De médico e louco todos nós temos um pouco. Não é à toa que
me identifico com a frase. Tenho sempre uma receita caseira para uma
enfermidade, aprendida e repassada por amigos e parentes, ou mergulho numa boa
lista dos 10 melhores remedinhos inseparáveis. Como louco, por morar sozinho, minhas
manias estão tomando cada vez mais vulto e tamanho. Na rua, minha loucura é
inventar história para personagens do dia a dia. Qualquer fila sempre me é um
brainstorming de histórias e personagens.
Nefelibato está em cartaz no porão da casa de cultura Laura
Alvim, sala Rogério Cardoso, espaço que vi espetáculos inesquecíveis. A peça conta
a história de um mendigo (Louco? Esquecido? Órfão?) que busca nas suas memórias
uma fonte de vida para não desaparecer do mapa. Um homem à margem da vida que
chamamos “comum”. Regiana Antonini, autora de textos que retratam muito bem o
cotidiano, nos apresenta um personagem real, possível, qualquer morador de rua
da nossa cidade, que chegou a aquele ponto da vida sem ter mais nenhuma
esperança ou caminho a seguir.
Regiana nos conta, no programa, que seguiu, durante um dia,
um morador de rua, que ela conhecia de vista, e que ali havia um personagem,
uma história ser escrita. Soma-se a isto a perda de um parente após o confisco
das contas e poupanças pelo Plano Collor nos idos anos 90. A tia perdeu todas
as economias e morreu de desgosto. Regiana mistura as duas histórias na vida
deste personagem que acaba por viver no mundo da lua, (Nefelibata – aquele que
vive no mundo da lua).
Esta é a vida de Anderson, personagem interpretado por Luiz
Machado. Com verdade em sentimentos e comportamentos, Luiz cria um morador de rua
bem humorado, angustiado, confuso de ideias, apegado ao seu cantinho, culto até
onde a vida lhe permitiu caminhar. Quantos relatos ouvimos sobre mendigos que
leem? Anderson também lê e despista a solidão com os livros.
A cenografia e
figurino de Teca Fichinski são interessantes e criam no pequeno espaço no recém
reformado teatro, um canto repleto de informações e histórias, tanto nos
objetos de cena, quanto na roupa. A luz de Vilmar Olos contribui na passagem de
tempo, momentos de angústia e calma do personagem.
Fernando Philbert dirige o espetáculo sabendo da limitação
física do espaço e fazendo disto a sua melhor arma. Não ignora a presença do
publico ali, na cara do gol. Pelo contrário. Faz com que pareçamos uma rodinha
de pessoas em volta da atração daquela rua imaginária, sejamos cúmplices de uma
fotografia do dia da vida do personagem Anderson. Se pudesse comparar com nossa
vida cibernética, Fernando Philbert faz um “Instragram Histórias“ (Snap-Insta)
de momentos da vida de Anderson. Um trabalho de qualidade com supervisão do
craque Amir Haddad, expert no quesito teatro de rua.
Lembrando o premiado espetáculo Estamira, cujo tema também é
a solidão da loucura, Nefelibato reinaugura o espaço Rogério Cardoso trazendo
um texto reflexivo, atuação competente e uma história que nos comove. Até que
ponto temos a nossa loucura controlada? Qual o limite para não abandonarmos
tudo e vivermos nas ruas mendigando e livres das obrigações sociais? Não perca
a chance de assistir a um espetáculo que deixa margem a uma boa conversa
depois.
Um comentário:
Texto belo e complexo, direção firme e competente e atuação comovente, visceral e de total entrega de Luiz Machado. Um daqueles lúdicos momentos em que cada um das partes de uma montagem teatral se encaixa harmoniosamente às outras. Uma proposta artística que, justamente por sua singeleza, se torna especialmente elevada.
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