sexta-feira, 17 de junho de 2022

BRILHO ETERNO

Se você pensa que já viu de tudo na cena teatral, engana-se. Tem um cara que renova a arte sempre que coloca a mão: é Jorge Farjalla. Explico.

Acompanhei deste a primeira postagem no Instagram do diretor a ideia de se fazer do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança” uma peça. Tudo começou em 2019. Porém, o mundo se acabou em 2020 e em 2022 estreou em São Paulo no teatro Procópio Ferreira a comédia romântica Brilho Eterno. Deus agenda tudo. 

A peça fala de amor. Não só isso. É também um caso de dores apagadas. O texto adaptado por Farjalla e André Magalhães, com colaboração de Victor Bigelli e Tainá Müller, nos conta a história de um casal que terminou a relação e ambos querem apagar a dor da separação. Aí encontram uns cientistas loucos que fazem uma “lobotomia emotiva”, que só apaga a dor da perda do amor. Com o andar da história, descobrimos que não é só dor de romance que pode ser apagada. Qualquer dor que venha de uma perda. 

É tradição humana deixar de fazer algo por medo de sofrer. Negação. Não vou ao bar pois ali iniciei um namoro; não toco piano porque lembra minha avó falecida; não entro no clube pois a lembrança das horas na piscina me dá angústia. E se pudesse apagar isso? Voltaria a nadar, a tocar, ao bar? Enfrentar é a forma de domá-la, transformá-la. Evitá-la, é alimentar a dor. Apagá-la é o que? Covardia? Solução? Obviamente é uma situação hipotética, mas as questões ficam martelando durante toda a peça.

No palco, o ótimo cenário de Rogério Falcão é um “container” que ora é elevador, livraria, casa, bar, laboratório. A execução das mudanças, as aberturas de portas e janelas são leves. A opção pelo branco nos dá a oportunidade de escolher que cores queremos que o ambiente tenha e, por outro lado, valoriza o balão vermelho de coração, o cabelo azul, a sacola amarela... É o tipo de cenário que eu AMO em teatro. 

O figurino, criação do diretor, é uma roupa básica, um uniforme, acrescido de adereços para compor a cenas. Tudo preto com letras brancas, que conversam com o cenário, deixando rostos e mãos dos atores no foco do olho do público.

O design de luz de Cesar Pivetti é aqui um palavrão usado no superlativo: FODA! Não há como dizer a beleza, criatividade, colorido e competência desta luz sem usar a expressão FODA. Uma das luzes mais lindas que já vi no teatro. E ela vem de todos os lados! Uau!

E você acha que só a luz é FODA, negativo. A direção musical, trilha sonora e o design de som, criação de Dan Maia também é tão superlativo quanto a luz. FODA! Escutamos em 360°, as musicas instrumentais avançam e recuam tal qual as cenas. O looping do tempo se faz presente nas escolhas sonoras, o disco é tocado de trás pra frente, o tempo e a musica avançam e voltam! A imersão sonora começa no aquecimento do elenco com as canções de amor, fogo e paixão, enquanto o público se assenta.

Este texto tá grande, mas o assunto é importante. Aguenta. Enquanto escrevo sobre e peça, e já faz uma semana que assisti, ainda estou tentando decidir se apagar uma lembrança é bom ou ruim. Continue comigo.

Como a Covid não acabou, no dia da récita, Tainá Muller foi substituída por Renata Brás. Ótima em cena, Renata está à vontade como protagonista. Se havia insegurança pela urgente troca de papéis, jamais ficou claro. Segura, firme, certeira, Renata Brás nos traz em seus olhos e comportamento cênico o amor pela arte e pelo papel que defende. Reynaldo Gianecchini é o protagonista da história. Sua presença atinge em cheio os corações partidos e acalorados dos casados, solteiros, casadas e solteiras na plateia. É amor puro. Wilson de Santos, sou fã desde A Bofetada. Em Brilho Eterno, Wilson é a alma cômica e o fio condutor da questão do espetáculo: devemos apagar uma dor ou suportá-la? As gargalhadas da plateia são pra ele. Gênio. Raphaela Tarfuri entrou no papel que era de Renata Brás de supetão e segurou com competência, carisma e inteligência cênica o desafio que lhe foi concedido. Ainda no elenco, Daniel Aidar (que substituiu Tom Karabachian também com covid) e Fábio Ventura, não menos importantes, formam com Wilson o trio LSD de cientistas apagadores de memória, lembrança e dor. Afiados, afinados e com garra. Alias, amor é a palavra que pode representar o que sentimos deste conjunto em cena.

Na majestosa direção, Farjalla entrega seu melhor: junta música, luz, atuação, história, referências, colorido. Embrulha o espetáculo como um presente de amor para o público. “Abram esta joia, vejam, sintam, sofram, curtam o que preparei para vocês”. A sua marca de “tudo misturado porém com liga” está na peça. É nosso Paulo Barros do teatro. Só ele faz com perfeição algo com tanta informação e qualidade. Só ele entrega algo novo ao público. Como disse no início desta longa conversa, Farjalla inova, mesmo no tradicional. Mistura praga com amor, memória com dor, luz com música, beleza física com lembrança triste da peste (bubônica, gripe espanhola, covid...).

O assunto poderia se encerrar aqui, mas a pergunta sobre esquecer ou viver o sofrimento ainda não foi respondida. Então vá assistir ao espetáculo para tomar ciência da história e tire a sua própria conclusão. Talvez pense que é melhor sofrer a dor da perda do que apagar a lembrança da causa, pois apaga-se também os bons momentos vividos. E a balança tem que pesar para o lado bom. É importante sofrer para aprender, crescer, mudar comportamento repetido, evoluir.

Brilho Eterno além de ser um excelente espetáculo teatral, traz reflexões e referências. Aplausos para os produtores Marco Griesi, Renata Alvim, Daniela Griesi e Reynaldo Gianecchini pela gigante qualidade deste produto. Vida longa a Brilho Eterno! Aplausos com cobertura de Bravo!

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