Na época dos
meus pais crianças, a vida amorosa permitida era polarizada, binária. E coitado
de quem saísse da regra. Filhos de mães solteiras ou divorciadas eram nocivos.
Na minha época de criança, pós Woodstock, a coisa “deu uma melhoradinha”. Já se
podia começar a pensar no amor livre, na troca de parceiros sem o dedo da
militância da Tradição Família e Propriedade te acusando de sacanear o que era
“correto”. A liberdade sexual e amorosa foi duramente golpeada pela praga do
HIV que matou uma leva de artistas e gente incrível. Aí tudo retrocedeu. Até
que os retrovirais chegaram e deram uma nova esperança ao amor livre.
Eu cresci e
vejo com os olhos que a terra há de comer – porque prefiro ser enterrado, mas
este assunto fica para outro momento – uma mudança radical na liberdade de amar
sem culpa. Vejo casais de diferentes gêneros, cores e “raças” se amando
livremente e podendo expressar a vontade de experimentar outros amores, tudo ao
mesmo tempo. Vejo aplicativos de encontros se multiplicando, carnes em
exposição, fotos aprovadas e reprovadas.
Raramente
vejo casais se formando. São experimentos. Talvez o próximo seja melhor que o
atual. Antigamente a fila demorava a andar... agora... mal pegou a senha já
está sendo atendido e dispensado... amores líquidos. Estamos sendo objetos de
estudos? Estamos livres demais para decidir? Quero você, mas aquele outro
ali... vamos provar juntos? Separados? Até que ponto domamos nosso ciúme?
Tudo isto
está em O Abacaxi, no Espaço Sérgio Porto, no Humaitá. O primeiro texto teatral
da Verônica Debom - que foi apresentado pela primeira vez no Cena Brasil
Internacional do CCBB - é ótimo! Divertido, inteligente, toca nas feridas, liga
o presente momento da vida sexual e amorosa ao modelo da educação que
recebemos. O ciúme, a liberdade, a obsessão, a luta pelo poder na relação, tudo
está ali, escrito com velocidade de raciocínio e riqueza de palavras. A peça é
a história dum casal que se permite experimentar formas de amor e sofre as
consequências.
O cenário de
Mina Quental (Atelier na Gloria) é lindo! Criativo e marcante. Objetos do dia a
dia como baldes, estrado de cama, rolos de papel higiênico, mola de colchão e
colheres de pau se transformam em objetos de decoração. Fiquei encantado. O
figurino de Luiza Fardin é bonito e deixa os atores à vontade para contar a
história. A luz de Ana Luzia de Simoni e João Gioia dão o colorido necessário
para o espetáculo de humor. Tudo bem acompanhado da direção de movimento de
Alice Ripoll e da direção musical de Rafael Rocha.
Debora Lamm,
gênia atriz, se mostra também talentosa na direção. Arranca o que de melhor tem
nos atores, ocupa o espaço cênico com perfeição. Interrompe a narrativa com uma
coreografia dos anos 80, coloca uma mulher atravessando o palco
inesperadamente, faz lindas cenas de sexo, amor e afeto, usa o fundo das
arquibancadas para os atores armarem um barraco, deixando a plateia imaginar
como estão atuando. Enfim, criativa e competente. Fabiano de Freitas, na
colaboração artística, colabora para o todo positivo do espetáculo.
Os atores
Verônica Debom e Felipe Rocha estão seguros, são competentes. Atuam como se não
houvesse plateia e, ao mesmo tempo, fazem dela uma figura presente. Se jogam de
peito aberto, sem medo das possíveis críticas pessoas e coletivas. Mais que
interpretam: eles vivem. Eles são. Impossível não se emocionar com a cena final
do espetáculo devido ao imenso talento de Verônica e a cumplicidade de Felipe.
Longos aplausos de pé.
O Abacaxi
nos mostra que a hora é de pensar e agir, ao mesmo tempo, sobre como queremos
que o mundo seja daqui a poucos anos. Não dá para deixar a responsabilidade de
pensar no amor, na sexualidade e como vamos nos comportar daqui pra frente para
as futuras gerações.
Estamos no olho
do furacão das mudanças, não sabemos mesmo como nos comportar e como lidar com
o que estamos vivendo. Apenas estamos vivendo. O Abacaxi discute isto tudo de
uma forma divertida e mostra que o mais importante é agradecer pelas pessoas
que nos chegam na nossa caminhada da vida. Obrigado por ter cruzado o meu
caminho. Obrigado por ter vindo! Viva Rafael Faustini, viva Debora Lamm, viva
Verronica Debom, viva o teatro carioca!!
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