segunda-feira, 5 de junho de 2023

DOM QUIXOTE DE LUGAR NENHUM

Às vezes chega aquele trânsito astrológico que diz assim “este é um trânsito de ilusão. Você vai enxergar tudo pelo lado positivo”... e aí você acredita que todos os seus projetos serão patrocinados, que o vazamento no seu banheiro vai parar com um band-aid, ou que aquele pé na bunda do passado vai voltar “arrependido, me pedindo pra ficar...” Tudo ilusão. Ou será a crença em sonhos?

Algumas pessoas também vivem em mundos paralelos. Realidades totalmente diferentes da nossa. Uns rezam para pneus, outros colocam celulares na cabeça chamando ETs. Pessoas acreditam em mitos, salvadores da pátria, caçadores de marajá... Sabemos que a mídia – seja ela a tradicional ou a social – é a grande responsável por esta construção de narrativas e realidade paralela, mas cabe mesmo ao crente – aquele que crê – a culpa por acreditar, sonhar, se iludir sobre os rumos que a vida toma. Posto isto... 

Estreou no Teatro Casa Grande o musical “Dom Quixote de Lugar Nenhum”. Escrito pelo multi artista Ruy Guerra – cineasta, dramaturgo, diretor, poeta, letrista de canções, o espetáculo é uma adaptação de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, porém trocando a realidade espanhola pela nordestina. O texto é uma beleza poética. Adaptação que se encaixa no universo de cordel. As referências ao original estão presentes: a musa Dulcineia e os moinhos de vento, além das batalhas imaginárias do personagem principal. Dom Quixote é rebatizado de Queixada, Sancho Pança assume ares de diabo, e um coro de trupe teatral interpreta vários personagens e narra a história. Ótima a “prosódia” do espetáculo. Temos um nordeste muito bem construído nas letras musicais e nos textos falados.

Soma-se a isto, a grande contribuição de Zeca Baleiro, nas músicas e letras, com total controle de ritmos e referências. A direção musical é assinada por Lui Coimbra que tem um trabalho belíssimo para que os atores toquem, cada um, seu instrumentos em cena, enriquecendo o espetáculo.

O palco recebe um belíssimo cenário, assinado por João Uchôa, com uma grande passarela em curva, uma lua-sol imensos no fundo, lampadinhas, bandeirinhas de São João e dois belíssimos adereços de madeira simulando carros de boi e máquina de aragem de solo (será que eu que viajei na interpretação?). Jorge Farjalla, também diretor, é o figurinista da montagem. Riquíssimos em detalhes e referências, Farjalla não economiza na beleza do visual dos atores. Lindo, lindo, lindo. Iluminando o conjunto, Samuel Betz e Eduardo Dantas assinam o desenho de luz. 

No elenco, temos Lucas Leto (ótimo e encantador como Dom Queixada), Danilo Moura (seguro e entregue em seu Sancho), Dani Fontan (linda e marcante em sua Dulcineia). Temos ainda Jana Figarella, André Rosa, Daniel Carneiro, Du Machado (excelente como o cavalo de Dom Quixote), Paloma Ronai e Caio Menck que desempenham outros papéis. 

Me permitam destacar o fantástico trabalho de Cláudia Ohana no papel de “um inquieto diabo”. Sua dicção, prosódia, presença cênica, atrai todos os olhares da plateia. Temos um imenso bifão (monólogo na linguagem teatral) do diabo que beira os 5 minutos. Um trabalho de atriz que merece todos os aplausos e prêmios.

Já disse uma vez e repito: a cena teatral brasileira tem um nome importante em crescimento e inovação. Jorge Farjalla. Seu olhar para o teatro é moderno e namora com um somatório de assuntos do dia a dia, aproximando o público de todos os trabalhos que assina. Seja uma comédia tradicional, um drama de amor, um musical brasileiro ou um show de música. Farjalla é diferenciado, atual, criativo, elegante. Seus trabalhos são ricos em beleza cênica, em referências boas do passado. Ele consegue dirigir um musical misturando teatro grego, ópera bufa, ópera clássica, Broadway, arte nordestina e realismo fantástico. Assistir a um trabalho assinado por ele é sair do teatro modificado. Ele te ensina a ser bom, a ter visão ampla, a compartilhar conhecimento. Aqui, nesta peça, temos isto tudo. O uso de todo o palco, a interação com o público, os números musicais, tudo é pensado para ser um espetáculo inesquecível. Altíssimo nível e qualidade são a sua marca.

A idealização do projeto é da ex-aluna de Ruy Guerra, a fotógrafa Simone Kontraluz. O momento é extremamente oportuno pois comemora-se os 90 anos de seu mestre. Não poderia ter tido melhor presente.

Farjalla nos faz uma provocação: "'E aí, você continua acreditando no sonho mesmo quando tudo parece ser do contra?' Você é ou não é um sonhador?' Esses são questionamentos que estão dentro de todos nós". E eu respondo por mim: sempre acredito. O que seríamos sem os sonhos? Sem a projeção de um futuro melhor? O que nos mantém no prumo da vida é sempre a esperança da melhora. O sonho do futuro perfeito.

Assim como no original, esta peça aborda temas como a loucura, a identidade, o poder da imaginação e a busca pela verdade. Através de uma narrativa rica em humor, diálogos cativantes e personagens memoráveis, o espetáculo oferece uma reflexão profunda sobre a natureza humana e os limites entre a realidade e a fantasia.

Recorro a uma frase do texto para encerrar este longo relato de como o espetáculo me modificou: “Não te esqueças nunca, ó incrédulo, que a esperança é feita de infinitas esperas, de efêmeras conquistas, de vitórias adiadas”. É ou não é pra aplaudir de pé com gritos de bravo? Corra já pro Teatro Casa Grande para sonhar junto com este Dom Queixada. Viva o Teatro, Viva Ruy Guerra, Viva o Nordeste brasileiro. Viva a arte brasileira!

Nenhum comentário: