quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

EU DE VOCÊ


     Durante 2 anos de pandemia, trabalhar com cultura é quase impossível. Sem verbas, apoios parcos, patrocínios à mingua, impossibilidade do público para dialogar, trocar, aprender e lavar a alma, o ânimo foi sumindo dia a dia. Como buscar forças no “vai melhorar”, no “ainda faltam 2 anos deste governo...” Como? O passado das viagens com peças, leitura para crianças, shows, acabou. Éramos felizes e sabíamos. O mundo acabou-se em março de 2020. A desesperança chegou. No fundo, eu sei que a arte salva. É o que me mantem vivo até aqui. Eu confio no teatro. 

     Eis que chegam alentos: vacina, redução de mortes, teatros abrindo, crianças voltando às escolas. Começam a surgir peças, com sobras de verbas de anos anteriores, prontas, apenas aguardando a hora da exibição. A vida volta a ficar bonita. Estamos reconstruindo o mundo, imunizados contra o vírus assassino, combatendo negacionismo, notícias falsas, messias charlatão, a morte de grandes artistas.

     Está em cartaz no CCBB do Rio o monólogo “Eu de você”. Uma peça sobre amor, seres humanos, diferenças, superação, gente, amizade, história, compartilhamento, memórias. Denise Fraga, junto com Luiz Villaça, José Maria e Rafael Gomes criaram um espetáculo com base em histórias inspiradas em narrativas de pessoas comuns. Seres humanos como nós. Assim como no quadro “Retrato Falado”, Denise Fraga nos alimenta, alegra, emociona, com fragmentos de passagens na vida de quase 30 personagens. 

     O cenário de Simone Mina é uma grande tela em branco, preenchida por sombras, cores e vídeos de pessoas. Um casamento impecável com a luz de Wagner Antônio e o vídeo mapping de Bruna Lessa e André Dib. Simone também assina o figurino leve e elegante. A grande sacada da peça é a direção de movimento de Kenia Dias. O trabalho de corpo que Denise Fraga empresta aos personagens, do mínimo olhar ao espalhar de braços e pernas, faz a cena ficar preenchida de competência e entrega. 

     Contribuem para o embelezamento do espetáculo a direção musical de Fernanda Maia e as três excelentes musicistas de cena: Ana Rodrigues, Clara Bastos e Priscila Brigante. Impossível não se emocionar com a trilha escolhida com primor. É também de Fernanda a preparação vocal. Em cada personagem, Denise usa uma voz, um timbre, um colorido diferente. Até seu silêncio diz coisas.
    
       A direção de Luiz Villaça é primorosa! O respeito na cena da mulher negra que abandona o marido, o humor no namoro entre assaltante e vítima, a angustia da atriz que não pode trabalhar na pandemia, a esperança da sua crença no valor do teatro, a importância dada à plateia, que, sem dúvida, é um personagem presente e intenso durante toda a apresentação. Luiz promove uma ligação íntima entre palco e poltrona desde o primeiro momento em que sua atriz entra cumprimentando seu público, até os aplausos finais de pé.

    Além dos méritos da equipe competente, os aplausos incessantes são para Denise Fraga. Sua atuação é daquelas que ficam em nossa memória e entram para a história do teatro brasileiro. Sua comunicação com as pessoas, seu empréstimo aos personagens, é imenso. Denise vive cada história e consegue se colocar à margem, da mesma história, numa mesma cena! Uau! Muda de voz, inclina o corpo, deita no chão, corre, não cansa, não desiste. Está intensa, viva, firme, feliz.

     Saí da peça com uma frase na cabeça: eu confio no teatro. Além das belezas humanas apresentadas, da troca de amor entre os presentes, assistir a “Eu de Você“  encheu de esperanças a sala de apresentações e meu coração. Assim como diz o texto, eu também confio no teatro. É do teatro que trago em minha história as maiores alegrias. O teatro me alimenta, inspira, renova, acrescenta, instrui, me faz refletir e crescer. Obrigado. Eu precisava saber - e ver - que outras pessoas também confiam no teatro! Vida longa a “Eu de Você”. Que possa chegar a muitas pessoas durante muito tempo! Viva o teatro!