sábado, 19 de outubro de 2024

ÚLTIMO ENSAIO

O melhor lugar do mundo é o teatro. Sempre que estou na plateia ou no palco, penso: “o melhor lugar do mundo é aqui”. No teatro, adultos brincam de faz de conta. Seja texto barra pesada ou comédia, estamos, todos “fazendo de conta”. Quem ama o que faz, sabe o que digo: o seu melhor lugar pode ser consultório, escritório, oratório. Mas nada, absolutamente nada, se compara ao Teatro. Experimente! Recomendo violentamente.

Está no streaming o seriado Station Eleven (Estação 11), baseado em um livro de mesmo nome, de Emily St. John Mandel. A excelente série acompanha um mundo onde uma epidemia devastadora de gripe suína extingue grande parte da humanidade. Uma criança perde os pais logo na primeira cena, que se passa num teatro, e é ajudada pelo protagonista. A pandemia acontece e os dois tentam sobreviver ao vírus mortal. Já adulta, a menina se torna uma atriz que participa de uma trupe itinerante de artistas, encenando clássicos do teatro.

Durante o pior período da Covid 19, tive sonhos recorrentes de estar num teatro, cheio de gente, ora assistindo peça, ora montando, ora criando cenários com o que tinha nos bastidores. E, ao acordar, eventualmente eu chorava de saudade.

“Último Ensaio” é o espetáculo que comemora os 15 anos da Cia Omondé, com temporada no Teatro Firjan Sesi Centro. Conheço não só o repertório da Cia, pois devo ter assistido a 90% das peças encenadas, como também me tornei conhecido de parte dos atores.

Em “Último Ensaio”, Inez Viana escreve um texto que se passa num momento em que há uma pandemia em curso, ou vandalismo social, uma anarquia “lá fora”, enquanto um grupo de atores (fictícios) consegue entrar em um teatro-refúgio para fazerem algo que os conectem entre si, se mantenham no presente, evitem a loucura, que os façam lembrar de suas histórias passadas: ensaiar uma peça. A tal peça é escrita pela diretora (fictícia) do grupo de sobreviventes (fictícios), que há todo momento tem ideias novas, muda marcas, corta falas, acrescenta cenas, enlouquece os atores. Sem a diretora (fictícia) presente neste dia, o elenco (fictício) resolve ensaiar. Talvez o último ensaio, pois nunca se sabe o que acontecerá com eles caso precisem “ir lá fora”. Eles ensaiam e relembram histórias pessoais, de antes daquele momento pandêmico. 

E é aí que está o bacana de “Último Ensaio”, quando os atores reais, entre textos, marcas, rubricas, contam histórias pessoais, relembrando momentos importantes de suas vidas. Repetindo todos os dias para o público, para que não se esqueçam das lições tiradas dos momentos marcantes. Algumas falas provocam imagens inesquecíveis no público mesmo que não a tenhamos visto: “... lá fora tem milhares de balões voando com um papel pendurado escrito TEATRO!” (algo assim). Inez Viana produz um texto cheio de subtextos e que permite aos atores de sua CIA atuarem com um desconforto-confortável. Adorei.

A própria Inez Viana é a diretora (real) da peça “Último Ensaio”, e que tem muito conhecimento do elenco da Cia que dirige e consegue tirar deles tudo que o espetáculo pede: amor ao teatro, atuações certeiras, corpos à disposição, vozes sem tremedeira. A direção é muito atual e moderna. Sempre a marca de Inez. Denise Stutz é a diretora de movimento com excelente aproveitamento do espaço cênico e aproveitamento dos corpos que falam mesmo parados.

O palco livre de cenário, possui apenas cadeiras diversas, uma mesa e objetos. O figurino é o exato para um dia de ensaio. A direção de arte é de Carla Costa. Sarah Salgado ilumina tudo com a beleza e competência necessária para a montagem. Trilha sonora de Pedro Nêgo que sabe dar ares de tensão e diversão.

Vem do elenco o maior brilho da peça. Se entregam de almas, histórias e corpos para fazer de “Último Ensaio”, um espetáculo inesquecível, tocante e alegre. Debora Lamm, Carolina Pismel Junior Dantas, Leonardo Brício, Zé Wendell e Luiz Antônio Fortes – elenco da Cia Omondé -, Jade Maria Zimbra e Lux Négre – atrizes convidadas – e Jefferson Melo – ator convidado, têm domínio total de cada palavra e cada gesto. Suas histórias particulares acrescentam ao todo, ora com humor, ora com emoção, para que, a cada dia, seja realmente o último ensaio daquele fictício grupo, mas que também seja uma apresentação cheia de amor ao Teatro e respeito ao público.

Cabe destacar: Debora Lamm e o mapa astral do Brasil, Junior Dantas e seu boneco idêntico, Zé Wendell jogando os papeis para o alto, Leonardo Brício relembrando a peça “Nem mesmo todo o oceano”, Lux Négre ouvindo a conversa da mesa ao lado, Jade Zimbra cantando, Carol Pismel correndo com o texto e caindo desmaiada no palco várias vezes, Jefferson esquecendo de colocar a camiseta na mochila e Luiz Antônio Fortes achando a criança no café do teatro... Gelol para o elenco urgente!

Cia Omondé tem com “Último Ensaio” o espetáculo à altura do talento individual e coletivo, que mostra que juntos são tão fortes quanto individualmente. Sob a batuta de Inez Viana, temos mais um espetáculo que ficará, não só para a história do grupo, como para a história do teatro carioca.

Que me perdoem os não-artistas, mas o melhor lugar do mundo é o teatro. Se eu pudesse, teria passado toda a pandemia dentro de um. Viva o Teatro. Viva a Cia Omondé. Vida longa à “Último Ensaio”.

domingo, 29 de setembro de 2024

PROFESSOR SAMBA - UMA HOMENAGEM A ISMAEL SILVA

Uma vez fiquei com inveja de uns amigos que iam desfilar na comissão de frente do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estácio de Sá, em uma ala coreografada. Vomos? – disse um deles. Eu ri da forma como ele falou o verbo, substituindo vogais. Daí, respondi: “Vomos”! E, para quem nunca soube porque eu sempre digo “vomos” quando me chamam para algo, cá está a explicação. Fui. Ensaios rígidos. O coreógrafo quase batia na gente. Éramos 30. Fomos diminuindo, viramos 15, voltamos a 20, saíram 10 – eu inclusive, por falta de tempo, pois os ensaios varavam a madrugada na quadra da Estácio de Sá – e sobram os profissionais. Aqueles que realmente importavam para o coreógrafo. Assisti ao desfile da escola na Sapucaí, e chorei. Porque, de alguma forma, eu “tavo” ali com eles, dançando, apresentando, representando a Estácio. Foi lindo. 

Está em cartaz na arena do SESC Copacabana, o espetáculo musical “Professor Samba”, dando vida, relembrando, jogando a bola pra cima, de um dos mais importantes músicos da história brasileira, Ismael Silva. Claro que você conhece pelo menos 2 músicas dele: “Se você jurar, que me tem amor, eu posso me regenerar...” e “Oh Antonico, vou lhe pedir um favor...”  Mas... e as novas gerações? E os saudosistas de boas canções? É aí que está a beleza e a função deste musical, trazer Ismael de volta para nós através de suas histórias e músicas.

Ana Veloso é a autora de um texto que fala direto com o público. Recheado de dados importantes intercalados com cenas que “deixam falar” por si próprias, em recortes de Ismaelzinho até se tornar o Professor Samba, Ana Veloso mistura um pouco da vida dos três atores que interpretam Ismael. Sem falar nas cenas de humor, na ironia, na presença das referências das religiões africanas, que abençoam a peça e abrem os caminhos para a passagem pela arena em forma de avenida.

Amo teatro de arena. O SESC Copacabana e o Teatro do Planetário são as únicas arenas que temos na cidade. Mas o nosso Maracanã é a arena de Copacabana. Nela, Wanderley Gomes, cenógrafo, resolve as cenas com seu cenário composto de mesas e cadeiras de bar, com objetos necessários (garrafas, trouxas de roupa, flores e copos). Com as mesas criam-se passarelas, túmulo e prisão. Wanderley também assina o figurino, trazendo as cores dos malandros da Lapa somadas a referência do Zé Pilintra (considerado o espírito patrono dos bares, jogos e sarjeta – todas as partes onde Ismael Silva teve sua vida envolvida). Bem pensado também o figurino dos músicos, em tons cor creme e a saia da Porta Bandeira ser também desta mesma cor. A luz de Paulo Cesar Medeiros é sempre de bom gosto e, nesta peça, inclui a plateia no espetáculo com azuis e vermelhos sobre o público.

Wladimir Pinheiro, multi artista, é o diretor musical e traz para o palco arranjos fidedignos e de alta qualidade para as músicas de Ismael Silva. Wladimir está muito bem aparado nos músicos Leo Antunes, Fabio D’Lelis, Marlon Julio, Marcos Passos, que, às vezes, entram em cena, falam frases, e são parceiros dos compositores.

Ana Veloso e Edio Nunes são os diretores deste musical. Utilizando toda a arena, incluindo as escadas, sabem bem explorar o que de melhor tem o elenco. Destaque para as cenas dos filhos conversando com suas mães – onde as histórias dos atores se fundem com a de Ismael Silva – e os números curtos de humor, como a Diretora da Escola e a festa na casa dos ricaços da Zona Sul Carioca. Uma simbiose entre direção, cenografia, músicos e atores que exalam emoção e disciplina.

E temos o trio de atores, cantores, artistas Edio Nunes, Jorge Maia e Milton Filho. Três grandes professores de atuação, voz e comportamento cênico. Os três são Ismael Silva, suas mães, amigos compositores, policial, entidade. Edio Nunes brilha ao cantar, sambar e fazer Ismaelzinho. Jorge Maia brilha com sua voz potente, sua presença cênica e sua Diretora de Escola. Milton Filho brilha em seus momentos que interpreta a mãe de Ismaelzinho se tornando viúva, quando Ismael perde um amigo e também como Francisco Alves e o ricaço da Zona Sul Carioca. Ver esses três em cena, fica claro para a plateia que os três são os verdadeiros professores.

A vida de Ismael Silva tem, neste espetáculo, uma homenagem à altura de sua importância na música brasileira, na criação das escolas de samba como a conhecemos hoje – os grêmios recreativos, onde se ensina música, dança, cultura aos mais novos. Ismael mudou a forma de se tocar samba, criou a primeira escola de samba carioca, a Deixa Falar – hoje a Estácio de Sá – e é o responsável pelo gigantesco sucesso do carnaval carioca. Ismael Silva está para o samba, assim como Dodô e Osmar estão para o “axé music”. Sendo que Ismael Silva é um, eles são dois!

Presumo que “Professor Samba” seja a segunda parte de uma antologia em homenagem aos grandes bambas do samba. Se Edio Nunes idealizou “Joaosinho e Laila” e agora “Professor Samba”, qual será o próximo episódio musical desta série musical teatral? O que não faltam são nomes! Vá já para o teatro de arena para assistir a este musical imperdível. Já fui duas vezes. E se me chamarem de novo, eu direi "vomos"! Aplausos de pé. Viva o Teatro, viva Ismael Silva.

sábado, 28 de setembro de 2024

A SALA BRANCA


Imagine-se diante de um quebra-cabeças cheio de peças. Todas se encaixam no final. Mas a junção perfeita destas traz, para quem vê a obra pronta, imagens que se combinam isoladamente dentro do todo. Não é uma paisagem perfeita, muito menos um rosto, uma obra de arte ou arquitetura. Não, não. Temos neste quebra-cabeças pontas soltas sem destino, outras que finalizam sem o trivial ponto final, estradas que morrem antes do horizonte. Mas... de que importa? Qual a necessidade de se dar fim, compreender a fundo cada imagem criada? Pra que desvendar mistérios criados pelo interlocutor aonde eles não existem no quebra-cabeças, na trama, no texto? “Pare de querer desvendar mistérios onde eles não existem.” (É mais ou menos assim uma das frases ditas pela professora protagonista).

É esta a questão em jogo no espetáculo “A Sala Branca”, em cartaz na sala Multiuso do SESC Copacabana. Traduzida por Daniel Dias da Silva, o texto de Josep Maria Miró explora a ansiedade, a curiosidade, a necessidade de esclarecimentos do público, atiça a curiosidade e, acima de tudo – e o que é mais genial – deixa o público ávido por respostas que ele mesmo poderá criar, decifrar, descobrir, para que sua alma fique acalentada, para que sua ansiedade seja saciada por si só. Josep Maria Miró não se propõe a responder nada. O que ele quer dizer, e o que é importante, é aquilo que está dito no palco.

Daniel Dias da Silva transcreve para o português a língua catalã, mas a fala é universal. Na peça, uma professora reaparece na vida de 3 alunos aleatórios, que ela ensinou a ler, e faz uma confusão na cabeça de cada um deles, levando-os a refletir sobre seu passado e, acima de tudo, como estão suas vidas no presente. “Você está feliz?” é a pergunta que joga cada um dos alunos num redemoinho de lembranças e revelações. Senhorita Mercedes, a professora, está viva? É um fantasma de cada um dos 3 alunos, que volta para o presente a fim de atormentá-los ou tirá-los da zona de conforto? Ela provoca a explosão de segredos ou ela expurga a mágoa contida? Eis o mistério da fé.

No palco, o cenário de Sergio Marimba nos traz paredes brancas, mesa e cadeiras brancas de ferro e uma estrutura que simula um local fechado, apenas com os contornos. Lindo ver o cenário projetado em sombras nas paredes brancas. As sombras do passado, as marcas do escondido, estão ali naquela quase-sala. O figurino de Victor Guedes traz a característica de cada um dos personagens com exatidão: o arquiteto, o segurança, a corporativa e a doce e misteriosa professora. Vilmar Olos brinca com a luz e as sombras nas paredes, delimitando cenas curtas divididas entre presente e passado. 

Gustavo Wabner, que esteve em cena no espetáculo “O Princípio de Arquimedes”, do mesmo autor catalão, sabe como conduzir as cenas para o desejo do dramaturgo. É boa a ideia de colocar os personagens no palco, porém fora de cena, para que sejam sombras marcantes. Ótimo seu trabalho de direção dos atores. Percebemos que a palavra, o texto, foi bastante estudada e estruturada para que, durante a apresentação, mesmo parados, os atores demonstrem sentimentos até mudos. Impossível deixar de notar o olhar fixo da professora sobre seu aluno arquiteto, focada nele, aguardando o triunfo da explosão e expulsão do drama contido por anos por aquele que ela ensinou a ler.

O quarteto fantástico de atores está batendo um bolão. Melhor que um jogo de vôlei final de olimpíada, ou um revezamento de corrida de obstáculos, cada um deles têm seu proprio monólogo para chamar de seu, tem interação e integração com os demais colegas. Todos mudam o tom no momento exato em que o diálogo sai do presente e volta ao passado. Ângela Rebello (professora, tá viva? Tá morta? É pobre? É inconveniente? É carente? - quem poderá nos responder?), Isabel Cavalcanti (aluna que se tornou integrante do mundo corporativo), Daniel Dias da Silva (aluno que se tornou arquiteto) e Sávio Moll (aluno que se tornou segurança do mercado) estão extremamente seguros e com o texto na ponta da língua. Um bate bola entre os quatro que chega a tirar o fôlego da plateia – que não pisca, com medo de perder uma mudança, um indicio, uma pista qualquer que possa responder às inúmeras dúvidas que o texto nos propõe, embora não proponha nenhum mistério! A gente que cria expectativa por um fim tradicional. Ótimos os quatro atores, ótimos!

O pano de fundo da peça, e o que é realmente importante, são as questões profundas: abandono do filho, homoafetividade reprimida, suicídio do colega de turma, bullying, vergonha, diferenças de classes, mãe solteira, “Você está feliz?”...

Sair de uma peça de teatro se fazendo infinitas perguntas: estou feliz? O que me marcou na escola? O que fiz de errado que preciso – e posso! – confessar? Minhas escolhas foram as melhores? Quem é aquela professora pelamordedeus? Porque ela escolheu aqueles três alunos? O que os une? O que os separa? Porque só agora ela voltou? Voltou ou nunca saiu? Pra onde ela vai? Quem será o proximo a vê-la? Tá viva ou tá morta? Tire suas próprias conclusões ao assistir a “A Sala Branca” e escolha o seu caminho, seu quebra-cabeças final, através das peças dadas e pistas jogadas ao público pelo espetáculo.

Assista e saia renovado, agraciado com um belo espetáculo, saia cheio de dúvidas e colha as suas melhores respostas. É este o objetivo do espetáculo. Duvidas promovem reflexões. Reflexões promovem revelações. Revelações provocam mudanças. “A Sala Branca” nos recebe de um jeito e nos devolve para a vida cotidiana modificados. Aplausos de pé.


terça-feira, 13 de agosto de 2024

EM NOME DA MÃE


Maria, mãe de Jesus. A Santa, a mãe de Deus. Aquela que tem vários nomes na terra, milhares de igrejas. A nossa senhora. Nossa. De todos. Virgem santa. Padroeira. A bendita entre as mulheres pois gerou o filho de Deus. Isso tudo nós já sabemos. Quem não sabe a oração “Ave Maria”? Sabemos que tem mais aves-marias no terço do que pais-nossos. Isto mostra o poder da oração de Maria? Não. Isso mostra que pra cada um pai-nosso, são necessárias 10 aves-marias... Cadê o equilíbrio de forças? 

A bíblia foi escrita por homens. E ao longo do tempo, homens modificam a história, traduzindo, com releituras. Existe 5 bíblias diferentes: a judaica, a hebraica, a católica, a ortodoxa e a protestante. Todas escritas e traduzidas por homens. Onde está a voz feminina na história de religião?

Vivemos – graças a força feminina – em uma época em que as mulheres estão começando a ter seus direitos mais respeitados. São recentes – comparadas à existência humana na terra - as conquistas das mulheres, como a Lei Maria da Penha, o voto feminino, o fim da absolvição dos homens “em nome da honra”, só pra citar algumas. 

Está em cartaz – apenas 8 apresentações – no Teatro Adolpho Bloch, o monólogo “Em Nome da Mãe”. A concepção, dramaturgia e atuação de Suzana Nascimento. Com base no livro de mesmo nome, do autor Erri de Luca, a peça nos mostra o lado de Maria, a mulher, a cidadã, aquela que, ainda jovem, não casada e que, por um anjo que veio do céu, se torna grávida de uma hora pra outra. A mulher tem que enfrentar o medo de ser mãe, a desconfiança da vizinhança, o susto do parceiro, e, além disso tudo, a preocupação com a justiça, que condena a mulher sempre que o assunto é traição.

Suzana nos traz um texto bem escrito, atual, e que mistura a atriz que o interpreta, a mulher moça Maria e a mãe de Jesus pós nascimento. Destaque para a carta que lê, juntando todos os tipos de mães de todas as religiões, num mesmo texto (a carta), trazendo referências das diversas religiões que têm mulheres como seres fortes. Lindo momento da peça. Suzana nos faz ver o lado da mulher, da moça, que não pediu para ser abençoada, que não foi adultera na relação, que não sabe com cuidar de uma criança e que implora para que seu filho, ao nascer, seja apenas um homem comum, do povo.

No palco temos a direção de arte, figurino e cenografia de Desirée Bastos e Jovanna Souza, que preenchem os espaços com tecidos de voil para dar profundidade e também servir de tela para projeções, com figurinos pendurados, as diversas faces da mulher, muitos potes de barro, mesa e cadeiras que parecem ser de uma casa antiga e ao mesmo tempo de fazenda. Ótima a ideia de usar tachos de barro como a barriga de Maria que vai crescendo.

A luz de Ana Luzia Molinari de Simoni e Hugo Mercier, criam desertos, céu, cometa... sabem bem o que estão fazendo. Criam focos de luz que transformam Maria em uma santa só com a luz. Frederico Puppi é um mago na trilha sonora. 

Miwa Yanagisawa empresta seu talento para conduzir a peça usando todo o palco disponível, sendo decisiva a sua cena final em que os objetos de cena “vão sendo tirados de Maria”, assim como seu filho foi sumariamente tirado da mãe e transformado em filho de Deus. Miwa dá à cena final a importância deste espetáculo. O fato de tudo ser retirado mostra o imenso “roubo” e vazio que Maria sofreu por ser descreditada como mulher e, principalmente, como a mãe. Maria deixa de se tornar a mulher que enfrentou uma vida em nome de seu filho para ser “apenas” a barriga de aluguel do filho – homem – de Deus – homem. Destaque ainda para a direção de movimento de Denise Stutz.

Além de idealizar e escrever, Suzana Nascimento atua como Maria. Impecável trabalho de uma atriz que estudou bastante o assunto, a mulher, a história cristã, para dar vida, mesmo sem ter tido seus próprios filhos, à mãe da figura mais importante do imaginário religioso. Suzana está segura, firme, emotiva e atual neste espetáculo. Ao misturar-se como atriz e Maria, mudando em pequenos gestos de olhares e mover de cabeça, Suzana traz para o público a verdade cênica e a verdade da mulher. Defende a personagem e sua própria vida, fazendo desta peça um alerta, um relato, uma constatação de que, apensar das conquistas, ainda há muita estrada para que mulheres estejam de igual para igual com os homens. Um trabalho impecável.

“Em Nome da mãe” é de grande importância para o teatro. Falar de mulher usando a mãe de Jesus como âncora cênica faz com que todas as mulheres se sintam defendidas e homenageadas. Da evangélica à umbandista. Da católica à espírita. Todas são Marias. A peça está no limite entre a religião e a humanidade, sem ser agressiva. 

Corram para assistir “Em Nome da Mãe”, se solidarizar com Maria, abraçar Suzana e Miwa, aplaudir de pé este trabalho impecável de entrega, denuncia e respeito. Viva Maria, Viva o Teatro!