domingo, 24 de setembro de 2023

NEURA!

Os dados não mentem jamais: é público e notório que o distanciamento social, provocados pela pandemia, afloraram as neuroses nossas de cada dia. De acordo com levantamento do Colégio Notarial do Brasil, entre janeiro e junho de 2021, o país teve 37.083 divórcios, que significa 24% maior do que em 2020, no mesmo período. Em todo ano de 2020, foram 76.175 divórcios, 1,5% a mais do que em 2019. De perto, ninguém é normal...

Já dizia o sábio Millor Fernandes “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”. 

Pois depois de falar sobre a loucura da civilização no espetáculo "Caos" e mergulhar na sobrevivência consigo mesma durante a pandemia, a atriz e dramaturga Rita Fischer traz para a cena carioca o espetáculo Neura, texto de sua autoria, que trata de uma relação "levemente" neurótica entre um casal recém formado. Sempre ágil, atual e comunicativo, o texto de Rita Fischer beira o politicamente-incorreto, passando pela tangente dos cancelamentos das redes sociais. Numa constante corda bamba entre o risco da critica pesada e a aceitação por apenas parte da plateia, mantendo a dúvida sobre se é ou não de bom tom, o texto fica no fio da navalha. O melhor de tudo é que comunica com a plateia.

No espetáculo, uma mulher recém-casada reclama neuroticamente com o recém-marido por tudo: pela recém-lua-de-mel, pela recém-falta-do-sexo, e por outros “recéns” acontecimentos que deixam o marido baratinado. Ela não fica quieta um minuto sequer... será que ele não poderia ter feito um test-drive em uma viagem para definir se deveria ou não casar com esta doida? Eis o mistério da fé...

No palco temos o cenário do sempre criativo Nello Marrese, com roupas penduradas no varal, lavadas e em processo de secagem, e uma máquina de lavar roupas. Ora... Nello nos propõe uma piada-visual: a peça é lavação de roupa suja o tempo todo!! O figurino é assinado por Alice Demier e a iluminação é do Diego Diener, que no pequeno espaço do Cândido Mendes faz milagres com sua luz. Temos ainda a trilha sonora original de Ronald Sales.

Thiago Bomilcar Braga assina a direção do espetáculo, deixando o elenco à vontade para criar cacos e aproveitar a proximidade da plateia para acrescentar piadas ao texto. Atento aos detalhes, Thiago promove marcas dinâmicas e criativas, utilizando-se do que tem à disposição de espaço e objetos de cena. Como os atores são craques, ele mantém o espetáculo limpo, colocando freios de acomodação para que as viagens não sigam para maioneses muito grandes!

Vital Neto é o marido. Presente, rápido e seguro, Vital nos oferece um personagem que não se curva à verborragia da mulher, e até às vezes acha graça da louca que ele doma. Ela, sem perceber, faz sempre o que o marido quer... Ótimo trabalho.

Rita Fischer tem um gigante domínio de cena. Atenta aos detalhes, temos ali, no palco, reverberações de Dercy Gonçalvez e Lucille Ball, gênias do humor. Derci com sua marca registrada no desbocado e Lucille com sua marca nas caretas e situações do dia a dia de um casal. É impossível prender a gargalhada com as frases que Rita dispara rapidamente. Tivemos que conter o riso quando Rita aproveitou a passagem de uma espectadora na frente do palco indo "sabe-se lá pra onde", transformando uma cena fúnebre em fantasmagórica. Hilário!

E quem não tem neuras, manias, manhas e TOC’s que atire a primeira pedra! Tenho vários! E já vou avisando aos navegantes do momento, que ninguém vem com bula. Temos que ir descobrindo os desejos e comportamentos dos outros com a convivência. Às vezes duradoura, às vezes “the flash”.

Vá já para o teatro Cândido Mendes e divirta-se com este espetáculo de Rita Fischer, sob a batuta de Vital Neto na realização. Certamente, ao assistir ao espetáculo, você irá se perguntar: neurose tem cura? O google já responde: “Não existe cura, pois ela não é considerada uma doença, mas um estado psicológico. O estado de neurose é um modo do inconsciente mesmo que limitado, o expressar de alguma forma.” Então, nos cabe ir ao teatro e gargalhar! Aplausos de pé.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

NINAS

Após uma breve pausa nos escritos neste espaço, que começou na véspera da saída de férias em julho, eis-me aqui, senhor, para tecer loas e comentários favoráveis ao espetáculo que mexeu gostoso com todos os meus sentimentos. Claro que, neste hiato, venho assistindo trabalhos de pessoas interessantes e interessadas em teatro. Alguns espetáculos tiveram momentos que me deixaram pensativo, atento e satisfeito, porém, nenhum deles me deu vontade de estar aqui novamente e realizar esta indicação comentada. Depressão pós-férias? Assoberbamento de trabalho? Mais do mesmo? Eis o mistério da fé...

Isto posto, posto isto, cá venho para enaltecer o sensível, inteligente, enxuto e necessário espetáculo “Ninas”, em cartaz na sala multiuso do Sesc Copacabana. Como nos conta o release, é a primeira vez que Nina Simone é levada a cena teatral brasileira, veja você! Como pode? Uma mulher forte, cantora, com suingue, guerreira... mais brasileira, impossível! Pois coube às mãos de fada de Joaquim Vicente, escrever este espetáculo cheio de referências, pesquisa e conteúdo. E muita música boa, obviamente. Fluido, enxuto, certeiro e com qualidade, este é o trabalho marcante que Joaquim nos oferece.

A explicação para o titulo no plural é esta: “NINAS são muitas: a ativista, a pianista, a cantora, a compositora, a mulher revolucionária e à frente do seu tempo”. Uma única atriz seria pouco para tantas mulheres dentro de uma só, num palco só. Então, é mais que acertada a proposta de quatro atrizes cantoras se revezarem em diversas Nina Simone, cada uma brilhando ao seu tempo.

Édio Nunes assina a direção artística, dando muita agilidade, segurança e respeito, não só à homenageada, mas também a toda sua ficha técnica. Édio sabe o pequeno espaço que dispõe para contar a sua história e traz o público como cúmplice. Enlouquece as atrizes com mudanças rápidas de cenas, traz bancos de piano pra dentro da cena, araras de roupa viram personagens. Um desenho competente, bonito de se ver, utilizando todo o palco. Uma direção que de simples não tem nada, pelo contrário, são muitas variáveis e Édio pensou em tudo. Aplausos de pé. Cátia Cabral e Édio Nunes assinam a direção de movimento que, sem sombra de dúvida, auxilia a maravilha do espetáculo.

Wladmir Pinheiro, sempre elegante e competente, assina a direção musical com maestria. No palco, as musicistas Kathlen Lima (piano)e Regina Café (percussão) ditam o ritmo da apresentação, completam a cena, são belas e eficientes. O casamento perfeito entre instrumentos e sons.

Na parte criativa, Doris Rollemberg é a cenógrafa, que nos traz cortinas ao fundo, bancos de piano, microfones “de época” e araras de roupa como cenário. Ótimo. Wanderley Gomes assina um figurino arrasador. Belíssimo e bastante rico em detalhes de época, com destaque para a cena final em que grandes nomes das mulheres referência negra brasileira: Dona Ivone Lara, Elza Soares, Clementina de Jesus, Léa Garcia se juntam a Nina Simone.  Fernanda Mantovani ilumina as cenas com perfeição. Um trabalho minucioso de focos, contra-luzes, recorte de cenas. Todos os cantos do palco têm iluminação exclusiva e coletivas. Tem até régua de led na cortina do fundo. Belíssimo trabalho.

Cuidando das vozes do elenco está Jorge Maya assinando a preparação vocal, que, com seu trabalho, permite que o conjunto fique afinado, afiado, atinja diversas notas e, mesmo nos momentos tensos e de emoção, mantenham-se seguros e no tom.

Ninas são quatro: Cyda Moreno, Ana Paula Black, Roberta Ribeiro e Tati Christine. Revezando-se entre Ninas, entre fazes, entre músicas, cada uma, ao seu tempo, brilha e ao mesmo tempo segue generosa com a colega. Às vezes interpretando outros papéis além de Nina Simone, as quatro estão bonitas, cantando maravilhosamente bem e com o texto na ponta da língua. Temos a certeza que teve muito ensaio e, acima de tudo, tem muito amor envolvido no palco. A gente percebe e recebe na plateia. Fábio D’Lélis é o ator que se reveza entre diversos papeis masculinos e está muito bem inserido neste contexto da história de Nina Simone. Sua presença é bonita e equilibra os momentos em que Nina precisa de um sacolejo ou um copo d’água!

Sem dúvida temos uma equipe de produção dedicada que dá tranquilidade para o elenco brilhar em cena. Pedro Barroso (que também é assistente de direção) na produção executiva e Cyda Moreno, na idealização e direção de produção, nos oferecem um produto de excelente qualidade.

Nina Simone nos deixou em 2003 e sua obra é um “símbolo de resistência para as novas gerações”. Não achei melhores palavras que estas já ditas no release. A vida da cantora parece repetir o que já vimos acontecer com diversos artistas: exploração da gravadora, pouco dinheiro, vontade de produzir a seu modo e, acima de tudo, um talento que não cabe dentro.

Corra já para o SESC Copacabana e assista este espetáculo que me tocou e me trouxe vontade de escrever aqui neste espaço. Impossível não se emocionar e cantar pelo menos uma das músicas marcantes de Nina Simone, entre elas “Feeling Good”, “Don’t Let Me Misunderstood”, ”My Baby Just Cares For Me”. Aplausos de pé e vida longa a todas as Ninas que existem em nosso país.