quinta-feira, 2 de junho de 2022

CÉU ESTRELADO


A primeira vez que eu vi, de verdade, um céu estrelado foi na cidade de Iguaba Grande, onde passávamos as férias de verão quando crianças. Era noite sem lua e graças à falta de luz, que eventualmente atingia a cidade, tivemos um mar de estrelas sobre nossas cabeças. Ali, minha avó me ensinou a localizar o Cruzeiro do Sul e as Três Marias. Ainda nesta mesma casa de férias, tempos depois, passamos a ter rodas de violas com moradores da região que volta e meia tomavam cachaça com os pais e maridos no bar próximo. Violões de muitas cordas, vozes de seresta sempre se faziam presentes naquela varanda, de frente pra lagoa de Araruama. Quem passava assistia à cantoria e pedia música. Não é à toa que todas as crianças que ali estiveram aprenderam a cantar os mais variados gêneros musicais brasileiros.

E Gustavo Nunes teve a ótima ideia de criar um musical que traz para nós um pouco deste cancioneiro popular do interior. Entende-se "interior" tudo aquilo que não está nos grandes centros urbanos. Logo, temos mais interior que cidade. Reunindo um time de primeira linha, é delicioso cantar, como se estivéssemos num rancho fundo, canções inesquecíveis, como Romaria. Minha favorita.

Carla Faour é a responsável pelo brilhante texto da peça. Acompanho seu trabalho farrétempo e, como disse a ela, Céu Estrelado, musical que está em cartaz no CCBB do Rio e vai circular pelos demais, é um dos seus melhores textos. Ali tem tudo: amor, saudade, dores ocultas, inveja, ciúme de pai e irmã, desejo de liberdade, medo da aventura, arrependimentos, mentiras e verdades na mesma medida e, acima de tudo, humanidade. Diálogos pertinentes, reais e possíveis nos contam a história de uma cantora que se aventura na cidade grande em busca da fama, mas que na visita aos parentes nota-se que o sonho ainda está na fase sonho, que a cidade do interior, parada no tempo, ainda reclama sua partida, embora rumos tenham sido tomados sem que ela saiba. Aí é lavação de roupa suja, ao redor de uma fogueira, embaixo de um céu estrelado. Carla nos brinda com um "plot twist" digno dos melhores filmes, quando o inesperado muda radicalmente os rumos dos personagens. E, acima de tudo, faz uma gigantesca crítica ao descaso das autoridades, à ganância, aos abusos de poder e as consequências da resposta da natureza.

João Fonseca e Vinicius Arneiro assinam uma direção tecnicamente perfeita, com total uso do palco e espaços, deixando os atores a vontade porém com marcas firmes. O trabalho da dupla é ótimo, uma vez que permite a condução da história por um caminho tranquilo e equilibra com os momentos de tensão e canção. Aplausos de pé para a cena sobre o praticável com elenco ao redor, naquela roda de viola onde olhares, ciúmes, amores são revelados por pequenos gestos e insinuações delicadas.

Super Nello Marrese cria a cenografia ótima com um talude ao fundo, um telão branco que é céu estrelado e ao mesmo tempo sol forte, um praticável que é varanda, palco, sala… Flavio Souza sabe das coisas e assina um figurino leve, colorido e totalmente de acordo com as características de cada personagem. Dani Sanches assina uma iluminação colorida, séria, alegre, nostálgica, que soma com qualidade seu trabalho aos demais.

Tony Lucchesi é o diretor musical e nos brinda com pérolas da música brasileira do interior, como Romaria, Pense em Mim, Evidências, entre tantas outras belíssimas canções. Temos Milton, Gil, Chico Cesar, Chico Buarque, Roberta Miranda, entre tantos outros. Uma seleção tipo canal do Spotify para ouvir a qualquer hora do dia! A ilustríssima presença do violonista Gabriel Quinto representa com qualidade, classe e talento todos os tocadores de viola deste país.

Não menos importante, temos um elenco brilhante em cena. Composto por cidades diversas, Natal, Recife, Angra dos Reis, Goiânia e Rio de Janeiro, os atores Bruno Garcia, Juliana Linhares, Daniel Carneiro, Dani Câmara, Hamilton Dias e Natasha Jascalevich, cada um a seu tempo, brilha intensamente sob este Céu Estrelado. Peço licença para um aplauso levemente maior a Juliana Linhares, gigante e forte.  

Quando escrevo muito é porque o assunto pede. Sabemos muito bem que é de sonho e de pó, o destino de um só. E que não precisamos ir bem pra lá do fim do mundo para conhecer e aprender sobre as belezas da vida no interior. Principalmente sobre a música de qualidade que retrata nosso país.

É importante ainda destacar que a peça toca na ferida das tragédias nossas de cada dia, como os ataques aos rios, montanhas e a natureza do interior. As explorações de metais que poluem os rios, os despejos das lamas tóxicas, os assoreamentos dos rios, as cheias descontroladas, a falta de investimento e segurança para os moradores.

Aproveite esta imensa oportunidade de rir, se emocionar, pensar e cantar que o espetáculo Céu Estrelado nos dá. Vá correndo ao CCBB e desfrute desta beleza de musical. Aplausos de pé com gritos de bravo!

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