfez, cheguei descalço na apoteose. Nunca chorei tanto na minha vida quanto depois daquele desfile. De alegria, emoção e realização. A Caprichosos de Pilares foi rebaixada na apuração daquele ano em que eu desfilei... 

Leba laro, ô, ô, ô / Ebo lebará, laiá, laiá, ô / Leba laro, ô, ô, ô / Ebo lebará, laiá, laiá, ô.

Vida longa ao espetáculo Joãosinho e Laíla. Aplausos incansáveis de pé.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

BRILHO ETERNO

Se você pensa que já viu de tudo na cena teatral, engana-se. Tem um cara que renova a arte sempre que coloca a mão: é Jorge Farjalla. Explico.

Acompanhei deste a primeira postagem no Instagram do diretor a ideia de se fazer do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança” uma peça. Tudo começou em 2019. Porém, o mundo se acabou em 2020 e em 2022 estreou em São Paulo no teatro Procópio Ferreira a comédia romântica Brilho Eterno. Deus agenda tudo. 

A peça fala de amor. Não só isso. É também um caso de dores apagadas. O texto adaptado por Farjalla e André Magalhães, com colaboração de Victor Bigelli e Tainá Müller, nos conta a história de um casal que terminou a relação e ambos querem apagar a dor da separação. Aí encontram uns cientistas loucos que fazem uma “lobotomia emotiva”, que só apaga a dor da perda do amor. Com o andar da história, descobrimos que não é só dor de romance que pode ser apagada. Qualquer dor que venha de uma perda. 

É tradição humana deixar de fazer algo por medo de sofrer. Negação. Não vou ao bar pois ali iniciei um namoro; não toco piano porque lembra minha avó falecida; não entro no clube pois a lembrança das horas na piscina me dá angústia. E se pudesse apagar isso? Voltaria a nadar, a tocar, ao bar? Enfrentar é a forma de domá-la, transformá-la. Evitá-la, é alimentar a dor. Apagá-la é o que? Covardia? Solução? Obviamente é uma situação hipotética, mas as questões ficam martelando durante toda a peça.

No palco, o ótimo cenário de Rogério Falcão é um “container” que ora é elevador, livraria, casa, bar, laboratório. A execução das mudanças, as aberturas de portas e janelas são leves. A opção pelo branco nos dá a oportunidade de escolher que cores queremos que o ambiente tenha e, por outro lado, valoriza o balão vermelho de coração, o cabelo azul, a sacola amarela... É o tipo de cenário que eu AMO em teatro. 

O figurino, criação do diretor, é uma roupa básica, um uniforme, acrescido de adereços para compor a cenas. Tudo preto com letras brancas, que conversam com o cenário, deixando rostos e mãos dos atores no foco do olho do público.

O design de luz de Cesar Pivetti é aqui um palavrão usado no superlativo: FODA! Não há como dizer a beleza, criatividade, colorido e competência desta luz sem usar a expressão FODA. Uma das luzes mais lindas que já vi no teatro. E ela vem de todos os lados! Uau!

E você acha que só a luz é FODA, negativo. A direção musical, trilha sonora e o design de som, criação de Dan Maia também é tão superlativo quanto a luz. FODA! Escutamos em 360°, as musicas instrumentais avançam e recuam tal qual as cenas. O looping do tempo se faz presente nas escolhas sonoras, o disco é tocado de trás pra frente, o tempo e a musica avançam e voltam! A imersão sonora começa no aquecimento do elenco com as canções de amor, fogo e paixão, enquanto o público se assenta.

Este texto tá grande, mas o assunto é importante. Aguenta. Enquanto escrevo sobre e peça, e já faz uma semana que assisti, ainda estou tentando decidir se apagar uma lembrança é bom ou ruim. Continue comigo.

Como a Covid não acabou, no dia da récita, Tainá Muller foi substituída por Renata Brás. Ótima em cena, Renata está à vontade como protagonista. Se havia insegurança pela urgente troca de papéis, jamais ficou claro. Segura, firme, certeira, Renata Brás nos traz em seus olhos e comportamento cênico o amor pela arte e pelo papel que defende. Reynaldo Gianecchini é o protagonista da história. Sua presença atinge em cheio os corações partidos e acalorados dos casados, solteiros, casadas e solteiras na plateia. É amor puro. Wilson de Santos, sou fã desde A Bofetada. Em Brilho Eterno, Wilson é a alma cômica e o fio condutor da questão do espetáculo: devemos apagar uma dor ou suportá-la? As gargalhadas da plateia são pra ele. Gênio. Raphaela Tarfuri entrou no papel que era de Renata Brás de supetão e segurou com competência, carisma e inteligência cênica o desafio que lhe foi concedido. Ainda no elenco, Daniel Aidar (que substituiu Tom Karabachian também com covid) e Fábio Ventura, não menos importantes, formam com Wilson o trio LSD de cientistas apagadores de memória, lembrança e dor. Afiados, afinados e com garra. Alias, amor é a palavra que pode representar o que sentimos deste conjunto em cena.

Na majestosa direção, Farjalla entrega seu melhor: junta música, luz, atuação, história, referências, colorido. Embrulha o espetáculo como um presente de amor para o público. “Abram esta joia, vejam, sintam, sofram, curtam o que preparei para vocês”. A sua marca de “tudo misturado porém com liga” está na peça. É nosso Paulo Barros do teatro. Só ele faz com perfeição algo com tanta informação e qualidade. Só ele entrega algo novo ao público. Como disse no início desta longa conversa, Farjalla inova, mesmo no tradicional. Mistura praga com amor, memória com dor, luz com música, beleza física com lembrança triste da peste (bubônica, gripe espanhola, covid...).

O assunto poderia se encerrar aqui, mas a pergunta sobre esquecer ou viver o sofrimento ainda não foi respondida. Então vá assistir ao espetáculo para tomar ciência da história e tire a sua própria conclusão. Talvez pense que é melhor sofrer a dor da perda do que apagar a lembrança da causa, pois apaga-se também os bons momentos vividos. E a balança tem que pesar para o lado bom. É importante sofrer para aprender, crescer, mudar comportamento repetido, evoluir.

Brilho Eterno além de ser um excelente espetáculo teatral, traz reflexões e referências. Aplausos para os produtores Marco Griesi, Renata Alvim, Daniela Griesi e Reynaldo Gianecchini pela gigante qualidade deste produto. Vida longa a Brilho Eterno! Aplausos com cobertura de Bravo!

domingo, 5 de junho de 2022

QUERO VÊ-LA SORRIR!


Aprendi que não é de bom tom fazer comentários que desabonem um trabalho, que prejudiquem a encenação. É importante valorizar todas as formas de arte e retirar dela o que toca e melhor agrada ao espectador. Costumo só escrever sobre as peças que indico e gosto demais. Indico este espetáculo, mas aponto o que pode melhorar.

Está em cartaz no Teatro Claro Rio o musical em homenagem aos 50 anos de carreira do grande símbolo sexual da geração oitenta, Sidney Magal. Conheço moçoilas que desmaiavam por ele, homens que se inspiravam em sua malemolência, o sexy appeal, o olhar penetrante, as mãos espalmadas, o molejo corporal para captar uma presa fácil feminina.

O musical “Quero Vê-la Sorrir”, texto de Francisco Nery, é baseado no livro de Bruna Ramos da Fonte - “Sidney Magal Muito Mais que um Amante Latino”. A peça nos conta didaticamente, porém com humor e leveza, a vida do grande cantor Sidney Magal. Sabemos do começo ao fim o que irá acontecer, pois o artista ainda está entre nós! Viva! A novidade do espetáculo (para mim, obviamente) era a relação deste com a mãe. A simbiose de afeto, cuidado e o sentimento de “mãe de miss” que nutriam é o que conduz o espetáculo.

Francisco Nery e Sueli Guerra (que também assina as coreografias) optam por uma direção simples, com números musicais intercalando a linha do tempo da história de Magal. Gosto de como resolveram as trocas de roupas. Francisco Nery participa como Chacrinha, num dos bons momentos da peça. A opção por colocar dançarinos nos números musicais, me fez pensar, uma vez que, tirando as Chacretes, não lembro de Magal com um balé atrelado às sua imagem. Se tinha, perdoem a ignorância deste inculto "opinador". Embora Magal seja maior que o sucesso que dá título ao musical, a opção de, na abertura, ter número de dança cigana, soa como um pedido de “abertura de caminhos”, de bênçãos da cigana Sandra Rosa Madalena ao que será mostrado.

No palco, a cenografia de George Bravo é composta de tecidos e rendas vermelhos emoldurando o palco (mais referencia cigana), duas poltronas giratórias com espaldares (coração e clave de sol), e uma decoração de leques para os músicos. Veja bem, temos aqui questões: emoldurar o palco sem iluminar, prejudica o cenário criado. Mesmo raciocínio para os leques. Uma sugestão: atrás do coração tem rosas vermelhas que só são vistas uma vez pela plateia e rapidamente. Já que se optou pela linha cigana, as rosas mereciam mais visibilidade!

O figurino de Rogério Santini é bom para o protagonista e sua mãe. Para o balé que acompanha os números musicais a opção é, também, cigana. O figurino está de acordo com a época e cai bem em todos. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros colabora com a opção da direção: valorizar o vermelho, o sangue. Nico Rezende é o diretor musical e sabe como arranjar as canções de Sidney Magal.

O elenco de bailarinos e pequenos papeis é composto de Fabiana Figueiredo, Andrea Del Castel, Mariana Braga, Marcus Anoli e Francis Fachetti.

Márcio Louzada, que dá vida a Sidney Magal, acerta nas coreografias, trejeitos e voz durante a narrativa. Vemos a sua entrega, sua alegria e comprometimento. Nos números musicais, embora seu tom de voz seja parecido com o de Magal, a mesa de som poderia dar a ele uma ajuda e fazer a sua voz ficar mais alta que os instrumentos, dando assim a potência vocal que Magal tem.

Izabella Bichalho é a mãe, Dona Sônia. Responsável pela condução da história, Izabella traz beleza, elegância, humor, inteligência cênica, uma voz impecável nas canções. Seus solos levam a plateia ao delírio! Aos gritos de bravo! É o elemento que aglutina os olhares e solidifica o espetáculo.

Sidney Magal tem em “Quero vê-la sorrir” uma homenagem que valoriza a sua carreira de (poucos) sucessos. Quem nunca cantou “Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar, quero ver o seu corpo dançar sem parar” que atire a primeira pedra. O meu sangue ferve muito por homenagens em vida a quem merece. Tenho certeza que se você, ao assistir o musical, seu corpo vai fazer que nem diz a música: estremece e já não consegue parar. Hey!. E-ô, e-ôw! Vá já se divertir, assistir e cantar com “Quero vê-la sorrir”. Viva Sidney Magal!

quinta-feira, 2 de junho de 2022

CÉU ESTRELADO


A primeira vez que eu vi, de verdade, um céu estrelado foi na cidade de Iguaba Grande, onde passávamos as férias de verão quando crianças. Era noite sem lua e graças à falta de luz, que eventualmente atingia a cidade, tivemos um mar de estrelas sobre nossas cabeças. Ali, minha avó me ensinou a localizar o Cruzeiro do Sul e as Três Marias. Ainda nesta mesma casa de férias, tempos depois, passamos a ter rodas de violas com moradores da região que volta e meia tomavam cachaça com os pais e maridos no bar próximo. Violões de muitas cordas, vozes de seresta sempre se faziam presentes naquela varanda, de frente pra lagoa de Araruama. Quem passava assistia à cantoria e pedia música. Não é à toa que todas as crianças que ali estiveram aprenderam a cantar os mais variados gêneros musicais brasileiros.

E Gustavo Nunes teve a ótima ideia de criar um musical que traz para nós um pouco deste cancioneiro popular do interior. Entende-se "interior" tudo aquilo que não está nos grandes centros urbanos. Logo, temos mais interior que cidade. Reunindo um time de primeira linha, é delicioso cantar, como se estivéssemos num rancho fundo, canções inesquecíveis, como Romaria. Minha favorita.

Carla Faour é a responsável pelo brilhante texto da peça. Acompanho seu trabalho farrétempo e, como disse a ela, Céu Estrelado, musical que está em cartaz no CCBB do Rio e vai circular pelos demais, é um dos seus melhores textos. Ali tem tudo: amor, saudade, dores ocultas, inveja, ciúme de pai e irmã, desejo de liberdade, medo da aventura, arrependimentos, mentiras e verdades na mesma medida e, acima de tudo, humanidade. Diálogos pertinentes, reais e possíveis nos contam a história de uma cantora que se aventura na cidade grande em busca da fama, mas que na visita aos parentes nota-se que o sonho ainda está na fase sonho, que a cidade do interior, parada no tempo, ainda reclama sua partida, embora rumos tenham sido tomados sem que ela saiba. Aí é lavação de roupa suja, ao redor de uma fogueira, embaixo de um céu estrelado. Carla nos brinda com um "plot twist" digno dos melhores filmes, quando o inesperado muda radicalmente os rumos dos personagens. E, acima de tudo, faz uma gigantesca crítica ao descaso das autoridades, à ganância, aos abusos de poder e as consequências da resposta da natureza.

João Fonseca e Vinicius Arneiro assinam uma direção tecnicamente perfeita, com total uso do palco e espaços, deixando os atores a vontade porém com marcas firmes. O trabalho da dupla é ótimo, uma vez que permite a condução da história por um caminho tranquilo e equilibra com os momentos de tensão e canção. Aplausos de pé para a cena sobre o praticável com elenco ao redor, naquela roda de viola onde olhares, ciúmes, amores são revelados por pequenos gestos e insinuações delicadas.

Super Nello Marrese cria a cenografia ótima com um talude ao fundo, um telão branco que é céu estrelado e ao mesmo tempo sol forte, um praticável que é varanda, palco, sala… Flavio Souza sabe das coisas e assina um figurino leve, colorido e totalmente de acordo com as características de cada personagem. Dani Sanches assina uma iluminação colorida, séria, alegre, nostálgica, que soma com qualidade seu trabalho aos demais.

Tony Lucchesi é o diretor musical e nos brinda com pérolas da música brasileira do interior, como Romaria, Pense em Mim, Evidências, entre tantas outras belíssimas canções. Temos Milton, Gil, Chico Cesar, Chico Buarque, Roberta Miranda, entre tantos outros. Uma seleção tipo canal do Spotify para ouvir a qualquer hora do dia! A ilustríssima presença do violonista Gabriel Quinto representa com qualidade, classe e talento todos os tocadores de viola deste país.

Não menos importante, temos um elenco brilhante em cena. Composto por cidades diversas, Natal, Recife, Angra dos Reis, Goiânia e Rio de Janeiro, os atores Bruno Garcia, Juliana Linhares, Daniel Carneiro, Dani Câmara, Hamilton Dias e Natasha Jascalevich, cada um a seu tempo, brilha intensamente sob este Céu Estrelado. Peço licença para um aplauso levemente maior a Juliana Linhares, gigante e forte.  

Quando escrevo muito é porque o assunto pede. Sabemos muito bem que é de sonho e de pó, o destino de um só. E que não precisamos ir bem pra lá do fim do mundo para conhecer e aprender sobre as belezas da vida no interior. Principalmente sobre a música de qualidade que retrata nosso país.

É importante ainda destacar que a peça toca na ferida das tragédias nossas de cada dia, como os ataques aos rios, montanhas e a natureza do interior. As explorações de metais que poluem os rios, os despejos das lamas tóxicas, os assoreamentos dos rios, as cheias descontroladas, a falta de investimento e segurança para os moradores.

Aproveite esta imensa oportunidade de rir, se emocionar, pensar e cantar que o espetáculo Céu Estrelado nos dá. Vá correndo ao CCBB e desfrute desta beleza de musical. Aplausos de pé com gritos de bravo!

segunda-feira, 30 de maio de 2022

PAI ILEGAL

Está em moda pensar no futuro do mundo distrópico (fui ao google: lugar hipotético que, numa sociedade futura, se define por situações de vida intoleráveis, opressoras e autoritárias). Temos exemplos: os seriados O Conto da Aia, The Man in the High Castle, Black Mirror. O que temos vivido nos últimos 10 anos no mundo, prova que este futuro louco é uma possibilidade. Aumento de autoritarismo, conservadorismo, retrocessos culturais e educacionais de governos, Rússia, Hungria, Polônia, Venezuela, EUA, Brasil, China, Myanmar... a lista de maldades em larga escala é grande. O que nos garante que a vida como a conhecemos permanecerá como está? Os astrólogos dizem que esta fase podre da humanidade tem os dias contados. Eu creio nos astros!

Está em cartaz por mais 2 semanas no Teatro Dulcina, “Pai Ilegal” o segundo espetáculo da trilogia sobre paternidade, idealizado pelo melhor ruivo do Rio de Janeiro, o Pedro Monteiro. Em 2021, Pedro lançou na internet a peça-filme “Pão e Circo” sobre o pai ausente que tenta resgatar o afeto do filho. Em “Pai Ilegal”, todo homem precisa de um alvará concedido pelo estado para se exercer pai.

O ótimo texto de Ulisses Mattos conta a história de Gabriel, preso ao ser parado numa blitz. Embora a documentação do veículo esteja em dia, Gabriel não dispõe de um “simples” documento que o autoriza a ser pai. Na cadeia, tenta a todo custo, entre banhos de sol, refeições e interrogatórios, convencer as carcereiras a deixá-lo participar do exame admissional da paternidade. Se ele vai conseguir se livrar da cadeia e receber o documento, só indo ao teatro para saber. Diálogos divertidos somados a monólogos de pensamentos reflexivos, fazem a plateia se identificar com as “agruras” da responsabilidade e desafios da criação de um recém-nascido.

A cenografia, assinada por Marieta Spada, é ótima! Cordas penduradas simulam grades, um praticável triangular é a cela. Mesas com rodinhas e bancos de ferro completam o ambiente com competência. Marieta também assina o figurino competente. A luz de João Gioia embeleza o palco e conduz os olhos do público. Destaque também para a ótima trilha sonora e direção musical de Marcelo Alonso Neves. Hanna Fasca assina a coreografia, que contribui para o tom da comédia da peça.

Henrique Tavares dirige o espetáculo com a qualidade, elegância e inteligência de sempre. Usando da própria estrutura do teatro como parte da prisão, vemos escadas que ligam palco às varandas superiores servindo ao espetáculo. Henrique faz cena na plateia, em todos os cantos do palco nú, sem pernas nem reguladores. Destaque para a ótima expressão corporal dos atores, as variações de interpretações das carcereiras e a hilária cena da prova de paternidade. Gargalhadas gerais!

Gabriela Estevão se diverte como Agente T e com isso passa toda sua beleza e alegria para o público. Juliana Guimarães faz de sua Isis uma carcereira rígida e hilária. Impossível não comparar com a irônica “Tia Lídia” do Conto da Aia. Uma ótima dupla afinada! Adorei o numero de dança à lá Cabaré.

Pedro Monteiro, além de idealizador, faz de seu Gabriel um pai herói. Se entregando de corpo e alma ao personagem, Pedro rasteja literalmente, leva seu desespero por viver aquela loucura a todos na plateia. Torcemos para que ele ganhe a liberdade. Nos identificamos com seu sofrimento pela distância da filha. Rimos com suas tentativas de convencer as carcereiras a deixa-lo fazer a prova. Sem dúvida, um trabalho de grande entrega e relevância para sua carreira.

“Pai Ilegal” discute com humor a importância do pai na criação. Nenhum pai precisa de uma carta de autorização para exercer sua função. Apenas estar presente e acompanhar o crescimento de seus filhos, mostrando caminhos, apoiando, corrigindo rotas, amparando nas quedas. “Não basta ser pai. Tem que participar.” é a maior frase clichê que se pode dizer para aqueles que estão com medo de encarar a criança que veio ao mundo. Pois saibam, pais leitores, seus filhos só querem a sua presença e apoio. Vocês serão sempre os melhores pais que seus filhos terão.

Corram para o Teatro Dulcina. Apenas mais 6 apresentações desta temporada inicial. “Pai Ilegal” é comédia com inteligência, conteúdo e, acima de tudo, humanidade. Aplausos de pé.


segunda-feira, 23 de maio de 2022

CUIDADO QUANDO FOR FALAR DE MIM

Toda noite, antes de dormir, lavo toda a louça da pia e guardo. Adoro amanhecer com pia vazia e limpa para o novo café. Mania?

Nesta época em que o mundo desaprendeu a amar, os dedos são apontados buscando culpados, o cancelamento nas redes sociais é uma constante, o linchamento público, o endeusamento de idiotas, é mais que urgente falar de amor, amor próprio, combater preconceitos de qualquer categoria e espalhar verdades. Aqui neste espaço, compactuamos com a verdade, buscamos informações relevantes, opino com base na ciência e, sim, é uma ditadura do meu gosto teatral!

Penduro as roupas de trás pra frente no varal. As maiores atrás, as menores na frente. Assim, o sol bate em todas de alguma forma. Mania?

Está em cartaz até dia 29 de maio, na sede da Cia dos Atores, na escada Selaron. na Lapa, o espetáculo “Cuidado quando for falar de mim”, idealizado e dirigido por Ricardo Santos, resultado de participação deste em reuniões de acolhimento da ONG Grupo Pela Vidda RJ, onde ele ia dar uma oficina de teatro. A oficina não veio, mas a partir desses encontros, Ricardo – que foi indicado ao prêmio Shell por O Rinoceronte – “percebeu o quanto era urgente falar do HIV, seus impactos na vida da população, os avanços da medicina e os estigmas de uma doença social”, conforme está escrito no release. 

E o resultado, o texto produzido por Carolina Lavigne é excelente. Os relatos são extremamente verdadeiros e encaixados numa sequência lógica que mantém o público alerta e atento a cada novo episódio vivido no palco. 

A direção do próprio Ricardo, sabe perfeitamente o que quer, não só dos atores, mas do texto, do espaço, da trilha e dos vídeos: apresentar pessoas que vivem com o vírus, de uma maneira normal, idêntica a qualquer ser humano cheio de manias. A presença do vírus para quem toma os antirretrovirais e está indetectável, é apenas algo a mais nas manias nossas de cada dia. Aplausos para a utilização do espaço cênico da Sede das Cias dos Atores. Para a calma em apresentar as histórias sem a correria em entregar o trabalho, para a dicção do elenco, para os vídeos que ilustram os relatos. Tudo funciona com excelência.

Todo dia, quando tá umas 17h30, eu molho as plantas do terraço e ligo a luz do abajur da mesa de cabeceira no quarto, mesmo que não esteja no ambiente. Mania.

A iluminação, assinada por Eugênio Gouveia é certeira, assim como o figurino criado por Tatiana Rodrigues. Também vale comentar a bela trilha sonora de Rodrigo Marçal. Que equipe afinada!

Quando eu trabalhava numa grande empresa de comunicação, antes de ir embora para casa, independente da hora, organizava a estação de trabalho. As pessoas diziam que eu “entrava de férias todos os dias”, pois a mesa ficava arrumada ao sair. Eu pensava na pessoa da limpeza que ia passar por lá e ficaria incomodado em tirar algo do lugar bagunçado. Mania.

O ma-ra-vi-lho-so elenco, formado por Higor Campagnaro, Juracy de Oliveira, Laura Araújo, Maurício Lima, Nina da Costa Reis, Taye Couto e Whiverson Reis, tem atuação digna de aplausos de pé. Sábios em cena, usam todas as ferramentas disponíveis para contar suas histórias, cada um protagonizando uma parte da peça. Atores do maior gabarito que só tem a orgulhar seus mestres e colegas. Ainda temos a participação em vídeo de Jordhan Lessa, que faz uma contribuição extremamente rica com sua história.

Tenho mania de escrever minha opinião sobre peças de teatro que assisto e gosto.

Hoje contei algumas das minhas manias. Não foi por acaso. Ao final da peça, no telão, pessoas comuns e diversas contam causos e manias de suas vidas comuns. E, uma delas, conta que é HIV positivo, fazendo parte dos relatos naturais do mundo. Ainda não é, mas deveria ser. Deveríamos debater e combater o preconceito, falar sobre o vírus, a vida normal, contágios... Durante a pandemia da Covid19 aprendemos a conviver com infectados, a cuidar deles. Nos vacinamos e agora dominamos a coronga. Assim é que devemos tratar o HIV, como algo que se pode conviver de uma maneira tão normal quanto as manias e causos que todo mundo tem. 

Vida longa ao espetáculo “Cuidado quando for falar de mim”. Que seu legado de informação e esclarecimento seja eterno. Aplausos de pé.