segunda-feira, 16 de outubro de 2023

VESTIDO DE NOIVA


Quando fiz parte do Clube da Letra, a cadeira que ocupava era justamente a de Nelson Rodrigues, pela minha paixão pelo teatro e também pela forma atual e dinâmica com que “nossos textos se pareciam” (dadas as gigantescas distâncias...), segundo os colegas do clube. Espero ter honrado sua memória enquanto lá estive. 

Está em cartaz no Teatro 2, do CCBB RJ, uma ótima montagem de Vestido de Noiva, que completa 80 anos em dezembro de 2023. É o resultado de um trabalho pré-pandêmico do Grupo Oficcina Multimédia, turma de apaixonados pelo teatro que tem 45 anos de atuação, sendo que Ione de Medeiros assina a direção artística há 40 anos. 

A peça escrita por Nelson Rodrigues, inovadora mesmo nos tempos atuais, “mescla realidade, memória e alucinação para contar a triste história de Alaíde. Após ser atropelada por um carro em alta velocidade, ela é hospitalizada em estado de choque. Na mesa de cirurgia, oscilando entre a vida e a morte, a mente de Alaíde tenta reconstruir sua própria história e, aos poucos, seus sonhos inconscientes e desejos mais inconfessáveis vêm à tona. Quem vai ajudá-la nesse processo é a enigmática Madame Clessi. Juntando as peças desse quebra-cabeça, ela conduz Alaíde na busca pela reconfiguração de sua própria identidade.” É o que nos diz o release e não achei melhores palavras para dizer sobre o texto, por isso repeti.

No palco, temos um sensacional casamento entre cenografia, figurino e iluminação. Cenário e figurino assinados por Ione de Medeiros, que também assina a direção, e Bruno Cerezoli na luz. Tecidos que são toalha de mesa e véu de noiva, macas que são carros em movimento, dança de refletores sobre os atores, mesa de jantar que vira passarela, é um trabalho espetacular. Soma-se a isto o belíssimo balé, direção de movimento, coreografia, criados para os atores contarem a história trágica com uma beleza poética visual. 

É lindíssimo como os atores carregam as noivas no colo e seus vestidos desenham no ar movimentos. Também são destaques os vestidos de noiva sobrepostos, que parecem aquelas bonecas de papel que se recortava o modelito e uma singela aba no ombro da roupa prendia o novo vestido na modelo de calcinha e sutiã. Uma frente única que fica perfeita sobre os “vestidos de noivas” das noivas já existentes. Um acerto também manter os homens de terno, mesmo quando representam papéis femininos. Destaque ainda para a trilha sonora de Francisco Cesar e Ione de Medeiros.

Um caso à parte de alegria são os vídeos (criação de Henrique Torres Mourão e Ione de Medeiros) projetados no fundo do palco. Completando a cena, ora como narrativa, ora como história, lembrei do espelho da Malévola, que conversava malignamente com sua dona. Excelente.

Os atores Camila Felix, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso estão totalmente entregues à montagem e, cada um a seu tempo, tem espaço para brilhar. Porém, não posso deixar de comentar a interpretação de Jonnatha Horta Fortes (que também assina a assistência de direção, figurinos e preparação corporal) para Madame Clessi. Seguro, divertido e consciente da importância deste papel no teatro brasileiro. Uma beleza.

Ione de Medeiros dirige, prega botão, chuleia, dança, dá vida, arte e alegria a Nelson Rodrigues e ao público que assiste esta montagem belíssima de Vestido de Noiva. A arte de um bom diretor é promover o casamento, o complemento, a proteção, a divisão de atenção sem prejuízo, entre os elementos cênicos e Ione faz isso muito bem. Há tempos não vejo um casamento tão bonito entre elenco, interpretação, figurino, cenário, coreografia, comportamento cênico e iluminação. É, sem sombra de dúvida, uma direção minuciosa, de grande imaginação criativa e competência em execução. 

Ir ao teatro e assistir a um texto de Nelson Rodrigues é sempre um imenso prazer. Ele dá sempre uma bofetada com luva de pelica numa sociedade hipócrita que jogava - e ainda joga – sua sujeira para debaixo do tapete. Nas manchetes de jornais de hoje estão estampadas as atrocidades humanas da pior espécie que faria Nelson Rodrigues se envergonhar, tamanhos absurdos que temos que combater diariamente, nas ruas, nas redes sociais, no congresso nacional... parece que a sociedade piorou muito. E ver, um texto brilhante de Nelson Rodrigues ser tratado como uma joia rara, cheio de respeito e amor ao teatro é para se aplaudir de pé.

Viva Nelson Rodrigues, Viva o Grupo Oficcina Multimédia, viva o teatro brasileiro!