domingo, 9 de abril de 2023

SÓ LUPCÍNIO

A vida se encarrega de juntar pessoas “do nada” por causa de um objetivo maior. Já vimos isto acontecer com escritores que nunca se viram, mas um dia passam a trabalhar juntos. Sabemos de investigadores de crimes que têm vidas paralelas, mas de uma hora para outra se unem em um caso e dai surge uma parceria gigante. Deduzo que o que liga as pessoas, em qualquer área da vida, seja a admiração. O fato de se admirar alguém já é suficiente para querer estar ao lado delas. Já já voltarei a este assunto.

Assisti no Teatro Vanucci a montagem do espetáculo “Só Lupcinio”, um devaneio, um momento de reflexão por meio de algum psicotrópico, ou uma febre, algo que faz aquele momento entre o estar acordado e o sonho. Sabe quando chegamos bêbado de uma festa mas a festa continua na nossa cabeça? Mesmo deitado, mesmo no banho, mesmo na sala? Pois foi esta a sensação que tive. Um homem em devaneios sobre sua vida, sobre sua obra, seus amores e canções.

Cazé Neto assina o texto, contando em lapsos de lucidez e memória, parte da trajetória, romances e dores de amor do gigantesco compositor Lupcínio Rodrigues – artista preto, periférico, gaúcho e boêmio. Cazé mistura em pensamentos febris as amadas Iná e Selenita, o time Grêmio, a Gruta da Carioquinha, ou seja, os amores de Lupcínio.

No palco temos o cenário de Cachalote Matos, um quarto simulado pelas linhas da parede e da janela, onde atrás se posicionam os músicos. Além de um armário, peça chave, que guarda memórias, roupas, histórias, relicários mentais. No figurino, Ricardo Rocha traz a elegância do terno claro e as roupas femininas que viram personagens. Tudo iluminado por Pedro Carneiro. A direção musical é de Patrick D’angello, que também toca violão em cena acompanhado dos músicos Edgar Araújo e Abel Luís. Rossine Maltone assina o design de som, Wladmir Pinheiro a preparação vocal do ator e Ernane Pinho o visagismo.

Márcio Vieira é o diretor da peça. Sua encenação dá luz e vida a Lupcínio. Além do ótimo trabalho com o ator, na composição de gestos, vozes e comportamento cênico, Márcio usa o palco e a plateia a favor do espetáculo, coloca Iná nas alturas, inalcançável. Duas cenas são lindas: Lupicínio dançando com vestidos de mulheres, que tomam vida e viram personagens, e quando ele reescreve e escreve “Nervos de Aço”, rabiscando, jogando fora, recuperando. Os papéis brancos e vermelhos – a paz e a paixão – enriquecem a cena quando voam.

Soma-se tudo isto ao imenso talento, voz, dedicação, competência e presença de Milton Filho. Conheço Milton há pouco mais de um ano e já pude vê-lo em cena, na televisão e também assistir ao seu trabalho como diretor de teatro. É aqui que me ligo ao primeiro parágrafo deste texto. A vida nos pregou uma peça. Fomos colocados juntos em um trabalho que nos causou dores e aprendizado. Milton me transformou em uma pessoa melhor. Eu cheguei como um produtor experiente, mas ele veio como um ser humano experiente e me modificou. Mostrou meus defeitos. Eu entendi e melhorei (e me esforço a partir de então para sempre melhorar mais). Aí, o que já era admiração, aumentou e virou pra lá de respeito. 

Pois Milton Filho nos dá um Lupcínio dos detalhes. Da entonação da voz, dos gestos, da composição, dos olhares, do sotaque. Em cena, Lupcínio é devaneio puro e Milton aceita o desafio, melhora o papel, aceita a marca do diretor, propõe caminho. O palco e os olhares são todos dele. Além dos números musicais cheios de intensidade e entrega.

Romulo Rodrigues, sempre atento aos movimentos culturais da cidade, é o diretor de produção e todo o trabalho tem uma qualidade impecável. 

Senti falta de outras músicas, mas... é um devaneio! É aquele momento em que o sonho se mostra tal qual uma realidade, é o espaço-tempo entre o real e o imaginário. É aquela música que fica rolando na cabeça o dia todo e não sai por nada... Assim é “Só Lupicínio”. Só ele. A cabeça dele. E com isto temos um espetáculo de qualidade e que merece ser visto. Viva Lupicínio, viva o teatro!



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