quarta-feira, 26 de outubro de 2022

FICÇÕES


Quando a gente se coloca diante de uma questão básica da vida: “você está satisfeito?”, tudo ao seu redor passa a ser questionado: o amor, o trabalho, a família, o governo, o país, as amizades, o presente, o legado, o futuro. Responda mentalmente. “Você está satisfeito?”.

Sou muito fã de espetáculos de teatro que derivam de livros. O casamento de literatura e teatro, bem como cinema, traz obras primas para a cultura mundial. “Sapiens – uma breve história da humanidade” (2014), do professor e filósofo Yuval Noah Harari é um best-seller que trata sobre a revolução cognitiva (capacidade humana de criar e transmitir informação), agrícola e científica e é o livro que dá origem ao espetáculo Ficções. 

O release nos diz que “O grande diferencial do homem em relação às outras espécies é sua capacidade de inventar, de criar ficções, de imaginar coisas coletivamente e, com isso, tornar possível a cooperação de milhões de pessoas – o que envolve praticamente tudo ao nosso redor: o conceito de nação, leis, religiões, sistemas políticos, empresas etc. Mas também o fato de que, apesar de sermos mais poderosos que nossos ancestrais, não somos mais felizes que esses. Partindo dessa premissa, o livro indaga: estamos usando nossa característica mais singular para construir ficções que nos proporcionem, coletivamente, uma vida melhor?” 

É esta a grande questão levantada pelo espetáculo.

Ficções está no CCBB Rio até dia 30 de outubro. Idealizado pelo produtor Felipe Heráclito Lima e escrito e encenado por Rodrigo Portella, o texto é um grande recorte do livro. Como se estivéssemos com um controle remoto nas mãos, as cenas mudam aos nossos olhos: uma professora de biologia, uma palestrante futurista, uma esposa ao celular com o marido, dois artistas tocando piano, a mulher que desabafa, enfim, personagens que contam situações da vida humana e fazem a plateia refletir o tempo todo.

A cenografia de Bia Junqueira é uma imensa pedra “no meio do caminho” e um quadro metálico que nos leva ao passado e projeta ao futuro ao mesmo tempo. O ótimo figurino de João Pimenta é épico, atual, medieval, futurista. Paulo Medeiros ilumina tudo com competência. 

Frederico Puppi cria uma trilha sonora original e a executa ao vivo com seus instrumentos. Segura, criativa, divertida e intensa, a trilha sonora - e consequentemente Frederico – é personagem vivo e marcante no espetáculo. Jorge Maya é o preparador vocal e Tony Rodrigues o preparador corporal. Voz e corpo unidos em uma ótima simbiose.

Rodrigo Portella tem aqui um dos seus mais geniais trabalhos.  Diretor do momento, sábio, criativo e moderno, Rodrigo nos apresenta um espetáculo dinâmico, profundo, sóbrio, sério, divertido, intenso, amoroso e empático. Está nos detalhes a qualidade do trabalho, como a singela presença do ponto no canto do palco, a delicada troca de roupas, as pausas, a troça com a plateia antes da entrada da atriz, o jogo com o público ao final do espetáculo. Tudo ali é coletivo. Deduzo que o maior mérito do espetáculo é a coletividade, o humano.

Existem atrizes que pertencem a uma caixinha mágica. Um seleto grupo de profissionais que não se explica o talento, o dom, a competência, a verdade. Vera Holtz está nesta caixinha. Ela é uma das melhores atrizes do Brasil, quiçá do mundo. Temos em cena alguém que se empresta, entrega, de alma e corpo para o espetáculo. Vera usa as palavras como suas – e são! -, empresta seu corpo às diversas personagens, muda sotaque e envolve o público, como poucas artistas fazem. Domina os olhares, o espaço cênico. Está em casa. Ali, o palco, é seu home-office. Como uma sacerdotisa, Vera chega com seu cajado e dali em diante é só ensinamento e sabedoria. 

O dicionário diz que “Satisfeito, do latim satisfactum, é um adjetivo de quem se encontra contente, de quem se satisfaz; ou de quem está farto, saciado. Algo que se realizou ou se cumpriu”. Sobre Ficções eu digo sem medo de ser feliz: sim, estou satisfeito. Embora a vontade de mergulhar no livro – nos livros – de Yuval Harari seja imensa, para que eu fique saciado de sabedoria. 

Ficções é um dos melhores espetáculos de teatro que já assisti na minha vida. Está no “Top 5”. Pelo assunto oportuno, pelos questionamentos, pela qualidade técnica, pela emoção e por servir de exemplo ao que se propõe uma obra teatral: incomodar, instruir, incentivar, oferecer. 

Aos produtores Alessandra Reis, Felipe Heráclito Lima e Natália Simonete, minha imensa admiração e respeito. Agradeço a Felipe Heráclito Lima pela ideia inspiradora, ao Rodrigo Portella por me causar emoções diversas, à Vera Holtz por alegrar meu coração. À Factoria Comunicação (Vanessa Cardoso e Leila Grimming) minha gratidão pela oportunidade de apreciar tamanha beleza! Aplausos de pé. Imperdível! A peça do ano.

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