“Nós somos o que fazemos”.
Termina assim o programa da peça “A Ordem Natural das Coisas”. E é assim que
começo este texto. Faço produção, escrevo, crio cenário. Sei fazer outras
coisas, mas é disso que gosto e disso que quero viver. Deixar para a sociedade
algo que possa acrescentar, modificar, as pessoas. Parte disto está ligado
diretamente ao que pensa Leonardo Netto, ator e dramaturgo, com quem tive a honra
de trabalhar em A Moratória.
Assim como ele, resisto, luto,
sigo na guerra contra o mal que nos envolve. As forças negativas que tentam
tomar conta de tudo. Fujo das picuinhas, saio pela tangente na briga. Não estou
aqui para entrar em discussão que não vai levar a nada. Eu, sim, quero levar literatura
aos quatro cantos deste país. Quero levar cultura e mostrar que só a educação
vai nos salvar. Somos um país de mal educados. Não existe a preocupação com o
coletivo, com o outro. No Brasil, como diz Lúcio, personagem da peça: “O outro.
Esta grande ameaça”. Enquanto pensarmos assim não seremos uma nação. Viveremos
numa eterna guerra civil sem líderes e sem objetivos.
Está em cartaz até domingo no
Sesc Copacabana – e torço muito para que tenham novas temporadas – o espetáculo
“A Ordem Natural das Coisas”, texto de Leonardo Netto. A peça conta a história
de um homem abandonado no altar pela noiva, que sequer vai ao casamento. Manda pelo
pai um recado. Na casa onde seria o ninho de amor, o ex-noivo recebe a visita do
ex-genro, amigo fiel. Mágoas e roupas sujas são lavadas. Porém surge uma
vizinha que mostra ao protagonista que a vida segue adiante, apesar dos
pesares. Calma. Não há o menor spoiler neste parágrafo. Isto é apenas 10
minutos de peça. O que acontece depois é de uma magia, uma verdade, uma
perfeição dramatúrgica que é impossível não ficar tocado com toda a história.
Leonardo Netto tem neste
espetáculo seu melhor trabalho de dramaturgo. Li uma crítica no jornal - que
raramente concordo -, mas desta vez, em especial, o que está escrito é o que eu
diria: na medida certa. Não há um só exagero e nenhum erro cronológico ou
dramatúrgico. Tudo está esclarecido e de acordo com o que aconteceria na
realidade nossa de cada dia. A colaboração da direção de movimento, de Márcia
Rubin, é importantíssima para a composição dos personagens e andamento da
história.
Além disso, Leonardo Netto dirige
e sabe o que quer em cada cena, como cada frase deve ser expressada pelos
atores. Ocupa o espaço – e o não espaço, o vazio do palco – com a força da sua
dramaturgia. Espalha caixas no fim, limpa a alma, lava. Excelente trabalho.
No palco, a cenografia de Elsa Romero
é um apartamento que acabou de receber uma mudança e presentes de casamento. As
paredes estão na estrutura. Não há emboço, tijolos. Apenas a estrutura vazada.
Tal qual o protagonista: alma aparente. O figurino de Maureen Miranda mostra
claramente cada momento dos personagens. A luz de Aurélio de Simone é sempre
uma aula. A trilha sonora (Leonardo Netto) e o desenho de som (Diogo Magalhães)
contam parte da história da peça através dos discos. Adorei o som que começa na
vitrola e acaba envolvendo todo o teatro.
Os atores, entregues. Beatriz
Bertu é a vizinha Cecília, uma mistura de Amelie Poulain com Clarice Falcão,
doce e objetiva. Cirillo Luna é Emiliano, o ex-cunhado e amigo fiel, que ampara
o protagonista após o pé na bunda inesperado. Cirillo tem presença forte em
cena e consegue mostrar a fragilidade dos sentimentos do seu Emiliano.
Mas é João Velho quem brilha
neste espetáculo. Por ser o protagonista e ter ao seu lado um texto
inteligente, uma direção segura, colegas talentosos e uma direção de movimento
presente, João consegue construir seu Lúcio desde seu pé, virado para dentro na
cena inicial, ao choro contido, ao “se deixar dançar com a música, apesar do
sofrimento”. João tem aqui sua melhor interpretação. (Para as crianças, seu
Bita, no teatro, é maravilhoso!) A segurança e a certeza de que o papel escrito
para ele faz com que use as palavras com sabedoria. Ele não desperdiça uma frase,
uma entrelinha, uma suspeita. João não antecipa. Seu Lúcio é pego de surpresa
pela história assim como nós, espectadores. Ele também se surpreende. Um tempo
de representação mágico! Me emocionei várias vezes com seu trabalho. Ao fim da
peça, ainda sob emoção – não pelo drama do personagem, mas pelo seu trabalho –
o abracei comovido.
A Ordem Natural das Coisas é um
dos melhores textos dramáticos novos montado nos últimos tempos. Talvez dos
últimos anos. A criatividade em tempos de crise aflora e a qualidade cênica
aparece. Só os bons sobrevivem. Encaro este momento da falta de patrocínio como
uma época da Seleção Natural do Teatro. Só vai ficar, e ser reconhecido, quem
for bom. E, nesta peça, temos aquilo que de melhor o teatro carioca pode
oferecer. Obrigado por resistirem! Contem comigo! Aplausos emocionados de pé.
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