sábado, 29 de julho de 2017

O ABACAXI







Na época dos meus pais crianças, a vida amorosa permitida era polarizada, binária. E coitado de quem saísse da regra. Filhos de mães solteiras ou divorciadas eram nocivos. Na minha época de criança, pós Woodstock, a coisa “deu uma melhoradinha”. Já se podia começar a pensar no amor livre, na troca de parceiros sem o dedo da militância da Tradição Família e Propriedade te acusando de sacanear o que era “correto”. A liberdade sexual e amorosa foi duramente golpeada pela praga do HIV que matou uma leva de artistas e gente incrível. Aí tudo retrocedeu. Até que os retrovirais chegaram e deram uma nova esperança ao amor livre.

Eu cresci e vejo com os olhos que a terra há de comer – porque prefiro ser enterrado, mas este assunto fica para outro momento – uma mudança radical na liberdade de amar sem culpa. Vejo casais de diferentes gêneros, cores e “raças” se amando livremente e podendo expressar a vontade de experimentar outros amores, tudo ao mesmo tempo. Vejo aplicativos de encontros se multiplicando, carnes em exposição, fotos aprovadas e reprovadas.

Raramente vejo casais se formando. São experimentos. Talvez o próximo seja melhor que o atual. Antigamente a fila demorava a andar... agora... mal pegou a senha já está sendo atendido e dispensado... amores líquidos. Estamos sendo objetos de estudos? Estamos livres demais para decidir? Quero você, mas aquele outro ali... vamos provar juntos? Separados? Até que ponto domamos nosso ciúme?

Tudo isto está em O Abacaxi, no Espaço Sérgio Porto, no Humaitá. O primeiro texto teatral da Verônica Debom - que foi apresentado pela primeira vez no Cena Brasil Internacional do CCBB - é ótimo! Divertido, inteligente, toca nas feridas, liga o presente momento da vida sexual e amorosa ao modelo da educação que recebemos. O ciúme, a liberdade, a obsessão, a luta pelo poder na relação, tudo está ali, escrito com velocidade de raciocínio e riqueza de palavras. A peça é a história dum casal que se permite experimentar formas de amor e sofre as consequências.

O cenário de Mina Quental (Atelier na Gloria) é lindo! Criativo e marcante. Objetos do dia a dia como baldes, estrado de cama, rolos de papel higiênico, mola de colchão e colheres de pau se transformam em objetos de decoração. Fiquei encantado. O figurino de Luiza Fardin é bonito e deixa os atores à vontade para contar a história. A luz de Ana Luzia de Simoni e João Gioia dão o colorido necessário para o espetáculo de humor. Tudo bem acompanhado da direção de movimento de Alice Ripoll e da direção musical de Rafael Rocha.

Debora Lamm, gênia atriz, se mostra também talentosa na direção. Arranca o que de melhor tem nos atores, ocupa o espaço cênico com perfeição. Interrompe a narrativa com uma coreografia dos anos 80, coloca uma mulher atravessando o palco inesperadamente, faz lindas cenas de sexo, amor e afeto, usa o fundo das arquibancadas para os atores armarem um barraco, deixando a plateia imaginar como estão atuando. Enfim, criativa e competente. Fabiano de Freitas, na colaboração artística, colabora para o todo positivo do espetáculo.

Os atores Verônica Debom e Felipe Rocha estão seguros, são competentes. Atuam como se não houvesse plateia e, ao mesmo tempo, fazem dela uma figura presente. Se jogam de peito aberto, sem medo das possíveis críticas pessoas e coletivas. Mais que interpretam: eles vivem. Eles são. Impossível não se emocionar com a cena final do espetáculo devido ao imenso talento de Verônica e a cumplicidade de Felipe. Longos aplausos de pé.

O Abacaxi nos mostra que a hora é de pensar e agir, ao mesmo tempo, sobre como queremos que o mundo seja daqui a poucos anos. Não dá para deixar a responsabilidade de pensar no amor, na sexualidade e como vamos nos comportar daqui pra frente para as futuras gerações. 

Estamos no olho do furacão das mudanças, não sabemos mesmo como nos comportar e como lidar com o que estamos vivendo. Apenas estamos vivendo. O Abacaxi discute isto tudo de uma forma divertida e mostra que o mais importante é agradecer pelas pessoas que nos chegam na nossa caminhada da vida. Obrigado por ter cruzado o meu caminho. Obrigado por ter vindo! Viva Rafael Faustini, viva Debora Lamm, viva Verronica Debom, viva o teatro carioca!!





sexta-feira, 7 de julho de 2017

DESESPERADOS


A reinvenção da comédia no teatro já tinha acontecido faz tempo. Não estávamos em crise e nem havíamos notado. Lá atrás, há dez anos, assisti no Teatro do Leblon um espetáculo inovador e divertidíssimo, com Álamo Facó, Cláudio Gabriel e Igor Paiva. O trio arrebentava a boca do balão, fazia todo mundo rir. O mais interessante, além da versatilidade dos atores no revezamento dos papéis, era a simplicidade da montagem. Atores, macacão, velcro, luz e trilha sonora. Há quem diga que teatro é ator e luz. Há controvérsias!

A peça não tinha cenário e nem trocas de figurino. O aclamado velcro, usado em 9 entre 10 figurinos de espetáculos, tomou lugar de protagonista, auxiliando o público a acompanhar as histórias, uma vez que os atores colavam no peito os nomes dos personagens. Um golaço. Estariam os produtores, lá atrás em 2007, fazendo piada da pobreza que nos esbofeteia a cara em 2017? Seria, lá atrás, uma previsão do futuro sem patrocínios que enfrentamos hoje?

Marcus Majella, Pablo Sanábio e Sandro Chaim se uniram e resgataram o espetáculo Desesperados, texto e concepção de Fernando Ceylão, a mesma peça que eu tive o prazer de assistir em 2007! Um somatório de histórias divertidas, bem escritas, tendo como principais personagens a incompreendida Bia e o chato de galocha Marcondes. Ambos tentam, desesperadamente, conseguir a atenção de pessoas: Bia sofre com a amiga ocupada. Marcondes sofre com o amigo Ricardo.

Nesta nova montagem, temos um cenário composto de mesas e cadeiras de plástico pintadas de vermelho, criação de Daniel de Jesus, preenchendo o fundo do palco e servindo de apoio para os atores. O figurino é composto de roupa preta, calça e camiseta básica, com velcro no peito. É ali que os nomes dos personagens são colados. A iluminação de Daniela Sanches ajuda a contar a história, delimita ambientes e mantem o foco na atuação dos atores. Como bem disse meu amigo Rodrigo Monteiro: "Vale destacar a coreografia de Clara da Costa em uma deliciosa brincadeira dessa peça com o filme 'La La Land'."

João Fonseca dirige uma peça que tem atores competentes e texto brilhante. O que mais ele pode querer? Os ensaios devem ter sido um espetáculo à parte. É tanta criatividade junta que só um grande e generoso diretor para dar o laço na peça. João se preocupa em deixar claro o jogo entre os atores e a plateia, arrumar e conduzir a marcação, limpar as cenas.

Marcus Majella, Pablo Sanábio e Pedroca Monteiro são uma explosão de talentos. Pablo é gênio. Além de ser um “menino das ideias” (muitos espetáculos de colegas são sugestões do Pablo), ele se entrega e vive os personagens com garra. Pedroca é o nosso Ney Latorraca Versão 2.0! Seu bom-mal-humor, seu deboche, sua voz rouca, faz qualquer um rir. Majella é o pop-star da turma, responsável por trazer um público que, se não fosse ele, não iria ao teatro. Inegável seu talento para comédia. Da Porta dos Fundos ao Vai que Cola, Majella foi crescendo a ponto de levar seu Ferdinando para um voo solo na Tv. O trio é unido e generoso. Se completam, são parceiros. São atores!!

Em épocas de vacas magras o teatro precisa se reinventar, novamente. Se apoiar na criatividade e tocar o barco para não sumir do mapa. Com salas de espetáculo fechando, público diminuindo, preços dos ingressos despencando, a solução é fazer o povo rir das desgraças.

O teatro é a arte da resistência. Estamos todos desesperados, sem esperança. Então, vamos rir, juntos, da desgraça que nos abate. Tenho a certeza de que rir é o melhor remédio. Vá por mim! Vá ao teatro. Assista a Desesperados! Dê uma banana para a crise, pois o presidente disse que não há crise no Brasil! Em vez de comprar seu hambúrguer gourmet, compre uma entrada de teatro!

quarta-feira, 5 de julho de 2017

SUASSUNA - O AUTO DO REINO DO SOL



A primeira vez que assisti esta turma junta foi em Gonzagão, a Lenda. Na metade da peça eu já sabia que o grupo ia ter vida longa. O conjunto era algo que vibrava, um mix de atores, cantores, palhaços e músicos. Daquele espetáculo nasceu A Barca dos Corações Partidos. Na sequência veio a Ópera do Malandro. E, ano passado, o musical Auê. Sou suspeito para falar de Auê, pois foi um espetáculo que me pegou num momento bastante sensivel e virei fã incondicional do espetáculo.

No ano em que completa 90 anos, Ariano Suassuna recebe uma belíssima homenagem desta mesma Barca. A peça O Auto do Reino do Sol, em cartaz no Teatro Riachuelo – alias, uma beleza de teatro. Ainda não tinha ido e fiquei encantado – é a história de uma trupe de teatro, um casal de namorados em fuga, uma família que se odeia, jagunços, risos, lágrimas... ou seja: ingredientes preferidos de Suassuna.  O texto de Braulio Tavares bebe bonito na fonte de Ariano, se utiliza de nomes, cidades e situações criadas pelo dramaturgo, poeta, romancista e professor, que nos deixou em 2014. Frases emblemáticas de Ariano “Não sei, só sei que foi assim” estão nesta homenagem.

A direção de Luiz Carlos Vasconcelos é primorosa! Um trabalho de excelência, onde toda a competência vocal, circense e interpretativa dos atores é explorada. Luiz Carlos também bebe na fonte do sertão nordestino e imprime lindas cenas de fotográficas coreografias, ocupando todo o palco e usando das melhores ferramentas que dispõe: os integrantes da Barca dos Corações Partidos. Linda a cena em que os patriarcas das famílias rivais bradam ódio, juntos, no palco, porém em casas separadas. Belíssimo também é o grupo de retirantes, logo no inicio da peça, trazendo as mazelas do dia a dia da região.

A cenografia, de Sérgio Marimba, é composta de uma carroça de ferro extremamente bem cuidada e carregada de leves adereços – que serve tanto para o balcão da mocinha quanto para transportar a trupe do circo. O fundo do palco ganha a lona do circo feita com um pano branco que permite luzes de São João servirem de estrela. Impecável é o figurino de Kika Lopes e Heloisa Sockler. Bonitos e bem confeccionados. Renato Machado ilumina tudo com a qualidade e bom gosto de sempre.

A trilha sonora criada por Chico Cesar, Beto Lemos e Alfredo De Penho tem a cara da Barca, a competência do grupo, referências nordestinas, transforma história em música e são sempre bem executadas pelos atores.

Além da indiscutível qualidade do grupo, a Barca dos Corações Partidos, resultado da união de Alfredo del Penho, Rica Barros, Fabio Enriquez, Beto Lemos, Eduardo Rios, Adrén Alves, Renato Luciano, recebe os atores convidados Rebeca Jamir, Chris Mourão e Pedro Aune. Afinados, dedicados, integrados e inteiros, o grupo mostra que mantém a sua força inicial, firme no propósito de levar o mix de circo, show e teatro para o palco, onde quer que se apresentem.

Suassuna - O Auto do Reino do Sol é um trabalho da mais alta competência teatral. Um musical brasileiro, falando do nordeste, homenageando Suassuna e mantendo a Barca dos Corações Partidos no universo onde tem total domínio e a qualidade de todos os anteriores.

Vale muito a pena assistir a este trabalho e aplaudir, sempre de pé, a Andrea Alves pela idealização, a Sarau pela produção, a toda equipe envolvida e à Barca dos Corações Partidos pelo conjunto da obra!! Viva!