segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

FLUXORAMA
















Existe um livro de bolso chamado Senhorita Else (de Arthur Schnitzler). Entre diálogos, a personagem principal “pensa” junto com o leitor. Lemos seus pensamentos, e, assim, a história nos é contada. Me instiga muito o que se passa na cabeça das pessoas, como elas pensam. Será que são tão loucas quanto eu? Ao simples caminhar até a padaria, penso, xingo, rio, faço contas, programo o dia, lembro de cosias. Às vezes, saindo do quarto, me esqueço do que fui fazer na cozinha, de tanto que penso, no caminho. E olha que são só míseros 10 passos... Somos todos assim? Nosso cérebro, pensamentos, são parecidos?

Assisti, sexta, no Oi Futuro do Flamengo, a peça FLUXORAMA. Três monólogos de Jô Bilac, onde cada história é um fluxo de pensamentos. A primeira, uma mulher que fica surda de uma hora para outra. E agora? Como tocar sua vida? O que isso “traz de bom”? Depois, perde o olfato, o paladar... nos envolvemos com aquela mulher. No segundo, um homem sofreu um acidente e, nas ferragens, tenta se manter vivo até os primeiros socorros chegarem, pensando, refletindo, se distraindo, com pensamentos sobre a mulher amada, sua vida, sobre como está sua situação no momento. E o terceiro, enquanto corre uma maratona, uma mulher tenta se manter na corrida, com pensamentos sobre desistência, superação, sua vida atual. Fluxos de pensamentos incontrolados. Ou seria uma reação do organismo, do cérebro, para que continuemos a viver em condições precárias? Seria assim a proximidade do fim? (Do sofrimento, da comunicação, da dor, da corrida, da vida...).

Jô Bilac é inteligente pra caramba. Isso me anima muito ao ir ao teatro numa peça dele. Sei que vou ouvir um texto criativo, pesquisado, rico em palavras pouco utilizadas. Deduzo que as histórias contadas vão me surpreender a cada frase, e assim acontece. Tenho uma grande alegria toda vez que meu cérebro é exposto à prova, e Jô Bilac consegue me fazer ficar ligado no texto, para compreender as entrelinhas, entender o motivo de suas escolhas nas construções das frases. Me sinto estimulado intelectualmente quando assisto a alguma peça sua. Adoro isso!! Obrigado!

O cenário de Olivia Ferreira e Pedro Garavaglia é um achado! Cria uma “bolha” de tecido elástico (uma segunda-pele) para a surda; um emaranhado de ferros retorcidos e peças de carro onde está o acidentado; e uma pista de corrida. Tudo no pequeno teatro do Oi Futuro, com tudo já em cena desde o começo, numa harmonia de cores. Algumas projeções com frases no fundo do palco, funcionam (na minha cabeça maluca) como um eco do pensamento dos personagens. O figurino de Julia Marini e a luz de Tomás Ribas são igualmente competentes e acertados.

A concepção da peça é também inteligente: três atores-diretores. Cada um dirige um dos monólogos em que não estão atuando: Inez Viana dirige Rita Clemente em Amanda (a que se depara com a surdez). Rita Clemente dirige Vinícius Arneiro (o cara das ferragens). Vinícios Arneiro dirige Ines Viana (a moça da maratona). Todos muito bem pensados e com objetivos plenamente atingidos. Talvez a direção de Inez Viana seja a mais completa de todas, pois tem a seu favor a possibilidade de maiores movimentos da atriz em cena. Enriquece a história com gestuais e o nervosismo da personagem. Rita Clemente dirige uma história onde o personagem está nas ferragens, não tendo muito como movimentá-lo, mas consegue a atenção da plateia pela palavra. Vinícius Arneiro dirige uma personagem que corre o tempo todo, então a ação já está definida, e mesmo assim, consegue, nos fazer cansar, torcer e pensar tanto quanto a corredora. Aplausos triplos!

Os atores embarcaram no jogo. Rita Clemente, ótima como a recém-surda, interpreta uma mulher assustada, ansiosa, com medo, mas confiante; perdida, tentando não enlouquecer. Vinícius Arneiro é o recém acidentado, se apegando a tudo que for possível, do passado e do futuro, à dor do acidente, para sobreviver àquele incômodo, o não-movimento. Inês Viana corre durante todo o seu monólogo – haja fôlego! – e consegue dosar respiração com interpretação. Após a peça conversamos com os atores/diretores sobre “a prisão do movimento” e que o espetáculo dá margens a estudos, mestrados e monografia sobe fluxo de pensamento, comportamento humano e a necessidade da sobrevivência.

Sem dúvida, FLUXORAMA é um espetáculo inteligente, de bom gosto e criativo, que só poderia estar no Oi Futuro, que sempre olha para frente em seus projetos, mostrando a criatividade, a pesquisa, a competência de jovens talentos da dramaturgia carioca, aliado a profissionais com notório reconhecimento da classe artística. Gosto de me sentir desafiado a pensar sobre um determinado assunto, quando vou ao teatro. FLUXORAMA é desses espetáculos inteligentes, criativos e instigantes. Aplausos!!

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