Está no streaming o seriado Station Eleven (Estação 11), baseado em um livro de mesmo nome, de Emily St. John Mandel. A excelente série acompanha um mundo onde uma epidemia devastadora de gripe suína extingue grande parte da humanidade. Uma criança perde os pais logo na primeira cena, que se passa num teatro, e é ajudada pelo protagonista. A pandemia acontece e os dois tentam sobreviver ao vírus mortal. Já adulta, a menina se torna uma atriz que participa de uma trupe itinerante de artistas, encenando clássicos do teatro.
Durante o pior período da Covid 19, tive sonhos recorrentes de estar num teatro, cheio de gente, ora assistindo peça, ora montando, ora criando cenários com o que tinha nos bastidores. E, ao acordar, eventualmente eu chorava de saudade.
“Último Ensaio” é o espetáculo que comemora os 15 anos da Cia Omondé, com temporada no Teatro Firjan Sesi Centro. Conheço não só o repertório da Cia, pois devo ter assistido a 90% das peças encenadas, como também me tornei conhecido de parte dos atores.
Em “Último Ensaio”, Inez Viana escreve um texto que se passa num momento em que há uma pandemia em curso, ou vandalismo social, uma anarquia “lá fora”, enquanto um grupo de atores (fictícios) consegue entrar em um teatro-refúgio para fazerem algo que os conectem entre si, se mantenham no presente, evitem a loucura, que os façam lembrar de suas histórias passadas: ensaiar uma peça. A tal peça é escrita pela diretora (fictícia) do grupo de sobreviventes (fictícios), que há todo momento tem ideias novas, muda marcas, corta falas, acrescenta cenas, enlouquece os atores. Sem a diretora (fictícia) presente neste dia, o elenco (fictício) resolve ensaiar. Talvez o último ensaio, pois nunca se sabe o que acontecerá com eles caso precisem “ir lá fora”. Eles ensaiam e relembram histórias pessoais, de antes daquele momento pandêmico.
E é aí que está o bacana de “Último Ensaio”, quando os atores reais, entre textos, marcas, rubricas, contam histórias pessoais, relembrando momentos importantes de suas vidas. Repetindo todos os dias para o público, para que não se esqueçam das lições tiradas dos momentos marcantes. Algumas falas provocam imagens inesquecíveis no público mesmo que não a tenhamos visto: “... lá fora tem milhares de balões voando com um papel pendurado escrito TEATRO!” (algo assim). Inez Viana produz um texto cheio de subtextos e que permite aos atores de sua CIA atuarem com um desconforto-confortável. Adorei.
A própria Inez Viana é a diretora (real) da peça “Último Ensaio”, e que tem muito conhecimento do elenco da Cia que dirige e consegue tirar deles tudo que o espetáculo pede: amor ao teatro, atuações certeiras, corpos à disposição, vozes sem tremedeira. A direção é muito atual e moderna. Sempre a marca de Inez. Denise Stutz é a diretora de movimento com excelente aproveitamento do espaço cênico e aproveitamento dos corpos que falam mesmo parados.
O palco livre de cenário, possui apenas cadeiras diversas, uma mesa e objetos. O figurino é o exato para um dia de ensaio. A direção de arte é de Carla Costa. Sarah Salgado ilumina tudo com a beleza e competência necessária para a montagem. Trilha sonora de Pedro Nêgo que sabe dar ares de tensão e diversão.
Vem do elenco o maior brilho da peça. Se entregam de almas, histórias e corpos para fazer de “Último Ensaio”, um espetáculo inesquecível, tocante e alegre. Debora Lamm, Carolina Pismel Junior Dantas, Leonardo Brício, Zé Wendell e Luiz Antônio Fortes – elenco da Cia Omondé -, Jade Maria Zimbra e Lux Négre – atrizes convidadas – e Jefferson Melo – ator convidado, têm domínio total de cada palavra e cada gesto. Suas histórias particulares acrescentam ao todo, ora com humor, ora com emoção, para que, a cada dia, seja realmente o último ensaio daquele fictício grupo, mas que também seja uma apresentação cheia de amor ao Teatro e respeito ao público.
Cabe destacar: Debora Lamm e o mapa astral do Brasil, Junior Dantas e seu boneco idêntico, Zé Wendell jogando os papeis para o alto, Leonardo Brício relembrando a peça “Nem mesmo todo o oceano”, Lux Négre ouvindo a conversa da mesa ao lado, Jade Zimbra cantando, Carol Pismel correndo com o texto e caindo desmaiada no palco várias vezes, Jefferson esquecendo de colocar a camiseta na mochila e Luiz Antônio Fortes achando a criança no café do teatro... Gelol para o elenco urgente!
Cia Omondé tem com “Último Ensaio” o espetáculo à altura do talento individual e coletivo, que mostra que juntos são tão fortes quanto individualmente. Sob a batuta de Inez Viana, temos mais um espetáculo que ficará, não só para a história do grupo, como para a história do teatro carioca.
Que me perdoem os não-artistas, mas o melhor lugar do mundo é o teatro. Se eu pudesse, teria passado toda a pandemia dentro de um. Viva o Teatro. Viva a Cia Omondé. Vida longa à “Último Ensaio”.