sexta-feira, 10 de outubro de 2025

DONATELLO

Alois Alzheimer, o psiquiatra que nomeou a doença que descobriu, está enterrado em Frankfurt, na Alemanha. Ele faleceu em 1915 e foi sepultado no cemitério de Westend. Eu estive lá em 2017 com Oliver Erb, amigo alemão, em um passeio – sim, alemães passeiam e se exercitam no cemitério – e mentalmente cumprimentei Alzheimer ao passar por seu jazigo.

A notícia é fresquinha: “O Alzheimer antes da memória falhar. Exames são capazes de detectar alterações biológicas que levam à doença e ajudar na prevenção. Os novos testes não detectam o Alzheimer diretamente, mas rastreiam alterações químicas associadas ao processo neurodegenerativo. (...) “O Alzheimer é responsável por 60 a 70% dos casos de demência, afetando (...) cerca de 1,5 milhão de brasileiros. Com o envelhecimento populacional, prevê-se que o número de casos triplique até 2050, tornando o diagnóstico precoce não apenas um avanço científico, mas uma necessidade de saúde pública.” (O Globo, 10/10/2025 – Receita de Médico – Ludhmila Hajjar).

Está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, quintas e sextas às 20h, o espetáculo Donatello. Vitor Rocha é o autor do texto, das letras e o ator da história sobre o momento entre o início da doença, a evolução, como ficam os familiares, e como isto impacta na vida de quem sofre com o mal e dos parentes próximos. A peça já começa falando sobre lembranças, memórias e recordações. Vitor busca apoio da plateia para palavras e nomes que marcam a vida de alguns espectadores. As lembranças vão surgindo em nós antes mesmo do inicio da história. E nos 5 primeiros minutos, eu já estava me controlando para não virar um vale de lágrimas ali mesmo, sem nem mergulhar no que viria a seguir.

O personagem principal começa como criança que sempre vai a uma sorveteria com o avô. Ambos têm no sorvete seu “alimento” favorito. E é justamente neste local de boas memórias e sabores que a doença se manifesta pela primeira vez. Ao entender a situação, dias depois, resolve ajudá-lo, não com a sua recuperação, mas não perder as suas memórias, lembranças. O que ele faz? Associa sabores de sorvete a lembranças boas. Assim, ao tomar aquele sorvete, daquele sabor, imediatamente se recordará do momento importante registrado e nominado. Memórias. 

Vemos o menino sofrer com a mudança do comportamento da família, principalmente do avô. Vemos o menino se tornar adolescente, adulto, começar a trabalhar, abrir mão dos estudos para cuidar do avô, ajudar em casa. A convivência com seu pai, que está sofrendo a mudança do pai dele (avô do menino) é tratada na peça de forma bonita e verdadeira. 

A que ponto, qual a quantidade de amor que temos e podemos doar para alguém em troca de nossa vida própria? O personagem se doa para o avô de uma forma tão humana e tão bonita que nos faz pensar o quanto ruim e desatentos somos com nossos pais, parentes, amigos, amores. 

A cada nova história vivida pelo personagem, a cada boa memória construída, um sabor de sorvete é associado a ela. 

O cenário, composto de móveis de madeira (mesa, cadeira, chapeleiro/cabideiro) é o necessário para contar aquela história. Ainda temos uma bicicleta que funciona muito para dar movimento e objetos/adereços de cena, com destaque para a mini-bicicleta que é uma lindeza! O figurino é parte integrante da história, pois o avô é representado por um casaco/capote. Sempre que o personagem pega aquele capote, sabemos que o avô está presente. Tanto o cenário quanto o figurino, não achei na ficha técnica o nome de quem assina, mas Batata Rodrigues assina a cenotécnica. Então, aplausos para você! Wagner Pinto assina uma iluminação certeira, com recortes e momentos de introspecção favoráveis ao desenrolar da história. Muito boa.

Vitor também criou as letras das músicas que completam o texto da peça. Criativas, divertidas e com um perfeito toque de espetáculos musicais, divide com Elton Towersey a ótima trilha sonora da peça, muito bem tocada por Felipe Sushi no teclado. Felipe também participa em alguns momentos da peça como elenco de apoio em perfeita sintonia com Vitor. O design de som é de Paulo Altafim.

Cabe à Victória Ariante a direção da peça. Victória cria ótimas marcas, usa todo o espaço cênico, aproveita os móveis, abusa da boa vontade do pianista! Mantém a forma doce e contida do menino ao longo de toda peça, mesmo o personagem se envelhecendo. A gente percebe que o menino ficou parado naquela sorveteria no dia do primeiro esquecimento do avô. Victória constrói o espetáculo antes do terceiro sinal e faz com que todos nós transbordemos de emoção durante e depois da peça. 

E Vitor Rocha, com sua atuação, nos apresenta e presenteia com um menino que acompanha o desenrolar da história sob os olhos do adolescente e do adulto. E isto passa para a plateia. Não sei se o objetivo era esse, ou se o mega carisma de Vitor Rocha nos faz acreditar que o menino da história é parte dele (do ator). Carisma e talento de um ator, autor e letrista que já já estará nas telas de cinema ou streaming, e ainda com espetáculos consagrados nos teatros brasileiros.

Vitor e Victória... Vitoriosos. (Trocadilho ridículo da piada de salão daquele tio do pavê...)

Donatello é um monólogo musical onde a emoção, a memória, o talento, delicadeza, afeto, descoberta e sensibilidade andam de mãos dadas. Confesso que tive que me segurar várias vezes para o choro não vazar pelos olhos. Mas por dentro, eu tava... E isto é um ótimo sinal. A peça toca, comunica, explica, envolve. Todos temos memórias e sentimos aquele medo de perde-las. O que somos sem nossas histórias, conhecimentos adquiridos, vivência, experiências guardadas? Meu segundo maior medo – altura sem proteção vence – é perder a memória. A peça usa o Alzheimer para falar sobre comportamento, conexões e como devemos usar e abusar de estar perto de quem escolhemos e nos escolheram para estar do lado.

Aplausos também para Lucas Drummond (diretor de produção) e Ana Paula Marinho (produtora executiva) que trazem esta beleza de espetáculo para o Rio de Janeiro, no ótimo Teatro Gláucio Gil. Sem sombra de dúvida, um dos melhores espetáculos que já passaram por esse palco. Emoção garantida, sentimentos renovados. Aplausos de pé. Viva o teatro!!


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