O romance “Marcas de Nascença”, de Nancy Huston (ed. L&PM),
é a história de quatro crianças, cada uma ao seu tempo, contado suas relações
com mães e avós. A visão é de cada criança. Todas ligadas por uma marca na
pele, de nascença. No livro, observamos comportamentos de épocas diferentes e,
principalmente, as relações entre mães e filhos. Ausentes, presentes,
protetores, individualistas, exclusivistas... e como isto influi e “estraga” os
filhos. Não é à toa, e nem por acaso, que indiquei o livro para minha psicóloga
que, a partir de então, usa-o com vários clientes para discutir comportamentos.
Cristina Fagundes eu conheci há 15 anos quando trabalhávamos
na comédia “Aberrações”. Do grupo tenho amigos fiéis até hoje. Com Cristina eu
gargalhei com sua Barbie Trash, acompanhei peças de teatro como atriz e autora e,
principalmente, seu fantástico trabalho com o projeto Clube da Cena, onde atores,
diretores e autores têm de uma a duas semanas para produzir um texto curto de
teatro e apresentá-lo. Melhor exercício para a profissão já inventado no Rio de
Janeiro.
Pois Cristina virou mãe na década de 2010. Entre 2014 e 2016
teve duas filhas. A peça “Eu, mãe” é um relato emocionante e verdadeiro de uma
mulher, ainda na flor da idade, que se vê diante de duas criaturas totalmente
dependentes dela. Mas... e a mulher? Ela se arrepende de ter tido as filhas? Como
lidar com o marido? Qual momento deixou de ser a garota do forró e virou a mãe
de meninas? Cadê a bula? Mãe, socorro! Pois é. Não tem bula. Tem vida. E Cristina
nos conta, relata, divide com a plateia comportamentos e emoções. A proposta é
deixar registrado, em vídeo, para que as filhas assistam no futuro, como ela,
mãe, se sente diante das rebentas mirins! É um espetáculo tocante.
Realizado na Casa Rio, em Botafogo, o cenário realista já
está pronto: uma copa-cozinha, um telefone filmando tudo, um projetor, desenhos
das filhas, mesa e cadeiras. Assinado por Alice Cruz e Tuca Benvenutti, a
ambientação presente no espaço é adereçada com mais objetos e tudo vira uma
copa-cozinha real. O figurino de Flávia Espírito Santo é leve, elegante e confortável.
A luz de Fernanda Mantovani é inteligente e criativa, pois se utiliza de abajures
e luminárias, ora clareando ora produzindo sombras importantes para o rumo da
história. A trilha sonora de Gui Stutz e Cristina Fagundes é personagem à parte,
pois além de ilustrar passagens da vida da mulher que virou mãe, localiza o
momento da história, o gosto musical da personagem e preenche os vazios –
tempos – necessários da peça.
O trio de diretores, que inclui a autora-atriz, Alexandre
Barros e Daniel Leuback, não mede esforços para construir as diversas cenas do
espetáculo. Utilizar-se de objetos do dia a dia mudando a sua finalidade é de
uma inteligência e criatividade imensas. Digo isto para o momento de “chuva” da
peça. Pega-se um copo de água, coloca no filtro e água transborda, caindo na pia,
dando o som e o cheiro da chuva! Fantástico! Destaque ainda para as cadeiras representando
as outras mulheres da família, a gaveta de memórias musicais e a bandeja com
espelhos que produz estrelas no teto. Se duas cabeças pensam melhor que uma, as
três juntas pensaram em tudo.
E Cristina Fagundes atua. Não só cumpre com o objetivo de registrar
– de verdade! – para as filhas o momento atual e os seus sentimentos como mãe,
como interpreta a si mesma. Olha que difícil: Cristina interpreta Cristina. As
vezes não dá para separar a atriz da personagem. São uma só. Várias vezes vi os
olhos da atriz atolados de água, mas a profissional segurou a emoção, nem
deixou a voz embargar, mas os olhos... os olhos estavam ali nos dizendo: esta
sou eu, pura, verdadeira, intensa, socorro!, que delicia, me salvem, me abracem,
me ouçam. É inegável o talento de atriz, autora e diretora – e produtora – de Cristina
Fagundes.
O espetáculo, como ela mesma diz, é um ato de amor. Às filhas,
ao teatro, aos amigos, à família, aos colegas, ao público. Infelizmente não
serei mãe, por motivos óbvios, e tampouco seri pai, por opção. Mas, logo no início
da peça, Cristina inclui quem não tem filhos, e nos livra de toda culpa por
nossa decisão. E o espetáculo nos serve para viver, junto com ela, as emoções
de ser mãe. “Eu, mãe” cumpre mais que seu objetivo de ser um
documentário-relato para as filhas. É uma fotografia dos dias atuais, do
comportamento humano e nos faz relembrar nossas histórias de vida e como
queremos seguir daqui para frente. Obrigado, Cristina! Vida longa a “Eu, mãe”!!
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