segunda-feira, 7 de junho de 2021

A HORA DA ESTRELA

A cada entrada em um teatro é uma celebração de alegria e reza. Já disse e repito: teatro é a minha religião. Onde me alimento da energia superior. Sempre, seja na plateia ou nos bastidores, que estou em um teatro, sinto a energia grudar em mim. Quando estou trabalhando em um teatro, sinto que minha alegria vai até o público. Seja na bilheteria, operando um som, arrumando roupas no camarim, entregando um objeto ao ator que sai de cena e volta rapidamente, gargalhando na última fila, puxando os aplausos finais.

Desde março de 2020, minhas idas ao Templo Teatro têm sido raras. Imagino como se sente uma beata, uma obreira, um fiel, um umbandista, um espírita sem poder aglomerar e trocar energias. Digo isto para os que, obviamente, se importam com o isolamento social. Quem aglomera não está entre meus leitores. 

Em setembro de 2020, Laila Garin me fez ir até o teatro para assisti-la cantar. Foi um reencontro. Agora, novamente Laila me faz reencontrar com o teatro adulto. O musical, o nacional, o brasileiro, o templo, a religião. Sou fã, seguidor, plateia garantida.

Está em cartaz, e on-line, A Hora da Estrela, ou O Canto de Macabea, musical em homenagem ao centenário de Clarice Lispector, autora do livro que se empresta para contar esta história. A ligação do teatro com a literatura é imensa. Assim também acontece com as óperas. “O que diz Molero”, “O Púcaro Búlgaro”, “Amor Confesso” são as que me chegam agora na memória de grandes peças baseadas em livros.

A história, no livro narrada por um escritor, agora é contada por uma atriz. Esta troca só melhora o que Clarice já havia dito em palavras. Macabea é nordestina, a atriz que narra e a interpreta, também. Baiana, Laila Garin, se doa por completo ao personagem. Voz, brilho nos olhos, corpo, tudo está à disposição da história. Nem a máscara consegue ofuscar sua luz. Os olhos de Laila falam. As mãos, os pés, os ombros, tudo é Macabea.

A personagem chega ao Rio. Mora em vagas pequenas, muito bem apresentadas pelo cenário de André Cortez, que constrói com mesas um cortiço, com roldanas presas em mesas faz o link com o primeiro emprego de Macabea. O figurino de Kika Lopes nos traz o nude, o terra, o mais pastel possível, que “orna” com as mesas, com o árido nordestino, mas sem tirar a leveza e a pureza da protagonista. A luz de Renato Machado é sempre um espetáculo. Intensa, forte, marcante.

Macabea tem um namoro com Olímpico de Jesus, interpretado por Claudio Gabriel. Ótimo cantor e ator, conseguimos entender as aspirações sociais do homem que não vê em Macabea um futuro.

Cheia de questões e conflitos existenciais, Macabea se aconselha com Glória e vai até uma cartomante. Os dois personagens são criação de Cláudia Ventura, que sempre, sempre, sempre é uma alegria quando aparece em cena. Afinada, carismática, Cláudia constrói personagens que se contrapõem a Macabea. Tanto Gloria quanto a cartomante são mulheres fortes, o que mostra ainda mais a fragilidade a protagonista. 

Na cartomante, a esperança de um futuro melhor faz Macabea ficar “grávida de futuro”. Feliz com as possibilidades lidas durante a consulta. Iludida, pobrezinha. Mas esperançosa.

André Paes Leme conduz o espetáculo com imensa competência, segurança e criatividade. Explora texto, corpo e voz dos atores. Casa música de qualidade, com texto primoroso e atuações impecáveis. Não tem como ser diferente de “perfeito”. Destaque para a cena do cortiço, onde Macabea dorme em uma vaga, onde os atores participam de um verdadeiro cross-fit se embrenhando pelas pernas das mesas e amontoando umas sobre as outras, nos mostrando a claustrofobia e o micro-espaço em que vivem. Gênio.

E é Chico Cesar quem traz as músicas criadas exclusivamente para a adaptação e a homenagem com a ótima direção musical e arranjos de Marcelo Caldi. Lindas as músicas. Certamente vale todo registro só com elas para ser vendido, postado, divulgadoMúsicas que tocam o espectador, completam a cena, transmitem mais que palavras. A música da peça é um elemento que abraça o todo. Fabio Luna, Pedro Franco, Pedro Aune e Marcelo Caldi são os músicos de cena. 

Não sei se estava há tempos sem assistir musical para adultos, mas o reencontro com o teatro foi marcante e abençoado. Renovei as energias, recuperei as forças de tantas perdas de pessoas queridas, artistas que nos deixaram. 

Andréia Alves, idealizadora e produtora, sempre nos traz o melhor da cultura brasileira com a Sarau. É sempre um prazer estar na plateia das suas produções.

Que todos os amantes da literatura, da boa música, dos musicais, do teatro possam assistir a O Canto de Macabea, A Hora da Estrela, que sofreu com a pandemia um hiato, mas a sua retomada só mostra a força da mulher brasileira, a garra dos atores, técnicos e músicos, a competência das equipes e a certeza de que precisamos, cada vez mais, deste tipo de arte e cultura. Aplausos de pé.



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