Sou míope desde que me entendo por feto. Tive momentos de grande alegria, quando usei óculos pela primeira vez, fundos de garrafa, e vi as flores da blusa azul da minha mãe. Fui sacaneado pelos coleguinhas de turma devido ao acessório e nem por isso me intimidei. Tirei partido. Virei atração e gostei de sê-la. O menino quatro olho. Quando me alistei, durante o exame médico havia o exame de vista. O marinheiro (sim, me alistei na marinha) solicitou “leia ali”. Eu perguntei “ali, onde?”. Um gigantesco cartaz na parede com letras que variavam do 'E' ao “não faço a menor idéia” implorava para ser lido e eu nem percebi sua existência. Fui incluído nos “dispensados” graças a minha miopia cavalar. Até hoje tiro proveito dela. Obrigado, Santa Luzia!
Em “A Vingança do Espelho” temos algo similar. Zezé Macedo, linda por dentro, mas cuja beleza exterior era negada por muitos, sofreu o pão que o diabo amassou antes de ser atriz. E depois que descobriu que sua fama viria atraves da sua não-beleza, teve uma vida feliz e quase completa. O texto de Flávio Marinho é ágil, seguro e econômico o suficiente para nos contar a história necessária desta grande atriz brasileira. Tendo por base um ensaio de uma peça de teatro, o publico fica sabendo exatamente como funciona aquele universo de invejas, inseguranças, convencimento, preparação e conclusão do processo teatral.
A direção de Hamir Haddad é precisa. Uma das melhores da atualidade. Abolindo a quarta parede, traz o espetáculo para a platéia, transformando o publico em cúmplice, deixando os atores a vontade para entrarem na proposta, sem constrangimentos nem criticas aos personagens que estão interpretando. Parece que tudo está caminhando para um lado do “à vontade”, mas não. Tudo é bem intencionado, tudo tem um motivo.
Gosto muito da forma como os atores brincam com o figurino, como conduzem o grande espelho no palco, como foram incluídas as poesias de Zezé Macedo no texto da peça. As cenas de amor, da morte, do desespero, dos filmes da Atlântida, estão lindas. Com o tamanho necessário, intrepretações claras e certeiras. Nada é além. Tudo no tempo e no tamanho que o texto, o espetáculo e a homenageada pedem.
Pontos altos para a iluminação (Paulo Denizot), trilha sonora (Alessandro Perssan) e figurino (Fernanda Fabrizzi) no espetáculo. A direção de arte (Afonso Tostes) opta por uma caixa cênica totalmente desnuda, à mostra, com as varandas e coxias livres para o publico. Isto ilustra, inclui e facilita ao publico acreditar que aquilo que assistimos é realmente um ensaio.
Estrelando a peça, e interpretando Zezé Macedo, Beth Gofman mais uma vez esbanja talento. Da voz aos gestos, do drama à comédia, tudo que é feito pela atriz é de uma qualidade impecável. Ao longo do espetáculo me emocionei varias vezes com a atuação segura, real e dedicada.
O competente elenco é composto por Marta Paret, que interpreta com segurança a pseudo loura burra, atriz de TV e chamariz da mídia; Antônio Fragoso nos papeis masculinos importantes na vida afetiva de Zezé Macedo, Mouhamed Harfouch ótimo como o diretor do ensaio a que se propõe a peça e Tadeu Melo, competente ator, dando vida a Oscarito e outros personagens importantes na trama.
Uma frase do texto da peça: “Teatro é a arte do ‘vamos combinar’”. Os atores combinam com a platéia que o espetáculo é a vida real e a platéia combina com os atores que vão acreditar naquela história. É isso aí. Combinadíssimo. Um espetáculo sensível, uma linda, merecida e justa homenagem à Zezé Macedo. Recomendo.
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