quinta-feira, 8 de agosto de 2019

EU, MÃE


      O romance “Marcas de Nascença”, de Nancy Huston (ed. L&PM), é a história de quatro crianças, cada uma ao seu tempo, contado suas relações com mães e avós. A visão é de cada criança. Todas ligadas por uma marca na pele, de nascença. No livro, observamos comportamentos de épocas diferentes e, principalmente, as relações entre mães e filhos. Ausentes, presentes, protetores, individualistas, exclusivistas... e como isto influi e “estraga” os filhos. Não é à toa, e nem por acaso, que indiquei o livro para minha psicóloga que, a partir de então, usa-o com vários clientes para discutir comportamentos.
     Cristina Fagundes eu conheci há 15 anos quando trabalhávamos na comédia “Aberrações”. Do grupo tenho amigos fiéis até hoje. Com Cristina eu gargalhei com sua Barbie Trash, acompanhei peças de teatro como atriz e autora e, principalmente, seu fantástico trabalho com o projeto Clube da Cena, onde atores, diretores e autores têm de uma a duas semanas para produzir um texto curto de teatro e apresentá-lo. Melhor exercício para a profissão já inventado no Rio de Janeiro.
     Pois Cristina virou mãe na década de 2010. Entre 2014 e 2016 teve duas filhas. A peça “Eu, mãe” é um relato emocionante e verdadeiro de uma mulher, ainda na flor da idade, que se vê diante de duas criaturas totalmente dependentes dela. Mas... e a mulher? Ela se arrepende de ter tido as filhas? Como lidar com o marido? Qual momento deixou de ser a garota do forró e virou a mãe de meninas? Cadê a bula? Mãe, socorro! Pois é. Não tem bula. Tem vida. E Cristina nos conta, relata, divide com a plateia comportamentos e emoções. A proposta é deixar registrado, em vídeo, para que as filhas assistam no futuro, como ela, mãe, se sente diante das rebentas mirins! É um espetáculo tocante.
     Realizado na Casa Rio, em Botafogo, o cenário realista já está pronto: uma copa-cozinha, um telefone filmando tudo, um projetor, desenhos das filhas, mesa e cadeiras. Assinado por Alice Cruz e Tuca Benvenutti, a ambientação presente no espaço é adereçada com mais objetos e tudo vira uma copa-cozinha real. O figurino de Flávia Espírito Santo é leve, elegante e confortável. A luz de Fernanda Mantovani é inteligente e criativa, pois se utiliza de abajures e luminárias, ora clareando ora produzindo sombras importantes para o rumo da história. A trilha sonora de Gui Stutz e Cristina Fagundes é personagem à parte, pois além de ilustrar passagens da vida da mulher que virou mãe, localiza o momento da história, o gosto musical da personagem e preenche os vazios – tempos – necessários da peça.
     O trio de diretores, que inclui a autora-atriz, Alexandre Barros e Daniel Leuback, não mede esforços para construir as diversas cenas do espetáculo. Utilizar-se de objetos do dia a dia mudando a sua finalidade é de uma inteligência e criatividade imensas. Digo isto para o momento de “chuva” da peça. Pega-se um copo de água, coloca no filtro e água transborda, caindo na pia, dando o som e o cheiro da chuva! Fantástico! Destaque ainda para as cadeiras representando as outras mulheres da família, a gaveta de memórias musicais e a bandeja com espelhos que produz estrelas no teto. Se duas cabeças pensam melhor que uma, as três juntas pensaram em tudo.
     E Cristina Fagundes atua. Não só cumpre com o objetivo de registrar – de verdade! – para as filhas o momento atual e os seus sentimentos como mãe, como interpreta a si mesma. Olha que difícil: Cristina interpreta Cristina. As vezes não dá para separar a atriz da personagem. São uma só. Várias vezes vi os olhos da atriz atolados de água, mas a profissional segurou a emoção, nem deixou a voz embargar, mas os olhos... os olhos estavam ali nos dizendo: esta sou eu, pura, verdadeira, intensa, socorro!, que delicia, me salvem, me abracem, me ouçam. É inegável o talento de atriz, autora e diretora – e produtora – de Cristina Fagundes.
      O espetáculo, como ela mesma diz, é um ato de amor. Às filhas, ao teatro, aos amigos, à família, aos colegas, ao público. Infelizmente não serei mãe, por motivos óbvios, e tampouco seri pai, por opção. Mas, logo no início da peça, Cristina inclui quem não tem filhos, e nos livra de toda culpa por nossa decisão. E o espetáculo nos serve para viver, junto com ela, as emoções de ser mãe. “Eu, mãe” cumpre mais que seu objetivo de ser um documentário-relato para as filhas. É uma fotografia dos dias atuais, do comportamento humano e nos faz relembrar nossas histórias de vida e como queremos seguir daqui para frente. Obrigado, Cristina! Vida longa a “Eu, mãe”!!

terça-feira, 6 de agosto de 2019

EU SEMPRE SOUBE



     Os relatos estão por toda parte. A mídia noticia a todo momento. Os números impressionam. As políticas públicas de apoio e suporte aos homoafetivos estão, cada dia mais, sendo demolidas. O STF criminaliza a homofobia, mas cadê o “cumpra-se”? Presidentes pelo mundo são homofóbicos assumidos. Quando se tem a autoridade máxima de um país que incita a violência, porte de armas, agressões a mulheres, índios, LGBTQI+, não se pode esperar outra coisa além do aumento da violência contra as minorias. Ninguém escolhe ser homoafetivo. Se é. Nasce. Pode-se reprimir, lutar contra a natureza, mas é impossível deixar de ser.

     “Eu Sempre Soube”, que já está na segunda temporada, agora na Casa de Cultura Laura Alvim, é o espetáculo recente do diretor e dramaturgo Marcio Azevedo. Conversou com 92 mulheres, mães de homoafetivos, e reuniu os relatos em um espetáculo teatral tocante, sensível, forte, humano e extremamente verdadeiro. Histórias de assédio moral, agressões físicas, preconceito velado e às claras, problemas de saúde mental e física, comportamentos de uma sociedade doente – e sem previsão de cura – são expostos sem dó nem piedade no palco. Incontáveis crimes brutais que, mesmo com leve toques de humor, não atenuam o horror das situações vividas.

     No palco, o cenário de José Carlos Vieira preenche o espaço e, de cara, revela ser uma palestra. A luz de Aurélio de Simone se utiliza dos tecidos para colorir e ilustrar momentos tensos, alegres, tristes e angustiantes. O figurino de Anderson Ferreira é perfeito para a personagem palestrante. Tauã de Lorena cria e executa a agradável trilha sonora que embala os relatos, ameniza dores e sublinha o suspense.

     Márcio Azevedo, por ser o autor, sabe o que quer: mostrar, relatar, contestar, gritar, discutir tudo o que as mães passam, o que os filhos passam, antes, durante e depois de se assumirem homoafetivos. Márcio não se prende ao cenário, foge do convencional, libera a emoção da atriz/personagem para que deixe fluir o que de mais importante o espetáculo precisa: emoção verdadeira.

     Rosane Gofman é uma atriz completa. Seu trabalho neste espetáculo é delicado, sincero, intenso, profundo e, principalmente, comunica com a plateia. Rosane olha no olho do espectador, vive as histórias intensamente como se fossem suas, mesmo sem sair do personagem “jornalista famosa palestrante”. Ela se empresa, se doa, sem amarras. Foge do roteiro, melhora uma fala dita ao acaso, sublinha medos e angústia, faz do palco a plataforma política necessária para contar a história.

     “Eu Sempre Soube” é um espetáculo obrigatório para os dias atuais.  Nos faz ter empatia pelo outro, traz amor verdadeiro, coloca o dedo na ferida aberta, explica, denuncia, mostra que é possível viver numa sociedade com mais amor e respeito ao próximo. O futuro não mostra soluções para o que estamos passando. O mundo anda cruel e dividido. As partes não se vêm com todo. Não existe soluções fáceis para problemas difíceis, mas é preciso relatar, registrar, gritar, fazer-se ouvir, para que, em algum momento, chegue a hora da virada. É com diz Millôr Fernandes, no prólogo de sua tradução de Antígona: “Ainda não acreditamos que no final, o bem sempre triunfa. Mas já começamos a crer, emocionados, que, no fim, o mal nem sempre vence”. Vida longa e “Eu Sempre Soube”.