segunda-feira, 31 de outubro de 2022

UMA REVOLUÇÃO DOS BICHOS


Eu escolhi estar numa sala de teatro no momento mais catártico e importante para o Brasil. A arte que foi – e ainda é – tão atacada como responsável pelas mazelas nacionais, acusada de ser desnecessária. Eu sou um ser de artes. Vivo financeiramente e me dedico a espalhar a cultura brasileira. Por isto, estar ali, junto com a minha bolha, público, atores, direção, refletores, sons, cenário, caracterização, fumaça, figurino, coreografia, é estar entre os meus. E não poderia ter sido mais acertada a escolha.

Entrei no teatro com mais de 1 hora e meia de antecedência à récita, comprei o ingresso e pedi para ficar ali até o inicio da peça. Eu não poderia acompanhar pela televisão o andamento da apuração. A ansiedade gritava. Chega a hora da apresentação, entrei, escolhi a cadeira, o coração a mil batidas por segundo. Mentalizei que, dali em diante, eu focaria na peça, esquecendo o mundo lá fora.

No Espaço Sérgio Porto iniciou-se a temporada de “Uma Revolução dos Bichos”, baseada no livro “Animal Farm” (A revolução dos bichos), de George Orwell, com texto de Daniela Pereira de Carvalho. A construção dos diálogos, adaptados para uma fazenda qualquer, é toda criação da autora. A fluidez, as narrativas, o clímax, a curva dramatúrgica são muito bem pensados e elaborados com competência e segurança. O texto é ótimo. Temos uma perfeita tradução e adaptação da história do livro para o palco. E não é tarefa fácil, mas Daniela tem mãos de fada e o resultado é perfeito.

A história da peça rapidinho: os bichos se revoltam por serem explorados pelo humano, expulsam o humano da fazenda, criam 7 regras de ouro sobre como devem agir daqui pra frente, os porcos assumem o comando, se desentendem pela direção que devem tomar, racha na porcada, um deles assume as rédeas, cria uma milicia, ameaça os que não seguem sua cartilha, mata, manda, desmanda, começa a infringir as 7 regras a tal ponto que passa a repetir os desmandos do humano expulso.

A Cia Teatro Esplendor, sob a direção de Bruce Gomlevsky é a responsável pela encenação. O grande mérito do espetáculo é o perfeito casamento entre figurino (Maria Duarte), caracterização (Mona Magalhães), mímica corporal dramática (Gustavo Damasceno), atuação e preparação vocal (Yasmin Gomlevsky). É muita coisa para um ator só guardar, mas o trabalho feito por eles é brilhante. A gente vê porcos, cabra, vaca, bode, gato, cachorro, cavalo, égua, burro, corvo, galo e galinha. Eles são reais. É impressionante o trabalho. Bruce tem o mérito de aglutinar os talentos individuais e dar uma harmonia ao todo, além de dirigir entradas, saídas, cenas, orquestrando o espetáculo como se fosse um filme. Aplausos de pé. A cena do nascimento dos novos integrantes da fazenda é fantástica. O cenário (assinado pelo diretor) é um pasto com feno e ótima a ideia de criar o moinho com baldes em pirâmide. Tudo lindamente iluminado por Elisa Tandeta.

É destaque a música criada por Zélia Duncan – o Hino dos Animais – e a trilha sonora original de Marcelo Alonso Neves onde os cavalos batem castanholas simulando os cascos no chão.

Mantive meu celular desligado para que nenhuma interferência me fizesse lembrar que lá fora, a vida pegava fogo. Entre as falas dos atores, escutávamos gritos da população. E foi no intervalo da peça, que Bruce, ao microfone, nos informou que Lula havia passado a frente na contagem dos votos, o choro começou ali. Como continuar sem saber o resultado? Sigamos.

No segundo ato, os porcos seguem dominando os demais bichos com armas e humilhações, se mostrando pior que o humano lá do início. Eis que chega o corvo, sob a voz de Glauce Guima, e anuncia que Luiz Inácio Lula da Silva estava eleito presidente do Brasil. O choro foi coletivo. Gritos, aplausos e abraços. Mas o show tem que continuar e, aliviados e radiantes, acompanhamos a tragédia daqueles animais até a finalização da história.

O numeroso elenco brilha cada um a seu momento. São eles: Camille Leite, Daniel Leuback, Eder Martins de Souza, Gabriel Albuquerque, Glauce Guima, Gustavo Damaceno, Jean Marcel Gatti, Lucas Gargois, Pedro di Carvalho, Raiza Noah, Ricardo Lopes, Sol Souza, Victoria Reis, Yasmin Gomlevsky, Gabriel Sednen, Jéssica Luz, Lea Nogueira, Mariana Bittencourt, Paulo Tarsia e Valentina Ghiorzi. A forma como se entregam a retratar animais, com vozes e gestos, é belíssimo. Muitos ficam cenas e cenas de 4 ou em posições doloridas para humanos imitarem bichos.

E a catarse coletiva veio ao final, quando, juntos, aplaudimos a este trabalho sem nenhuma falha, oportuno, necessário, digno de prêmio. Nos abraçamos, mesmo desconhecidos, cantamos o hino do presidente eleito, agradecemos aos deuses do teatro e as esperanças por dias e uma vida melhores voltarem ao povo brasileiro.

É por causa de espetáculos como este que dizemos que a arte resiste. A arte salva. Uma Revolução dos Bichos é mais que uma peça de teatro, é um esforço artístico coletivo. Eu estava certo quando escolhi acompanhar a apuração onde eu me sinto mais feliz, no teatro. Só agradeço. Aplausos de pé. Bravo!

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