domingo, 16 de abril de 2023

O QUE SOBROU



Embora tenha nascido durante a ditadura militar (1972), não tenho nenhuma lembrança deste período sobre como era a vida de opressão e medo. Não tínhamos contato com histórias de pessoas desaparecidas ou torturadas. Se havia algo perto, fui poupado quando criança. 

Estudei em escola pública e migrei para a particular em seguida para completar a instrução e me preparar para o vestibular. Só quando faltavam 5 anos para a prova é que aprendemos história do Brasil recente. Isto já era pós 1985, fim da ditadura. Lembro das Diretas-Já, de Tancredo X Maluf. Da comemoração com a vitória e a tristeza pela morte do civil eleito, mas que a diverticulite não deixou subir a rampa. Minha memória política vem de Sarney pra cá. Graças aos livros, às conversas, entrevistas, peças de teatro, seriados, novelas, minisséries conheci e aprendi que devemos sempre lutar para a ditadura nunca mais se instale em nosso país.

Está em cartaz no Teatro Gláucio Gil a peça “O que sobrou”. Com texto de Pedro Henrique Lopes, a peça é inspirada no livro “Os Fornos Quentes”, de Reinaldo Guarany Simões. Sabe quando alguém nos conta uma história, a gente guarda e depois procura representar o acontecido, do nosso jeito? É assim que o espetáculo me tocou. Com base nas referências de toda a equipe, que nasceu após 1985, a peça segue a visão dos jovens sobre o passado sangrento e agressivo que o país viveu. Pedro Henrique reconstrói a vida de 3 personagens durante o regime militar e nos mostra “o que sobrou” daquele sofrimento, tortura, perseguição: medo, sequelas, morte, angustia eterna. A dramaturgia está muito sólida, rápida e certeira.

No palco vazio, pois muitas vezes é um imenso vazio “que sobrou”, o diretor assina a cenografia. Uma cortina ao fundo serve de base para projeções e outra, de plástico, “encobre” dores, sufoca palavras, oprime. O figurino de Carol Burgo é bonito e adequado para a época tanto dos anos 80 quanto atual. Lúcio Bragança “alumia” a peça com competência. Faz da luz cenários, usa sombras, marca lugares, colore, oprime. Ótimo trabalho. Rodrigo Salvadoretti nos oferece uma trilha sonora que se encaixa como uma luva na história, com Caymmi, Milton Nascimento, João Bosco e Gonzaguinha. Sem falar na certeira sonorização do teatro, incomodativa pela altura do volume, que leva a plateia a ter uma peque sensação de desconforto e dor, tal qual os presos sofriam nos porões dos quartéis.

O ótimo elenco composto por Julia Gorman, Rodrigo Salvadoretti e Pedro Henrique Lopes, sabe bem o tom de cada personagem. Todos interpretam vários, para contar as 3 histórias, e sabemos muito bem quando um personagem muda para o outro. A entrega, a verdade cênica e a garra do trio estão presente, vemos isso da plateia, e também o carinho e a união entre eles é bem marcante. Um trabalho que podem e devem se orgulhar.

Diego Morais assina a direção, dando ordem e progresso ao texto. Alternando as histórias de acordo com o texto, e números musicais, Diego por vezes tortura a plateia, nos faz de cumplices, expõe o melhor e o pior do ser humano em cena. Diego cuida do elenco, fornece ferramentas para que eles vivam os personagens e consigam sobreviver depois de tudo aquilo que é dito e encenado. O palco é todo utilizado, bem como as cadeiras laterais, a plateia, tudo com harmonia. Nada é gratuito ali.

“O que sobrou” é um espetáculo-memória sem se ter vivido. É um relato-cênico sem se ter sofrido. É um registro cênico e documental. Destaque para os depoimentos dos torturados, fortes e tristes. O debate sobre “Que heranças a sociedade brasileira carrega da ditadura militar? Por que os livros didáticos nos ensinam tão pouco sobre esse violento período da história recente do país?”, está presente e necessário neste espetáculo.

Temos um país em que metade dos eleitores optou, na ultima eleição, pelo candidato que valoriza a tortura, a repressão, a ditadura, o militarismo. Como essas pessoas podem escolher alguém que é conta a vida? Que tem a negatividade e o mal estampados no discurso de ódio? São espetáculos como este que podem ajudar a mudar esta realidade, trazer luz para a escuridão e negação que essas pessoas vivem. 

Vida longa a “O que sobrou”; que as pessoas possam assistir, aprender e entender que ditadura nunca mais em nosso país. Que os responsáveis pelo extermínio Yanomami, da população pelo incentivo de remédios ineficazes contra a Covid-19, os assassinos da cultura nacional paguem com justiça pelos malfeitos ao Brasil. Sem anistia. Aplauso de pé.


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