Já é lugar comum falar da atualidade de textos de Martins
Pena e Nelson Rodrigues. Nada muda, impressionante.
Temos em “O Beijo no Asfalto” o poder da mídia influenciando
a sociedade. Sou sempre a favor da liberdade de expressão, deixo claro de
imediato. Nesta época em que se diz por aí “mídia golpista” como jargão da
turma que defende o governo – se é mesmo golpe da mídia não importa, mas em se
tratando de influenciar as massas, nossa mídia é craque – este espetáculo não
poderia ser mais oportuno.
No filme “A montanha dos sete abutres”, um jornalista
posterga o resgate de uma pessoa, que levaria míseras horas, para 6 (seis!)
dias, pois o assunto rende matéria e dinheiro. Em Harry Potter, a caluniosa Rita
Skeeter sacaneou o quanto pode Alvo Dumbledore e o nosso herói Harry. E quantas
outras histórias ouvimos por aí... um colégio que fechou por causa de uma
reportagem do Jornal Nacional, um conhecido que foi perseguido depois de seu
nome ser veiculado na Linha Direta... Denegrir a imagem, gerar controvérsias,
causar comoção, é moleza para a mídia, seja ela golpista ou reveladora. Temos
que ter cuidado, nesta época de redes sociais, sobre o que se compartilha como
verdade. Procure saber, já diz a turma dos direitos autorais.
João Fonseca sugeriu brincando, mas Cláudio Lins levou a
sério: um musical numa peça de Nelson Rodrigues. Partiu para compor as músicas
e nos apresenta, no Teatro Sesc Ginástico (até fim de outubro), e depois no
Teatro das Artes (em novembro), o espetáculo “O Beijo no Asfalto – o musical”.
Na peça, escrita em apenas 21 dias por Nelson, um homem dá um beijo na boca de
um moribundo. Um beijo simples, ingênuo, uma boa ação apenas. Porém... a tal
mídia resolve transformar o acontecido em manchete e transforma a vida, gera
revelações familiares, muda a história de Arandir, o beijoqueiro. É cunhada se
oferecendo, é esposa desconfiada, é sogro agressivo, é colega de trabalho
tirando sarro... Arandir sofre o diabo por causa de sua atitude singular.
O espetáculo, texto de Nelson, é apresentado na íntegra, com
a inserção das músicas compostas por Cláudio Lins. São números musicais ilustrativos
que acrescentam à história pensamentos, reflexões e atitudes de alguns
personagens diante do absurdo causado pela publicação. Cláudio tem berço e DNA
para escrever belas canções, temas que são recorrentes durante a peça, e que
são interpretados por cantores-atores da melhor qualidade em nosso quadro de
artistas.
O cenário do Nello Marrese é composto de telas de arame, formando
paredes e portas, servindo para pregar jornais, chapéus, roupas. As
movimentações de algumas telas pelo palco proporcionam a divisão de ambientes,
favoráveis para se contar a história. O figurino de Cláudio Tovar é sempre bonito
e caracteriza a época. Luiz Paulo Neném ilumina a história separando o momento de
texto dos números musicais. Com a trilha original, Délia Fischer assina a
direção musical, variando ritmos, de samba a tango, de rap a funk, amparada por
5 músicos.
O próprio Cláudio Lins atua com Arandir, o rapaz que beija.
Cláudio compõe um frágil homem atônito pelo rumo de seu gesto de compaixão.
Laila Garin é Selminha, a esposa que, a princípio fica do lado do marido, mas
com a pressão da sociedade... Laila reafirma que seu potencial vocal como
cantora é fantástico. Sua interpretação de Selminha é muito cativante. Gracindo
Jr, sempre ótimo, é o pai de Selminha. Yasmin Gomlevsky, como Dália, irmã de
Selminha, tem notável amadurecimento profissional, atuando e cantando cada vez
melhor. Thelmo Fernandes, como Amado Ribeiro, é o típico jornalista
oportunista. Cláudio Tovar, adorável em cena, é o delegado Cunha. Jorge Maya é
Aruba, ajudante de ordem da delegacia. Responsável pelas gargalhadas da plateia
com seu bom humor cativante em cena, Jorge nos brinda com seu vozeirão e
afinação. Janaina Azevedo é a vizinha fofoqueira, cantando muito bem. Gabriel
Stauffer interpreta o homofóbico colega de trabalho de Arandir. Pablo Ascoli é
o rapaz beijado no asfalto por Arandir, com presença cênica marcante tanto na
atuação quanto nos números musicais. Completam o elenco Juliane Bodini, Ricardo
Souzedo e Juliana Marins.
João Fonseca aceitou o desafio de unir Nelson Rodrigues com
músicas novas. A alternância dos números com os textos tem um bom resultado.
João, aproveita o momento das discussões GLBT e amplia, com gestuais e
entonações para determinadas frases dos colegas de trabalho e equipe da
delegacia, a discussão da homofobia da história sem abafar o tema principal,
que é o poder da mídia. Destaque para a cena em que Selminha, sentada na
cadeira lendo o jornal, está na dúvida entre ir ao encontro do marido ou
abandoná-lo, quando se levanta e sai, dando lugar a Arandir, que assume a
cadeira, também lendo o jornal, à espera da esposa e tentando entender o que
fizeram com sua vida. Desde o início, João mantém o clima de tragédia e
mistério em torno do futuro de Arandir e a tensão na história cresce ao longo
da apresentação.
O casamento entre Nelson Rodrigues e músicas criadas especificamente
para o espetáculo é uma proposta ousada e inovadora. Cláudio Lins foi feliz
nesta realização, na escolha da equipe que o cerca e o resultado é de
qualidade. Temos números musicais que completam a cena e a história preservada.
Uma novidade que poderia servir de inspiração para outras peças de teatro, a
fim de se fugir dos musicais biográficos.
“O Beijo no Asfalto - o musical” é um ótimo trabalho de equipe, que pega
carona na discussão sobre o poder da mídia nas divulgações das operações da
Polícia Federal, pedaladas e lava-jatos da vida, que anuncia a altos brados os
políticos do partido do governo envolvidos mas esconde os nomes dos políticos da
“oposição” nos seus tabloides. “O Beijo no Asfalto - o musical” desnuda farsas jornalísticas,
como a da revista Veja que publicou matéria sobre as contas falsas do Senador
Romário e não deu uma linha sequer para as contas verdadeiras, na Suíça, do Presidente
da Câmara dos Deputados.
Aqui neste espaço tento influenciar você, leitor, a seguir
as minhas dicas de teatro para que assista aquilo que eu mais gostei na
programação disponível. Então, se você gosta de Nelson Rodrigues, aprecia boa música e
quer ser influenciado pela minha opinião, vá já ao Sesc Ginástico e não perca
este “O Beijo no Asfalto - o musical”!
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