domingo, 21 de setembro de 2025

MACBETH LADY MACBETH

“Está nos autos, excelência!”, disse aquele relator do STF para o dissidente colega topetudo ao negar, diante da primeira turma, o óbvio, o documentado e auditável. Houve sim uma tentativa de matar o presidente eleito e o membro do STF. Mandaram até um cabra ficar de tocaia. Mas, na hora H, o putrefato mandatário da nação abortou a missão. Outro exemplo: uma pastora, mãe adotiva de mais de dez crianças, combina com um jovem filho-amante matar o marido para ele assumir o trono de rei da casa. Mataram. Descobriu-se e hoje, a pastora que usava peruca padece numa cela sem maquiagem, sem beleza, sem carinho, sem coberta, num tapete atrás da porta... alias, quase isso. Noticiaram recentemente que a tal está de namoro firme com uma detenta do Talavera Bruce.

Isto posto, tá aí em cima a justificativa para a peça Macbeth Lady Macbeth, em cartaz no Mezanino do SESC Copacabana até dia 05 de outubro. Muitos acham que Shakespeare é um autor do passado, mas ele, visionário, sabe que a humanidade não muda... é a mesma... A peça ainda é atual e fala sobre a banalidade da brutalidade dos dias de hoje. Planeja-se matar um ser humano como quem olha a barata e pensa em pisá-la. Ou se mata um companheiro como quem ataca um mosquito com sua raquete elétrica. 

É assim: “Após retornar vitorioso de uma guerra, o general Macbeth é recebido com a profecia de três bruxas: “Salve, Macbeth, que um dia há de ser rei”. Motivado por essa previsão e em parceria com sua companheira Lady Macbeth, o casal planeja e executa o assassinato do rei Duncan. Macbeth e Lady Macbeth lidam com a realização de seus desejos, mas também com o peso de sentimentos inescapáveis à existência humana.” Esta é a sinopse da peça que assistimos. E tem muito mais aí por trás e vou te contar a seguir.

Quando entramos, os atores estão performando cenas que parecem aleatórias. Movimentos e expressões seguem uma ordem e, ao se repetirem diante da entrada do público, conseguimos saber o que está sendo dito sem dizer. Alegria dela, medo dele, parceria no bater de mãos hi-five em cima. O cenário composto de uma grande mesa e duas cadeiras, é cheio de simbolismo. Sabemos, pelas inúmeras reconstruções de época vistas no cinema, que ali estamos falando de séculos muito passados. Cálices de prata, barro e madeira, frutas verdadeiras e falsas, pratos, folhagens. É lindo o cenário iluminado. Nota-se raízes de plantas nas pernas das mesas, crescidas ao longo do tempo, mostrando a solidez dos reinos, da parceria dos atores, da cumplicidade de Macbeth e sua Lady. O figurino também é bonito e inteligente pois usa materiais modernos para dar vida ao longínquo passado. Destaque para uma capa, um manto, escondido nas costas do ator que é revelado quando Macbeth vira Rei. Ainda sobre a roupa de Macbeth ficou clara a referência da cota de malha medieval. Ambos são assinados por Teresa Abreu. Ótimos.

A luz de Nina Balbi também é muito criativa para um palco cujo teto é baixíssimo! Destaque para os refletores elipsoidais que, sobre uma estrutura escondida com pano preto, iluminam, horizontalmente, toda a mesa no meio do palco, projetando sombras (memórias, fantasmas...) na cortina do fundo. Excelente! 

A trilha de Marcelo H é certeira. Sons, músicas incidentais de tensão, a referência ao filme “A Grande Beleza” na música tocada para o baile oferecido pelos protagonistas “Far L’ Amore” (Bob Sinclar sobre canção original de Raffaella Carrà) – “Aah, a far l'amore cominicia tu” (Aah, a fazer amor comece você), tudo a ver com este casal bandido, assassino e cúmplice!

Miwa Yanagizawa dirige a peça. A sagacidade de usar a intimidade dos atores para os personagens, a cumplicidade, o jeito de falar do dia a dia de ambos, a movimentação... tudo funciona. É durante a peça que notamos que o prólogo, mudo, a performance, nada mais era do que os atores passando a peça no silêncio, uma pré-peça, onde um “cenas dos próximos capítulos” prévio já mostrava para a plateia as marcas e expressões. Ótima também a alternância do texto, ora dito por um ora por outro, o mesmo texto, na carta inicial enviada por Macbeth para sua Lady, o jeito como ele a escreve, o jeito com ela a lê. Também ótima a troca de papeis com mesmo texto no medo do pós-assassinato. Tudo amarrado e pensado. A loucura dos dois, o baile, o romance... Miwa sabe que os atores usam cada vírgula para expressar sentimentos e contar aquela breve história. O coloquial no falar do texto clássico de Shakespeare é o que aproxima o público jovem (somos todos jovens diante do “Bardo de Avon”, apelido dado ao mestre da dramaturgia). Aplausos e mais aplausos.

Cláudia Ventura e Alexandre Dantas, atores da peça. É um deleite vê-los em cena. Tudo que foi escrito acima (perdoem o tamanho...) só é possivel porque os dois são feras, fodas e fantásticos atores. O domínio que têm de si, de sua palavra, de seus sentimentos, de suas expressões faciais e corporais está dito, mostrado, em cena. Tudo é bom. Do olhar cúmplice à piada da masturbação – Macbeth Alexandre masturba sua Lady Cláudia, porém erra o ponto G e acaricia a cadeira... gargalhadas! O carinho de Lady Cláudia quando Macbeth Alexandre se amedronta ao voltar para seu quarto com o punhal ainda sujo de sangue. A proteção de Lady quando seu marido surta na festa... Sou mais que fã e admirador. Sou aluno e aprendiz da dupla. Com esta peça, a sua Cia FaláCia comemora 35 anos de estrada. E muito bem comemorados.

O que vemos não é Macbeth e sua Lady cúmplices. São Cláudia e Alexandre cumplices. Só mesmo um casal que se curte, se admira e embarca na roubada, na aventura e na glória, um casal que tem tamanho lastro e intimidade pode apresentar um espetáculo desta monta, como diria Odette, aquela.

Para finalizar, (UFA!) corram, corram e corram para assistir a este espetáculo. É sensacional por todos os motivos ditos acima. É quando a gente assiste a espetáculos como este que a alegria e a certeza de estar na profissão certa se renova. Excelente. Bravo!


sábado, 20 de setembro de 2025

A PÉROLA NEGRA DO SAMBA

Dia 19 de setembro é o Dia Nacional do Teatro. E, não óbvio, e “quem me conhece sabe”, que o meu lugar favorito no mundo é uma sala de teatro, lá estava eu no Teatro Carlos Gomes, centro do Rio de Janeiro, onde assisti a grandes espetáculos que marcaram minha vida nas plateias, para assistir ao novo musical dirigido e escrito a quatro mãos por Luiz Antonio Pilar e Leonardo Bruno, “A Pérola Negra do Samba”, em homenagem a Jovelina Pérola Negra.

Pilar é um mestre em retratar histórias de grandes artistas, como Candeia, Ataulfo Alves, Leci Brandão, entre outros, não só no teatro, mas também na tv e no cinema. Leonardo Bruno é jornalista especialista em música popular e carnaval. Sem dúvida um encontro de bambas que só podia dar certo.

O musical conta de forma criativa e divertida a história de Jovelina, desde pequena, passando pela juventude até entrar na maior idade onde começa a frequentar rodas de samba e se apaixona pelo pagode. Daí em diante, tem que assistir para saber os mínimos detalhes. É hilária a cena de Jovelina pequena correndo pela casa. Um acerto gigante a criação das personagens Cebola e a Diretora da Gravadora. O roteiro nos faz mergulhar nas canções, emoções e a vida de Jovelina, com sua força de mãe e mulher, seu medo de entrar numa vida de artista e a consagração ainda atual.

O cenário de Lorena Lima é composto de caixotes modernos e coloridos de feira que são muito úteis para o desenrolar da história e formam também um bonito fundo de palco. O figurino de Rute Alvez é ótimo, pois nos remete à vida da cantora, parece ser confortável para o elenco e, além disso, é bem confeccionado. A luz de Daniela Sanches é sempre bonita e aqui temos focos e movings que conduzem a história junto com a direção.

Aplausos de pé para a direção musical de Rodrigo Pirikito e Matheus Camará. Um conjunto de músicos excelente! Além dos dois diretores musicais, temos Daniel Esperança, Wesley Lucas, Pedro Ivo e Thainara Castro em cena. Preparação vocal de Pedro Lima é notada nas vozes perfeitas do elenco.

Pilar também é o diretor e temos neste trabalho uma direção muito minuciosa e caprichada. Percebe-se a partitura da atriz (Fernanda Sabot) fazendo a mãe de Jovelina pedindo ao patrão para trazer a filha para o trabalho, a desenvoltura e imensas possibilidades de Cebola (Thalita Floriano), que hora dialoga com a plateia, ora comanda a banda. Todas as cenas da Diretora da Gravadora são ótimas. O movimento dos caixotes de feira, ora palco, ora queijo, ora esconderijo, a beleza do figurino, a luz mágica, a movimentação e gestuais, tudo está pensado com carinho e aplicado pelo elenco com entrega. Ótimo conjunto e acerto de escolhas. Direção, pra mim, é isto: harmonizar o visual, encaminhar o elenco, ajustar volumes, indicar entonações, fazer a equipe criativa entender a proposta e, mais que apenas executar, deixar todos que trabalham ao seu redor encantados e entregues à sua direção. É isso que sai do palco e chega na plateia. A preparação corporal de Luiza Loroza é percebida nos gestuais e comportamento cênico do elenco.

Thalita Floriano é Cebola de ponta a ponta. Espetacular seu trabalho. Aproveita todas as falas, se diverte, faz a plateia gargalhar e canta muito! Fernanda Sabot é a sensacional Diretora da Gravadora, entre outros personagens, e é a voz afinada que emociona com seu canto forte e emotivo. Thiago Thomé faz de patrão a marido, de apresentador a amigo fiel de Jovelina e canta muito! Thiago sabe que o palco é delas, mas ele pede passagem e se coloca com sabedoria e elegância. Cabe à Verônica Afro Flor o desafio de ser Jovelina Pérola Negra e Afro faz isso com respeito, carinho e emoção. Sua voz forte permite que tenhamos uma homenageada em cena e acreditemos em tudo que ela diz, canta e interpreta. A cena de Jovelina com o namorado/marido/pai dos filhos é linda, bem como Jovelina criança é belíssima. Sem contar nos pagodes inesquecíveis que Afro Flor faz a gente relembrar e agradecer por ter vivido no mundo junto com Jovelina.

A peça começa e nós, público, vamos nos acostumando com aquela história que vai se contando. Vamos entrando na história, a velocidade do texto, a sequencia de músicas, elenco, cenário, luz... quando do palco vemos uma cena que nos faz cair na real: é uma verdade em forma peça de teatro – neste momento a magia está feita. A plateia foi enfeitiçada. Tem duas cenas em que Jovelina é montada diante dos olhos do público. Roupa, peruca, sapato. De menina para mulher. De doméstica para cantora. Ali, aos olhos do público, a magia do teatro acontece. E então... somos todos consumidos pelo espírito do teatro. O teatro é, sem dúvida, o melhor lugar do mundo neste momento.

Dia 19 de setembro, Dia Nacional do Teatro, agora também é o dia de Jovelina Pérola Negra voltar aos palcos cariocas, com seu pagode que não deixa cair, é, é, sem vacilar, sem se exibir, pois ela, Jovelina, elenco, direção, dramaturgia, músicos, equipe criativa, só vieram mostrar o que aprenderam para nós. E saímos todos encantados pelo musical.

Imperdível. Aplausos de pé até as mãos ficarem roxas! Viva o teatro, viva Jovelina Pérola Negra!


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Foi em 2012 quando pisamos em Belo Horizonte com o projeto Lê Pra Mim?, que incentiva a leitura de livros brasileiros. Levamos sempre alunos de escolas públicas e, em BH, realizamos no Museu de Artes e Ofícios. Teuda Bara e Inês Peixoto, divas das artes cênicas, nos deram o prazer e a honra de lerem para as crianças, dentro do Lê Pra Mim?. Como ficamos tão amistosos naquele dia “ines-quecível”,  Sônia de Paula e eu fomos convidados a assistir, dentro do galpão do Grupo Galpão, um ensaio de Teuda em seu monólogo que iria estrear e rodar o país. Me senti um privilegiado, sentado ao lado da equipe do Galpão, para assistir a este ensaio-aula que foi. Sem falar no gigantesco prazer e honra de estar dentro da casa do Grupo Galpão, onde a arte vibra pelas paredes, tetos e estruturas.

O Grupo Galpão costuma convidar diretores para experimentações teatrais que geram – sempre! - grandes sucessos nacionais. Tive o privilégio de assistir a “Romeu e Julieta” de Shakespeare, “Os Gigantes da Montanha” de Luigi Pirandello – ambos dirigidos por Gabriel Vilella (para ver Os Gigantes no Rio, a plateia sentou na escadaria do Monumento aos Pracinhas no Aterro do Flamengo ao ar livre!), “Tio Vânia” dirigido por Yara de Novaes, “Nós” dirigido por Márcio Abreu, “Cabaré Coragem” dirigido por Júlio Maciel, e agora “(Um) Ensaio sobre a cegueira” dirigido por Rodrigo Portella.

Este espaço onde escrevo sobre teatro, me serve como memória do que assisti, gostei e indico para meus 3 leitores assíduos. Posto isso, como diria Odete Roitman, não tenho lastro nem monta para tecer criticas profissionais ao trabalho de ninguém, mas me reservo ao direito de, usando de minha liberdade de expressão, auditável e digital, e sempre dentro das quatro linhas da constituição (entendedores entenderão), opino sobre as peças de teatro que marcam minha vida artística de espectador profissional.

E chego a Saramago, Galpão e Rodrigo Portella. (Um) Ensaio sobre a Cegueira, em cartaz no Rio de Janeiro, no teatro Carlos Gomes, é uma adaptação do livro de José Saramago (que eu li e amo), para o teatro. Já tivemos cinema, mas certamente a adaptação teatral é muito mais rica e forte que o filme. Rodrigo seleciona as partes mais atordoantes do livro, onde os seres humanos são postos à prova o tempo todo, antes, durante e depois de passarem por um surto coletivo de cegueira leitosa branca nos olhos dos personagens. Sem spoiler, leiam Saramago, ou assistam ao filme. Rodrigo Portella faz milagre com muita competência, amor ao livro e, principalmente uma segurança sem tamanho do que apresenta para o público.

Rodrigo Portella também dirige. Senhores. Senhoras. Senhoros... o que assistimos no teatro - no último domingo - é de uma riqueza, beleza, naturalidade, competência, carinho e amor ao teatro, que não se tem como escrever sem usar todo o dicionário de palavras elogiosas. 

É emocionante ver como Rodrigo Portella entende que o Galpão é grupo. Ele inclui a plateia no espetáculo, não casualmente, mas literalmente. Pequena parte do público sobe ao palco para participar das cenas mais marcantes do espetáculo. A cena da volta das mulheres que serviram de moeda de troca por comida – onde todas limpam a que mais sofre – é dessas que ficarão para sempre na memória de quem assiste; a cena imediatamente antes desta, totalmente muda, em que o público fica quase 2 minutos em silêncio, angustiado, compenetrado, assistindo e compartilhando sentimentos; na mistura de narrações com diálogos; no arrumar do cenário vindo do fundo do palco desnudo, enfim... só de escrever, me arrepio. Ao final, a plateia, em convulsão, está toda integrada, conquistada, sequestrada por emoções e questionamentos sobre como os humanos podem passar de “cidadãos de bem” a “demônios da tasmânia”. Uma direção acertada, bem feita, detalhista, inclusiva, competente, ousada e ao mesmo tempo segura e tranquila. A gente sabe o trabalho que dá, mas o que Rodrigo nos mostra, é que tudo foi fácil, rapido e limpo. É impossível ver as dores dos ensaios, pois a alegria, entrega e parceria do Grupo Galpão com a direção é perfeita (não existe outra palavra).

O Grupo Galpão, para mim, é uma das três trupes teatrais que eu mais admiro, respeito, sigo, assisto e sou fã. Todos, absolutamente todos, sabem atuar e como se portar no palco. Não interpretam, eles vivem. Antônio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André / Rodolfo Vaz e Simone Ordones são todos, todos, todos, atores espetaculares. Não tem uma frase dita de maneira errônea, não tem uma entonação diferente do que tem que ser, não tem uma movimentação corporal gratuita. Eles não só sabem o que estão fazendo, como se divertem, são disciplinados, colegas, únicos e fazem com muito amor. É tanto amor no palco entre si, pela profissão que escolheram, pelo público, pelo colega, pelo teatro, pela direção, por Saramago, que a gente sente. Sim, nós, público, sentimos. É energia vibracional vinda do palco. É amor. É teatro.

Cabe citar o cenário de Marcelo Alvarenga, a luz de Rodrigo Marçal com o diretor, o figurino de Gilma Oliveira, os adereços de Rai Bento, o visagismo de Gabriela Domingues, a sensacional Direção Musical de Frederico Puppi e a movimentação dos atores. Toda uma equipe unida e acertada.

É preciso finalizar o texto, mas não consigo parar de pensar na peça que assisti: no final apoteótico onde público e atores saem do Sanatório juntos, nos abraços ao fim da peça, no respeito e carinho com os espectadores, nas lágrimas durante, é tudo sensacional. Tudo.

Me alonguei porque é o Grupo Galpão, é Saramago e é Rodrigo Portella.

Este espetáculo é daqueles em que os deuses do teatro se sentem orgulhosos. É mais que celebração. É amor mesmo. Puro e coletivo. É profissionalismo e arte. Eu só tenho a agradecer por ter assistido, presenciado e vivido esta experiência teatral. Muito, muito, muito obrigado. Aplausos de pé sem fim. Viva o Galpão! Viva o Teatro!


domingo, 10 de agosto de 2025

LAGARTIXA SEM RABO

O livro Marcas de Nascença, da autora Nancy Huston, traduzido por Ilana Heinberg e lançado pela Editora L&PM, no Brasil em 2012, conheci através de uma crônica de Marta Medeiros, em alguma coluna de jornal. O livro conta, através da visão das 4 crianças de uma mesma familia, porém gerações em sequência, (filho, mãe, avó, bisavó), as marcas que situações familiares deixam nos pequenos e como isto impacta em seus comportamentos ao se tornarem adultos. Recomendo a leitura.

O que isto tem a ver com Lagartixa sem Rabo?

Lagartixa sem Rabo é um espetáculo de teatro, escrito por Dora de Assis, com atuações da autora e Dora Freind e dirigido por Gabriel Rochlin, sobre a ótica feminina e infantil de acontecimentos marcantes na vida de uma menina, que se torna adolescente ao longo da peça, e cujas marcas, culpas e frustrações moldam a sua personalidade, comportamentos, decepções e medos.

Juntando o livro à peça, sabemos pelo release que a peça tem por base um livro e, nas duas citações acima, a visão da criança é a base da escrita, da encenação.

Lagartixa sem Rabo, em cartaz no Teatro Gláucio Gil, em Copacabana, tem um texto belíssimo e delicioso de se escutar. Cheio de belas metáforas, combinações de palavras inovadoras e frases pensadas, texto que dá gosto de ver sendo dito pelas atrizes. Foge do lugar comum. Não é a poesia barata e dificil de entender, é um poema em prosa, com colorização, com comparativos que só mesmo a língua portuguesa pode promover. É uma pena que minha memória não consiga registrar várias frases para reproduzir aqui. Mas, indo ao teatro, você há de concordar comigo depois.

A cenografia e figurino de Julia Moraes, que também assina a assistência de direção, merece ser esmiuçados. Figurino primeiro: linha é a base. Além dos bodies das atrizes, com meia calça lembrando cobra (lagartixa), uma touca com gigante rabo nos traz para a cena a pele e a referência. Belíssimo. 

O cenário composto de uma imensa manta sobre um pequeno praticável que é elevado ao fundo formando uma parede, um banco suspenso e uma gigante corda branca grossa cheia nós que vem do teto e deita no banco, temos ainda como objeto dois novelos de linha que são usados pelas atrizes para tecer prosa com a plateia. A grossa corda branca se transforma, no imaginário, pela ação da direção, em um tubo que mantém vivo o avô da protagonista. Sem spoiler, a mesma corda vira uma corrente arrastada, aquela corrente da culpa. Os nós da corda são desatados pela protagonista quando dialoga em pensamentos altos e com a plateia. Lindo! Os novelos são a linha da vida. A novela que se desenrola do princípio até a conclusão da trama. É ótimo também usar a manta como um paredão, onde aparecem, atrás e em cima, as duas primas – interpretadas pela mesma atriz - que são reconhecidas, uma a uma, pela simples troca de posição do rabo do figurino. Colocando as primas nesta posição, elas se tornam altas, maiores que a menina, que é a importância que a protagonista dá para a opinião das parentas.

Clarice Sauma cria uma luz muito bonita e que nos faz acreditar naquela cena que assistimos, dando mais elementos para construirmos mentalmente o que o texto conta. Frederico Santiago é o criador da ótima trilha sonora, que se junta a todos os elementos técnicos com competência e qualidade. Enfim, figurino, cenário, luz e som perfeitamente entrosados e pensados nos mínimos detalhes.

Dora e Dora são as atrizes da peça. Interpretando a mesma personagem, Lila, única protagonista, possuem uma gigante simbiose no palco. Amigas de longa data, confundidas por suas similaridades físicas, Dora e Dora se entregam generosamente uma à outra e à personagem sem medo. Dora Freind nos tira risos ao imitar o irmão bebê mais novo e na cena do mágico na festa infantil. Dora de Assis brilha ao interpretar as duas primas e nos momentos com o avô. Tem muito mais cenas lidas das duas, mas deixo você, leitor, virar espectador e ficará certamente de boca aberta com essas duas gigantes.

Gabriel Rochlin é o diretor deste espetáculo tocante, bonito, profundo e atual. Suas marcas (de nascença? de cena?) permitem às atrizes brincarem e encararem os dramas da pequena menina que comete um ato que a faz carregar uma culpa por muito tempo e da adolescente cheia de dúvidas. Gabriel explora a palavra dita e o que o corpo diz com seus movimentos. É uma direção pensada, como disse antes, nos mínimos detalhes. É bem ensaiado, coreografado, com união total da equipe. Gabriel sabe muito bem o que quer fazer e dizer com a peça. Assim, todos brilham. Vemos o conjunto unido para contar a história. Gargalhadas para a cena da personagem ensaiando Nelson Rodrigues com o diretor fictício cortando 90% das falas. Excelente.

A protagonista tem o hábito de cortar os rabos das lagartixas como diversão, passatempo ou até momento de fuga, onde tenta se livrar de alguma dor, passando-a para o animal indefeso. Alguém abaixo dela, alguém que não irá reclamar, algo que ela possa se sentir deusa e superior. Essa também é uma das culpas que carrega ao longo de toda a peça. Brilhantemente, no final, uma frase dita pela mãe a faz compreender muitas dessas suas culpas carregadas e se livrar de algumas. A peça faz um fechamento com o início, ligando pontos, arrumando perguntas futuras, amansando as dores.

A produção é de Ellen Miranda e Laura Picorelli e a arte gráfica é obra de Luiza Vaz. Parabéns!

Lagartixa sem Rabo merece ser visto por todos que lerem este texto ou tiverem contato com a divulgação da peça, feita por Catharina Rocha. É sobre todos nós, crianças adultas, carregadores de medos e frustrações, que serão resolvidos, ou não, ao longo do passar dos anos. Aplausos de pé com gritos de “Bravo!”. Viva o teatro, viva a nova dramaturgia brasileira!