domingo, 2 de julho de 2023

GARGALHADA SELVAGEM


O humor é necessário até para incomodar. Não fosse isso, a onda do “politicamente correto” não teria sido tão tsunami na vida dos comediantes. Óbvio que preconceitos de toda forma e aquele humor que humilha devem ser sumariamente guardados na história da comédia. Temos visto ao longo dos anos a mudança da forma de se fazer humor. Lembro dos bordões dos programas de televisão que eram citados ad eternum pelo povo na rua: “Tem pai que é cego”, “Coisas de Laurinha”, “Ai, se ela me desse bola...”, “Ai, como eu to bandida!”, “Olha a faca!”. Depois vieram os “stand-up comedy” (que se sustentam até hoje) e o brilhante humor do Tv Pirata e Casseta e Planeta, que teve como sequência os hilários programas da MTV que revelaram Dani Calabresa, Tatá Wernek, Marcelo Adnet entre outros. Daí, a Globo, que não é boba, trouxe a nova turma para sua grade de tv aberta e o resultado são programas hilários onde tudo é permitido, desde que não agrida, não difame e não machuque ninguém.

Particularmente eu adoro aquele humor que incomoda. Aquele que ruboriza as senhorinhas de cabelo laquê com rinsagem. A gargalhada ansiosa e constrangida diante de fatos e tabus que já aconteceram com quem ri. O nervoso da risada diante do parceiro do lado que está completamente atônito com o que se vê no palco. É esse o humor que eu gosto. Pra causar incômodo, pois só assim, tocando o dedo na ferida com graça – ou desconforto – é que se pode, de alguma forma, fazer as pessoas pensarem nos absurdos que dizem, fazem, veneram, propagam, adoram...

Está em cartaz no Teatro XP, o bom e acolhedor Teatro do Jockey, a hilariante comédia Gargalhada Selvagem. Escrita por Christopher Durang e adaptado por Bárbara Duvivier e Guilherme Weber, a comédia é resumidamente o encontro entre um homem e uma mulher num supermercado, o que pensam, como reagem, como se enxergam, como se comportam e os desdobramentos deste encontro. É muito engraçado. Muito mesmo.

No palco, temos o cenário de Dina Salem Levy, os figurinos e adereços de Kika Lopes, a trilha sonora de Jayme Monsanto e a luz de Renato Machado auxiliando na diversão. 

Guilherme Weber é o diretor. Ótimo seu trabalho. No programa, sabemos que ele bebeu na fonte e presta “uma homenagem à comédia como linguagem. Estamos compondo em cena diferentes expressões da comédia e do humor: piada de salão, número de plateia, humor físico, paródia, stand up, chanchada…”. A peça tem estes momentos muito bem definidos e aproveitados. Faltou ainda dizer que temos pitadas de Vaudeville. Um trabalho minucioso de carinho e respeito pela arte, pela comédia, pelo público e pelos atores.

Joel Vieira, em participação mais que especial, está sensacional em cena. Sua aparição apimenta e intensifica o espetáculo. É dele as “piores” (no meu olhar, as melhores!) falas da peça, aquelas que constrangem, ruborizam, envergonham os laquês, os botox e os fios de ouro das faces abastadas de dinheiro e pouca evolução. Joel não se envergonha do que é dito pelo seu personagem e isto faz com que seu texto saia natural. É hilária de gouveia a sua entrada, a sua permanência incomodativa naquele jantar constrangedor do casal protagonista. Aplausos de pé.

Alexandra Richter está ótima. Dando mais que tudo de si, vemos até o suor escorrendo de sua testa quando ela tira leite de pedra de um texto extremamente difícil e uma composição de personagem cheia de referências. Temos lembrança sua de quando, carinhosamente, homenageou a brilhante Lucille Ball (na peça Uma Loira na Lua) e isto é muito bom. Alexandra segue à risca as marcas propostas, surfa no texto saboreando as palavras e empresta seu talento para compor aquele personagem que beira a doida, a louca, a fora da casinha.

Rodrigo Fagundes é um dos grande comediantes e atores deste Brasil. Desde sua entrada em cena até a última respiração, ele aproveita tudo. Repete bordões – turobon? -, repete cenas, gestos, partituras, com o intuito de trazer a graça para além da palavra. Aproveita o número de plateia para fazer as pessoas pensarem ao invés de constrangê-las. É óbvio que Deus não está no silêncio do Holocausto e nem na criação de doenças virais. Mas aos adoradores do Criador, só mesmo um tapa na cara – daqueles que se dá em que está surtado – irá fazer com que olhem para o que dizem e reflitam. Rodrigo é mágico. Claro que também tem aqui um carinho especial pelo amigo que me abraça sempre, mas independente do imenso afeto e admiração, seu trabalho em Gargalhada Selvagem é muito maravilhoso.

As atuações da peça Gargalhadas Selvagem me lembraram dois seriados na Netflix; Atypical e Uma Advogada Extraordinária, onde os personagens principais vivem em seus mundos particulares e, numa visão de fora, pode causar estranheza e até mesmo risos. Ontem alguém me disse que a vida de Bob Esponja tem uma interpretação de um olhar de um autista sobre o mundo. O mundo colorido, com humor, a amizade, a repetição, tudo realmente lembra um comportamento autista. Que fique registrado que em Gargalhada Selvagem não se tem personagens autistas, mas foi apenas uma referência que me lembrou.

Pra finalizar, sem mais delongas: compre vários ingressos para se distrair, gargalhar, pensar e aplaudir este espetáculo de comédia único. Eu garanto pelo menos uma gargalhada daquelas de lavar a alma. E não se reprima se, ao ouvir palavras de baixo calão no palco, sua vontade de rir dobrar de tamanho. 

Este espetáculo é um acerto em todos os sentidos da dupla Bruna Dornelles e Wesley Teles – WB Produções – e chega em ótima hora aos palcos brasileiros. Precisamos deixar de lado o politicamente correto e trazer o humor deboche, incomodativo, agressivo, ferino de volta aos palcos. Mantendo sempre a atenção para a não agressão. 

Gargalhada Selvagem é exatamente isto que se propõe: um riso solto e alto em cima da selvageria dos humanos nos tempos atuais. Sensacional. Aplausos de pé sem fim. Viva a comédia, viva o teatro!!


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