sábado, 22 de outubro de 2016

NEFELIBATO

De médico e louco todos nós temos um pouco. Não é à toa que me identifico com a frase. Tenho sempre uma receita caseira para uma enfermidade, aprendida e repassada por amigos e parentes, ou mergulho numa boa lista dos 10 melhores remedinhos inseparáveis. Como louco, por morar sozinho, minhas manias estão tomando cada vez mais vulto e tamanho. Na rua, minha loucura é inventar história para personagens do dia a dia. Qualquer fila sempre me é um brainstorming de histórias e personagens.

Nefelibato está em cartaz no porão da casa de cultura Laura Alvim, sala Rogério Cardoso, espaço que vi espetáculos inesquecíveis. A peça conta a história de um mendigo (Louco? Esquecido? Órfão?) que busca nas suas memórias uma fonte de vida para não desaparecer do mapa. Um homem à margem da vida que chamamos “comum”. Regiana Antonini, autora de textos que retratam muito bem o cotidiano, nos apresenta um personagem real, possível, qualquer morador de rua da nossa cidade, que chegou a aquele ponto da vida sem ter mais nenhuma esperança ou caminho a seguir.

Regiana nos conta, no programa, que seguiu, durante um dia, um morador de rua, que ela conhecia de vista, e que ali havia um personagem, uma história ser escrita. Soma-se a isto a perda de um parente após o confisco das contas e poupanças pelo Plano Collor nos idos anos 90. A tia perdeu todas as economias e morreu de desgosto. Regiana mistura as duas histórias na vida deste personagem que acaba por viver no mundo da lua, (Nefelibata – aquele que vive no mundo da lua).

Esta é a vida de Anderson, personagem interpretado por Luiz Machado. Com verdade em sentimentos e comportamentos, Luiz cria um morador de rua bem humorado, angustiado, confuso de ideias, apegado ao seu cantinho, culto até onde a vida lhe permitiu caminhar. Quantos relatos ouvimos sobre mendigos que leem? Anderson também lê e despista a solidão com os livros.

A  cenografia e figurino de Teca Fichinski são interessantes e criam no pequeno espaço no recém reformado teatro, um canto repleto de informações e histórias, tanto nos objetos de cena, quanto na roupa. A luz de Vilmar Olos contribui na passagem de tempo, momentos de angústia e calma do personagem.

Fernando Philbert dirige o espetáculo sabendo da limitação física do espaço e fazendo disto a sua melhor arma. Não ignora a presença do publico ali, na cara do gol. Pelo contrário. Faz com que pareçamos uma rodinha de pessoas em volta da atração daquela rua imaginária, sejamos cúmplices de uma fotografia do dia da vida do personagem Anderson. Se pudesse comparar com nossa vida cibernética, Fernando Philbert faz um “Instragram Histórias“ (Snap-Insta) de momentos da vida de Anderson. Um trabalho de qualidade com supervisão do craque Amir Haddad, expert no quesito teatro de rua.


Lembrando o premiado espetáculo Estamira, cujo tema também é a solidão da loucura, Nefelibato reinaugura o espaço Rogério Cardoso trazendo um texto reflexivo, atuação competente e uma história que nos comove. Até que ponto temos a nossa loucura controlada? Qual o limite para não abandonarmos tudo e vivermos nas ruas mendigando e livres das obrigações sociais? Não perca a chance de assistir a um espetáculo que deixa margem a uma boa conversa depois.

Um comentário:

Carlos Maurício Ardissone disse...

Texto belo e complexo, direção firme e competente e atuação comovente, visceral e de total entrega de Luiz Machado. Um daqueles lúdicos momentos em que cada um das partes de uma montagem teatral se encaixa harmoniosamente às outras. Uma proposta artística que, justamente por sua singeleza, se torna especialmente elevada.