Qualquer sala de espera, ou fila, é algo que torra paciência.
Sem um livro ou smartphone em mãos para passar o tempo, o que fazer? Eu invento
vidas para quem está ao meu redor. Pela roupa e comportamento, crio nome, dou morada,
profissão, estilo de vida, voz. E tudo olhando para a pessoa que nunca vi na
minha vida! Sou maluco?
Todos nós temos segredos guardados além de sete chaves.
Coisas que não contamos nem na terapia. Vergonha de descobrirem seu podre?
Desejo de ter algo para si que ninguém mais saiba? Dia sim, dia também alguém
joga uma bomba no facebook: gosto deste cantor brega, como macarrão com feijão,
durmo de pijama do Bob Esponja, me julguem! E, na maioria das vezes, o “eu
também!!” de vários “pecadores” se segue à confissão do corajoso. Ninguém tem a cara de pau de expor suas
melhores ou piores atitudes, sejam elas sexuais, comportamentais, seja em família ou em rodas
de amigos. Pensamentos que a sociedade recriminaria, atitudes que levariam
cristão à chibata! Todos temos. Porém, não se esqueçam: pensamento é
comportamento.
Está em cartaz no Teatro do Centro Cultural da Justiça
Federal “O Livro dos Monstros Guardados”, texto de Rafael Primot. Bebendo na
fonte dos filmes Babel, Crash, entre outros, as histórias, contadas em primeira
pessoa pelos próprios personagens, se interligam em um simples acontecimento,
seja ele a demissão de um funcionário, o atropelar de um cachorro, um bate-papo
virtual, uma vizinha de prédio. Tem louco que confessa sua sanidade para
usufruir da boa vida, tem homem de família com as maiores taras sexuais, tem
menina que aceita por conveniência viver com a mãe e a “tia” amiga da mãe, tem
o funcionário da locadora que nunca transou, o menino com problemas na bexiga
intrigado por uma velha na janela e uma atendente de Organização de Valorização
da Vida que resolve fazer justiça com as próprias mãos. Confessar, pra que?
Rafael toca em tabus sociais e dá voz a pensamentos mirabolantes,
atitudes escabrosas e reais, que a podre humanidade pensa e age em sigilo.
Podres poderes? Possíveis de serem realizadas na escuridão e no anonimato? São
realmente monstros que devem ficar guardados? O texto é ótimo, fluente,
dinâmico, criativo e engraçado. A chegada deste O Livros dos Monstros Sagrados ao
teatro é em boa hora. Se demoraram a montar, se ficou dormindo na gaveta, como
diz uma amiga, Deus Agenda Tudo. Eis a resposta!
Com toda sua sabedoria e competência de sempre, João Fonseca
empresta seus monstros guardados para a direção da peça. Valorizando a palavra,
partituras corporais, definindo com poucos objetos o cantinho de cada
personagem. Amo muito tudo isso!! Teatro como eu gosto. Rafael também assina a
direção.
Nello Marrese no cenário e figurino sempre com bom gosto e Adriana Ortiz na luz
competente, encabeçam a equipe técnica que tem ainda João e Rafael como
compiladores de trilha sonora. Tudo com o apoio dos grandes Letícia Napole e
Giba Ka na produção.
É o elenco que, além do texto, mais brilha neste espetáculo.
Rafael Primot, faz muito
bem o maluco-são (personagem criado por Daniel Pellizari no conto "O Voo das Ovelhas"). Será são mesmo? Carolina Pismel dá um show como a pequena
Magali! Aplausos de pé em cena aberta! Jefferson Schroeder, também excelente
como o maníaco por limpeza, cada vez brilhando mais em seus personagens, melhora
a cada trabalho. Leandro Daniel apresenta um homem com todas as taras sexuais
possíveis e encara de frente o desafio de falar um texto muito difícil,
sexualmente falando, sem o menor pudor ou vergonha, totalmente protegido pelo
personagem. E faz com muita qualidade e verdade. Erom Cordeiro é o atendente de
locadora, cuja monstruosidade é atropelar cachorros (personagem criado por Daniel Galera para o texto "Manual para Atropelar Cachorro"), mas, por outro lado, é um
sexualmente reprimido, o que para os psicanalistas de plantão seria uma
compensação. Erom é forte em defender o papel. Laila Zaid, engraçada por si só, vive a
atendente da empresa de valorização da vida e passa verdade em suas atitudes.
Não menos importante, Guilherme Gonzalez tem a difícil missão de viver um
garotinho com problemas na bexiga e que tem a curiosidade sobre uma senhorinha
na janela a caminho na escola. São trabalhos bastante individuais, eficientes
e, no todo, formam um elenco dos melhores.
Tenha você o seu monstro, a sua história guardada, mas não
perca este espetáculo. Um ótimo texto, atuações de qualidade, que valorizam a
nova dramaturgia brasileira, mostrando a garra que a arte de escrever e atuar precisam
para o teatro se manter vivo! Leve seus monstros ao teatro e vá assistir o mais
rápido possível a’O Livro dos Monstros Guardados às quartas e quintas, até fim
do ano, depois voltam em janeiro!!
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