terça-feira, 4 de julho de 2023

CARTAS DE DARCY


Uma pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2019, lista os países que mais investem em educação: 1° Luxemburgo; 2° Áustria; 3° Bélgica; 4° Noruega; 5° Estados Unidos; 6° Coreia do Sul; 7° Suécia; 8° Canadá; 9° França; 10° Holanda. Não é à toa que os resultados estão aí, para quem quiser ver.

Embora o investimento no Brasil seja muito impressionante, também é mal distribuído pelo país. No PISA, a principal régua de avaliação de desempenho escolar internacional, nosso país ocupa a 58ª posição entre 79 países avaliados. Os motivos, não me cabe elencar aqui, estamos cientes: corrupção, má distribuição, falta de professores, fraco preparo dos mestres, e assim sucessivamente. “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” – Darcy Ribeiro

Recentemente tive a grata surpresa de levar o projeto Lê Pra Mim? a 15 escolas públicas de Minas Gerais. Além disso, levamos a peça A Caixa Mágica dos Primeiros Socorros também para o interior de Minas Gerais e é surpreendente a qualidade das escolas onde nos apresentamos. Dá gosto estudar naquelas escolas que visitamos. Mas... e o conteúdo? E o ensino? O Novo Ensino Médio traz inúmeras discussões e precisa ser mais debatido com quem entende do assunto.

Assisti, infelizmente, a última apresentação do espetáculo “Cartas de Darcy”, na sala Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim. Como diz o release: “a peça aborda a trajetória de Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais brasileiros, a partir das memórias de infância de um professor. O que diria Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, sobre o Brasil na atualidade? E se pudesse escrever cartas ao povo brasileiro? Essas reflexões são o ponto de partida de ‘Cartas de Darcy’”.

Idealizado, escrito e apresentado por Max Oliveira, integrante do grupo Poeira da História, propõe um teatro-documentário, onde a vida do professor-ator se mistura com a história do mestre-ministro-imortal Darcy Ribeiro. Para você que não sabe de quem estamos falando, Darcy idealizou a Passarela do Samba (sambódromo do RJ), criou o Parque Indígena do Xingu e fundou a Universidade de Brasília. Não é pouca coisa. Ele mudou a educação brasileira enquanto esteva atuante. E o texto conta estes feitos históricos com pitadas de vida real de um professor. Ótimo trabalho de pesquisa e dramaturgia (supervisão de Fabrício Branco).

A direção de arte, assinada por Oswaldo Eduardo Lioi, cria um ambiente que permite a projeção de cenas, misturado com fragmentos de quadros negros, inclui cadeiras de madeira, carteira e banco. Como se fosse realmente uma sala de aula estilizada. Ótimo também é o figurino, que permite elegância, mobilidade e coloca o professor e o narrador em posições de atenção. Muito criativa é a luz de Hebert Said, que faz milagres naquele micro-espaço cênico. Vale ainda uma atenção à trilha sonora de Carmen Frenzel e Max Oliveira.

Max está muito bem no palco, emocionado, dedicado, um verdadeiro professor nos ensinando mais e mais sobre Darcy Ribeiro e colocando um pouco de sua história de professor para o público que não lhe conhece. Isto é muito bom, pois aproxima a todos. Promovendo a conversa com a plateia temos a sensação de estarmos realmente em uma sala de aula. Max domina a todos como um professor competente.

Carmen Franzem faz aqui um excelente trabalho de direção. Ocupa todo o espaço cênico, cria cenas que leva o público às lágrimas, misturada com risos de esperança. Carmen ao mesmo tempo que usa a linguagem de documentário para o tema, promove o bom teatro, com falas emocionadas, traz a peça para a realidade atual quando, de forma elegante, cita o ex-presidente inelegível e mostra que tudo piorou nos anos em que estevem no planalto. É ótimo o momento em que abre para o público se manifestar sobre saber ou não quem é Darcy Ribeiro e, na récita que assisti, recebemos de presente uma leitura de cordel falando justamente do personagem principal. Excelente.

É impossível não se lembrar de seus professores, do quanto eles foram importantes para nossa instrução. Levei minha mãe, professora, para assistir ao espetáculo e a sua alma saiu lavada. Objetivo atingido! 

“Cartas de Darcy” é destes espetáculos que precisam estar em cartaz por muito tempo, para que lembremos do legado, história, projetos do mestre Darcy Ribeiro, para que muitos professores possam assistir e voltarem a acreditar nesta profissão – o professor, o mestre - para que forme muitos outros Darcy Ribeiros apaixonados pela arte de ensinar.

“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”
(Darcy Ribeiro)

Aplausos de pé com muita emoção e agradecimento para este espetáculo. Viva Darcy Ribeiro, viva o Poeira de Histórias! Viva o teatro!

domingo, 2 de julho de 2023

GARGALHADA SELVAGEM


O humor é necessário até para incomodar. Não fosse isso, a onda do “politicamente correto” não teria sido tão tsunami na vida dos comediantes. Óbvio que preconceitos de toda forma e aquele humor que humilha devem ser sumariamente guardados na história da comédia. Temos visto ao longo dos anos a mudança da forma de se fazer humor. Lembro dos bordões dos programas de televisão que eram citados ad eternum pelo povo na rua: “Tem pai que é cego”, “Coisas de Laurinha”, “Ai, se ela me desse bola...”, “Ai, como eu to bandida!”, “Olha a faca!”. Depois vieram os “stand-up comedy” (que se sustentam até hoje) e o brilhante humor do Tv Pirata e Casseta e Planeta, que teve como sequência os hilários programas da MTV que revelaram Dani Calabresa, Tatá Wernek, Marcelo Adnet entre outros. Daí, a Globo, que não é boba, trouxe a nova turma para sua grade de tv aberta e o resultado são programas hilários onde tudo é permitido, desde que não agrida, não difame e não machuque ninguém.

Particularmente eu adoro aquele humor que incomoda. Aquele que ruboriza as senhorinhas de cabelo laquê com rinsagem. A gargalhada ansiosa e constrangida diante de fatos e tabus que já aconteceram com quem ri. O nervoso da risada diante do parceiro do lado que está completamente atônito com o que se vê no palco. É esse o humor que eu gosto. Pra causar incômodo, pois só assim, tocando o dedo na ferida com graça – ou desconforto – é que se pode, de alguma forma, fazer as pessoas pensarem nos absurdos que dizem, fazem, veneram, propagam, adoram...

Está em cartaz no Teatro XP, o bom e acolhedor Teatro do Jockey, a hilariante comédia Gargalhada Selvagem. Escrita por Christopher Durang e adaptado por Bárbara Duvivier e Guilherme Weber, a comédia é resumidamente o encontro entre um homem e uma mulher num supermercado, o que pensam, como reagem, como se enxergam, como se comportam e os desdobramentos deste encontro. É muito engraçado. Muito mesmo.

No palco, temos o cenário de Dina Salem Levy, os figurinos e adereços de Kika Lopes, a trilha sonora de Jayme Monsanto e a luz de Renato Machado auxiliando na diversão. 

Guilherme Weber é o diretor. Ótimo seu trabalho. No programa, sabemos que ele bebeu na fonte e presta “uma homenagem à comédia como linguagem. Estamos compondo em cena diferentes expressões da comédia e do humor: piada de salão, número de plateia, humor físico, paródia, stand up, chanchada…”. A peça tem estes momentos muito bem definidos e aproveitados. Faltou ainda dizer que temos pitadas de Vaudeville. Um trabalho minucioso de carinho e respeito pela arte, pela comédia, pelo público e pelos atores.

Joel Vieira, em participação mais que especial, está sensacional em cena. Sua aparição apimenta e intensifica o espetáculo. É dele as “piores” (no meu olhar, as melhores!) falas da peça, aquelas que constrangem, ruborizam, envergonham os laquês, os botox e os fios de ouro das faces abastadas de dinheiro e pouca evolução. Joel não se envergonha do que é dito pelo seu personagem e isto faz com que seu texto saia natural. É hilária de gouveia a sua entrada, a sua permanência incomodativa naquele jantar constrangedor do casal protagonista. Aplausos de pé.

Alexandra Richter está ótima. Dando mais que tudo de si, vemos até o suor escorrendo de sua testa quando ela tira leite de pedra de um texto extremamente difícil e uma composição de personagem cheia de referências. Temos lembrança sua de quando, carinhosamente, homenageou a brilhante Lucille Ball (na peça Uma Loira na Lua) e isto é muito bom. Alexandra segue à risca as marcas propostas, surfa no texto saboreando as palavras e empresta seu talento para compor aquele personagem que beira a doida, a louca, a fora da casinha.

Rodrigo Fagundes é um dos grande comediantes e atores deste Brasil. Desde sua entrada em cena até a última respiração, ele aproveita tudo. Repete bordões – turobon? -, repete cenas, gestos, partituras, com o intuito de trazer a graça para além da palavra. Aproveita o número de plateia para fazer as pessoas pensarem ao invés de constrangê-las. É óbvio que Deus não está no silêncio do Holocausto e nem na criação de doenças virais. Mas aos adoradores do Criador, só mesmo um tapa na cara – daqueles que se dá em que está surtado – irá fazer com que olhem para o que dizem e reflitam. Rodrigo é mágico. Claro que também tem aqui um carinho especial pelo amigo que me abraça sempre, mas independente do imenso afeto e admiração, seu trabalho em Gargalhada Selvagem é muito maravilhoso.

As atuações da peça Gargalhadas Selvagem me lembraram dois seriados na Netflix; Atypical e Uma Advogada Extraordinária, onde os personagens principais vivem em seus mundos particulares e, numa visão de fora, pode causar estranheza e até mesmo risos. Ontem alguém me disse que a vida de Bob Esponja tem uma interpretação de um olhar de um autista sobre o mundo. O mundo colorido, com humor, a amizade, a repetição, tudo realmente lembra um comportamento autista. Que fique registrado que em Gargalhada Selvagem não se tem personagens autistas, mas foi apenas uma referência que me lembrou.

Pra finalizar, sem mais delongas: compre vários ingressos para se distrair, gargalhar, pensar e aplaudir este espetáculo de comédia único. Eu garanto pelo menos uma gargalhada daquelas de lavar a alma. E não se reprima se, ao ouvir palavras de baixo calão no palco, sua vontade de rir dobrar de tamanho. 

Este espetáculo é um acerto em todos os sentidos da dupla Bruna Dornelles e Wesley Teles – WB Produções – e chega em ótima hora aos palcos brasileiros. Precisamos deixar de lado o politicamente correto e trazer o humor deboche, incomodativo, agressivo, ferino de volta aos palcos. Mantendo sempre a atenção para a não agressão. 

Gargalhada Selvagem é exatamente isto que se propõe: um riso solto e alto em cima da selvageria dos humanos nos tempos atuais. Sensacional. Aplausos de pé sem fim. Viva a comédia, viva o teatro!!