segunda-feira, 30 de maio de 2022

PAI ILEGAL

Está em moda pensar no futuro do mundo distrópico (fui ao google: lugar hipotético que, numa sociedade futura, se define por situações de vida intoleráveis, opressoras e autoritárias). Temos exemplos: os seriados O Conto da Aia, The Man in the High Castle, Black Mirror. O que temos vivido nos últimos 10 anos no mundo, prova que este futuro louco é uma possibilidade. Aumento de autoritarismo, conservadorismo, retrocessos culturais e educacionais de governos, Rússia, Hungria, Polônia, Venezuela, EUA, Brasil, China, Myanmar... a lista de maldades em larga escala é grande. O que nos garante que a vida como a conhecemos permanecerá como está? Os astrólogos dizem que esta fase podre da humanidade tem os dias contados. Eu creio nos astros!

Está em cartaz por mais 2 semanas no Teatro Dulcina, “Pai Ilegal” o segundo espetáculo da trilogia sobre paternidade, idealizado pelo melhor ruivo do Rio de Janeiro, o Pedro Monteiro. Em 2021, Pedro lançou na internet a peça-filme “Pão e Circo” sobre o pai ausente que tenta resgatar o afeto do filho. Em “Pai Ilegal”, todo homem precisa de um alvará concedido pelo estado para se exercer pai.

O ótimo texto de Ulisses Mattos conta a história de Gabriel, preso ao ser parado numa blitz. Embora a documentação do veículo esteja em dia, Gabriel não dispõe de um “simples” documento que o autoriza a ser pai. Na cadeia, tenta a todo custo, entre banhos de sol, refeições e interrogatórios, convencer as carcereiras a deixá-lo participar do exame admissional da paternidade. Se ele vai conseguir se livrar da cadeia e receber o documento, só indo ao teatro para saber. Diálogos divertidos somados a monólogos de pensamentos reflexivos, fazem a plateia se identificar com as “agruras” da responsabilidade e desafios da criação de um recém-nascido.

A cenografia, assinada por Marieta Spada, é ótima! Cordas penduradas simulam grades, um praticável triangular é a cela. Mesas com rodinhas e bancos de ferro completam o ambiente com competência. Marieta também assina o figurino competente. A luz de João Gioia embeleza o palco e conduz os olhos do público. Destaque também para a ótima trilha sonora e direção musical de Marcelo Alonso Neves. Hanna Fasca assina a coreografia, que contribui para o tom da comédia da peça.

Henrique Tavares dirige o espetáculo com a qualidade, elegância e inteligência de sempre. Usando da própria estrutura do teatro como parte da prisão, vemos escadas que ligam palco às varandas superiores servindo ao espetáculo. Henrique faz cena na plateia, em todos os cantos do palco nú, sem pernas nem reguladores. Destaque para a ótima expressão corporal dos atores, as variações de interpretações das carcereiras e a hilária cena da prova de paternidade. Gargalhadas gerais!

Gabriela Estevão se diverte como Agente T e com isso passa toda sua beleza e alegria para o público. Juliana Guimarães faz de sua Isis uma carcereira rígida e hilária. Impossível não comparar com a irônica “Tia Lídia” do Conto da Aia. Uma ótima dupla afinada! Adorei o numero de dança à lá Cabaré.

Pedro Monteiro, além de idealizador, faz de seu Gabriel um pai herói. Se entregando de corpo e alma ao personagem, Pedro rasteja literalmente, leva seu desespero por viver aquela loucura a todos na plateia. Torcemos para que ele ganhe a liberdade. Nos identificamos com seu sofrimento pela distância da filha. Rimos com suas tentativas de convencer as carcereiras a deixa-lo fazer a prova. Sem dúvida, um trabalho de grande entrega e relevância para sua carreira.

“Pai Ilegal” discute com humor a importância do pai na criação. Nenhum pai precisa de uma carta de autorização para exercer sua função. Apenas estar presente e acompanhar o crescimento de seus filhos, mostrando caminhos, apoiando, corrigindo rotas, amparando nas quedas. “Não basta ser pai. Tem que participar.” é a maior frase clichê que se pode dizer para aqueles que estão com medo de encarar a criança que veio ao mundo. Pois saibam, pais leitores, seus filhos só querem a sua presença e apoio. Vocês serão sempre os melhores pais que seus filhos terão.

Corram para o Teatro Dulcina. Apenas mais 6 apresentações desta temporada inicial. “Pai Ilegal” é comédia com inteligência, conteúdo e, acima de tudo, humanidade. Aplausos de pé.


segunda-feira, 23 de maio de 2022

CUIDADO QUANDO FOR FALAR DE MIM

Toda noite, antes de dormir, lavo toda a louça da pia e guardo. Adoro amanhecer com pia vazia e limpa para o novo café. Mania?

Nesta época em que o mundo desaprendeu a amar, os dedos são apontados buscando culpados, o cancelamento nas redes sociais é uma constante, o linchamento público, o endeusamento de idiotas, é mais que urgente falar de amor, amor próprio, combater preconceitos de qualquer categoria e espalhar verdades. Aqui neste espaço, compactuamos com a verdade, buscamos informações relevantes, opino com base na ciência e, sim, é uma ditadura do meu gosto teatral!

Penduro as roupas de trás pra frente no varal. As maiores atrás, as menores na frente. Assim, o sol bate em todas de alguma forma. Mania?

Está em cartaz até dia 29 de maio, na sede da Cia dos Atores, na escada Selaron. na Lapa, o espetáculo “Cuidado quando for falar de mim”, idealizado e dirigido por Ricardo Santos, resultado de participação deste em reuniões de acolhimento da ONG Grupo Pela Vidda RJ, onde ele ia dar uma oficina de teatro. A oficina não veio, mas a partir desses encontros, Ricardo – que foi indicado ao prêmio Shell por O Rinoceronte – “percebeu o quanto era urgente falar do HIV, seus impactos na vida da população, os avanços da medicina e os estigmas de uma doença social”, conforme está escrito no release. 

E o resultado, o texto produzido por Carolina Lavigne é excelente. Os relatos são extremamente verdadeiros e encaixados numa sequência lógica que mantém o público alerta e atento a cada novo episódio vivido no palco. 

A direção do próprio Ricardo, sabe perfeitamente o que quer, não só dos atores, mas do texto, do espaço, da trilha e dos vídeos: apresentar pessoas que vivem com o vírus, de uma maneira normal, idêntica a qualquer ser humano cheio de manias. A presença do vírus para quem toma os antirretrovirais e está indetectável, é apenas algo a mais nas manias nossas de cada dia. Aplausos para a utilização do espaço cênico da Sede das Cias dos Atores. Para a calma em apresentar as histórias sem a correria em entregar o trabalho, para a dicção do elenco, para os vídeos que ilustram os relatos. Tudo funciona com excelência.

Todo dia, quando tá umas 17h30, eu molho as plantas do terraço e ligo a luz do abajur da mesa de cabeceira no quarto, mesmo que não esteja no ambiente. Mania.

A iluminação, assinada por Eugênio Gouveia é certeira, assim como o figurino criado por Tatiana Rodrigues. Também vale comentar a bela trilha sonora de Rodrigo Marçal. Que equipe afinada!

Quando eu trabalhava numa grande empresa de comunicação, antes de ir embora para casa, independente da hora, organizava a estação de trabalho. As pessoas diziam que eu “entrava de férias todos os dias”, pois a mesa ficava arrumada ao sair. Eu pensava na pessoa da limpeza que ia passar por lá e ficaria incomodado em tirar algo do lugar bagunçado. Mania.

O ma-ra-vi-lho-so elenco, formado por Higor Campagnaro, Juracy de Oliveira, Laura Araújo, Maurício Lima, Nina da Costa Reis, Taye Couto e Whiverson Reis, tem atuação digna de aplausos de pé. Sábios em cena, usam todas as ferramentas disponíveis para contar suas histórias, cada um protagonizando uma parte da peça. Atores do maior gabarito que só tem a orgulhar seus mestres e colegas. Ainda temos a participação em vídeo de Jordhan Lessa, que faz uma contribuição extremamente rica com sua história.

Tenho mania de escrever minha opinião sobre peças de teatro que assisto e gosto.

Hoje contei algumas das minhas manias. Não foi por acaso. Ao final da peça, no telão, pessoas comuns e diversas contam causos e manias de suas vidas comuns. E, uma delas, conta que é HIV positivo, fazendo parte dos relatos naturais do mundo. Ainda não é, mas deveria ser. Deveríamos debater e combater o preconceito, falar sobre o vírus, a vida normal, contágios... Durante a pandemia da Covid19 aprendemos a conviver com infectados, a cuidar deles. Nos vacinamos e agora dominamos a coronga. Assim é que devemos tratar o HIV, como algo que se pode conviver de uma maneira tão normal quanto as manias e causos que todo mundo tem. 

Vida longa ao espetáculo “Cuidado quando for falar de mim”. Que seu legado de informação e esclarecimento seja eterno. Aplausos de pé.


domingo, 15 de maio de 2022

A CORRIDA DO OURO

Foi em novembro de 1993 que estreou a novela Fera Ferida, na TV Globo. Época em que nem sonhávamos com os enlatados de streaming. As novelas tinham por base obras de grandes escritores da literatura brasileira. E Aguinaldo Silva pegou emprestado de Lima Barreto algumas histórias, entre elas “A Nova Califórnia”. Edson Celulari, com seu Raimundo Flamel, foi o grande protagonista, ao lado de Giulia Gam, a mocinha.

É extremamente louvável que atualmente tenhamos, em cena, um espetáculo teatral baseado em um conto de Lima Barreto. Em “A Corrida do Ouro”, espetáculo do núcleo de estudos Maschere Ateliê – pesquisa em máscaras teatrais, criado por Eduardo Vaccari, para estudar e investigar o teatro e as máscaras, o conto “A Nova Califórnia” volta à cena.

Ora veja você: o conto, e a peça, falam de ambição, cobiça, crenças, conservadorismo, quebra de padrões comportamentais por conta do vil metal. As máscaras caem! Nada mais apropriado para o momento atual e, consequentemente, o estudo do grupo de teatro. A chagada do estrangeiro que transforma osso em ouro, faz com a pacata cidade se transforme num pandemônio! E o texto da peça “A Corrida do Ouro” explora o que de melhor tem no conto de Lima Barreto com diálogos e narrativas bem escritas.

No imenso palco do belíssimo Teatro Odylo Costa Filho, na UERJ, temos uma área de encenação delimitada por um piso cor de terra, muitas malas e escadas. Assinam a cenografia Alice Bodanzky e Eduardo Vaccari. Uma cenografia funcional que atente aos desejos da encenação. Apenas uma das escadas é utilizada. Deduzi que todas estejam ali para representar as colinas em volta do povoado. Como sugestão, seria interessante ter mais alguns elementos criativos que delimitassem a casa de Flamel, no topo da montanha. Um painel que descesse na vara de cenário com uma indicação de casa, talvez um painel fundo de palco, certamente enriqueceria mais o espetáculo. Destaque positivo para os bonecos de Fernanda Klayn.

O figurino de Nivea Faso é bonito e atende ao propósito. Compondo os personagens, as máscaras, tema do grupo, tem grande presença cênica. Embora bonitas e bem confeccionadas, fica o alerta para que se experimentem alguma outra forma de dar maleabilidade às máscaras, pois, em alguns momentos, perdemos o texto falado, que ficou abafado dentro da máscara de alguns dos personagens. É só um alerta, sem desabonar o espetáculo.

A luz de Maurício Fuziyama e Rommel Equer é uma beleza! Usando tudo que os refletores disponíveis podem oferecer, com recortes de caminhos pelo palco, cores e clareza. Linda luz.

A trilha sonora, executada ao vivo, e com maestria, é assinada pelo sempre genial Charles Kann. Os músicos presentes em cena executam toda a sonoplastia e músicas que, ora na tensão, ora no humor, conduzem a plateia ao ponto desejado. Aplausos para o cantar do galo – quem assistir à peça, entenderá! – Ótimo!

Caso a direção de movimento seja criação do diretor Eduardo Vaccari, aplausos de pé! Assim como toda a direção do espetáculo. Segura, firme, consciente, utilizando de fotografias lindas, como o momento da chegada do forasteiro desenhando, com elenco, um trem no fundo do palco; também na belíssima cena do farmacêutico abrindo e fechando portas e armários, feitos com as malas; e a cena em que acontece o ataque ao cemitério em busca dos ossos, são cenas lindas, coloridas, divertidas e criativas.

E, não menos importante, o excelente e numeroso elenco que se dedica a esta montagem. São eles: Aline Marosa, Arianne Felix, Fernanda Klayn, Gabriel Moura, Gabriela Checchia, Julia Pastore, Nathalia Cantarino, Rodrigo Ladeira, Rodrigo Lima, Thiago Penna Firme e Yani Patuzzo. Entregues, seguros, conscientes de seus trabalhos. Destaque para o “farmacêutico”, só porque foi o que mais gostei.

É contagiante assistir a um espetáculo excelente, de grande qualidade, no teatro da UERJ. Por incrível que pareça, foi a primeira vez que eu entrei lá. Rato de teatro que sou, adoraria que a universidade, os administradores do espaço, avaliassem a realização de mais e mais montagens deste nível, deste competente grupo, para que a população possa assistir outros trabalhos deste e outros grupos neste espaço necessário e confortável. 

Vida longa ao Maschere Ateliê e ao espetáculo “A Corrida do Ouro”. A apresentação de trabalhos de qualidade, iguais a este, só engrandecem a nossa cultura, valoriza e enriquece a cena teatral carioca. Aplausos de pé.