O período que antecedeu as Olimpíadas
foi de desmatamento, derrubadas, desapropriações, tudo em nome da modificação
da paisagem urbana e da melhoria dos transportes para que turistas e espectadores
pudessem se locomover pela cidade rapidamente. O tal “legado olímpico” nos
custou caro. Caríssimo. Atualmente, temos um aquário onde moradores não frequentam,
um VLT para turistas no centro da cidade, um BRT sucateado e rodando sob
asfalto esburacado. Aliás, para este BRT famílias foram removidas de suas casas
para a passagem da via. Sacrifício de uns em benefício de outros. Valeu à pena?
Estamos satisfeitos? Logicamente que não estamos. Porém, quem embolsou polpudas
quantias desviadas ou superfaturadas está aí, às vistas, rindo da nossa cara.
Cristina Fagundes é uma atriz e
escritora, inteligente e observadora do universo que gira em torno da arte
cênica no Rio de Janeiro. É dela a ideia do Clube da Cena – coletivo de atores,
diretores e dramaturgos que colocam em cartaz esquetes uma vez por semana – que
teve vida inicial no Teatro Gláucio Gil e recentemente foi apresentado no
Teatro Ziembinsky. Infelizmente o patrocínio não veio, foi “demolido” pela
atual gestão da prefeitura e o Clube está aguardando nova oportunidade. Porém,
Cristina não se acomoda. Além do Clube escreve para teatro, promove oficinas e
reciclagem de atores. Uma guerreira e operária do teatro.
É dela o texto da peça A Vida Ao
Lado - que estreou no Teatro Serrador e agora está no Teatro Ipanema - história de moradores de um prédio a um
mês de ser demolido para a construção de um aquário municipal. É justo isto?
Retirar pessoas do seu habitat natural gera conflitos – que Cristina aborda na
peça. Tipos atuais, conservadores, modernos, reais na fauna social em que
vivemos. Cada um com seus preconceitos não só sobre a sociedade, mas sobre os
vizinhos que coabitam o mesmo prédio. O que muda na vida dessas pessoas? Qual o
destino final das relações amorosas e profissionais que envolvem os moradores?
É assistindo ao espetáculo que você irá compreender a necessidade de se
discutir como uma simples demolição gera uma reação em cadeia sobre emoções e
comportamentos.
Com o palco vazio, o cenário de Alice
Crus e Tuca Benvenutti tem canos conectados como se fosse a tubulação do prédio
passando pelas paredes. Sol Azulay assina o figurino de cores cinzas, daquelas
pessoas que só seguem suas vidas sem se preocupar em sair da zona de conforto,
mas quando chega a notícia da obrigação da mudança, ou dão um colorido às suas
vidas, ou caem no buraco negro. A luz de Aurélio de Simone é sempre adequada à
quantidade de refletores disponíveis e o que a peça solicita. A trilha sonora,
de Isadora Madella contribui para o crescimento dos diversos clímax (ou
clímaces).
O elenco é formado por Alexandre
Barros, que tem ótimas atuações em variados personagens; Alexandre Varella, que
muda de composição de uma criança para um ogro em minutos com grande qualidade
representativa; Ana Paula Novellino, a solitária que busca num aplicativo de
celular uma nova relação; Bia Guedes, ótima, alternando entre uma empregada
doméstica e uma mulher que tem um casamento por contrato; Cristina Fagundes
mostrando a força da esposa casada conservadora mas que anseia pela liberdade
sexual; Flávia Espirito Santo, a dona flor entre dois maridos que se vê
preterida quando o assunto é ter ou não filhos; e, não menos importante,
Marcello Gonçalves ótimo como o porteiro do prédio e o menino refugiado.
Cristina Fagundes também assina a
direção e sabe o que quer dizer com este espetáculo. Além de mostrar que “a
vida não basta” e por isto a arte é necessária (mudando um pouco as palavras de
Ferreira Gullar), nos faz pensar e mostra, pela forma como conduz o espetáculo,
que somos todos parte de uma engrenagem única: o que acontece com um gera
alterações nos outros próximos. Sua marca para o caminhar no palco como nos
corredores do prédio e, em especial a cena da madame deitada no chão que, ao se
virar, se torna a doméstica limpando, é bastante inteligente. Além disso, Cristina
não valoriza as pequenas doses de preconceitos velados nas falas dos
personagens, as maldades, e nisso ela ganha pontos, deixando que parte do
público perceba a crueldade de uma piada.
Resistir é preciso! Cristina
Fagundes mostra isto quando joga nas 11 posições (escreve, dirige, atua e
produz). Um espetáculo de altíssimo nível. Bem dirigido, bem escrito, atuações
competentes, tudo com pouquíssima verba e mostrando que é possível – e necessário
– fazer teatro neste período de demolição da classe artística. Vida longa para “A
Vida ao lado”!
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