Tenho lembranças da infância, adolescência e inicio
da vida adulta que ainda não tenho coragem de contar a ninguém. São emoções
fortes, guardadas num canto da memória. Não faço uso desta parte do histórico,
mas estão ali, vivas e intensas. Sempre que algo similar acontece, elas saltam
e invadem o pensamento. Repetição de sentimentos. É a agressão na escola e em
casa, é o medo de ser visto na fila da noitada, é o grito na fila do mercado na
defesa do igual atacado. Supera-se a dor, mas a lembrança, jamais.
A peça “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, em cartaz no
Teatro Poeirinha, é texto de Leonardo Netto, ator e dramaturgo que tive a honra
de conhecer em “A Moratória”, vi brilhar em tantas outras e se consagrar com “A
ordem natural das coisas”. Em “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, Leo grita o que
está guardado há tempos, e que neste momento se faz mais que necessário falar:
a homofobia e bullyning na escola, a homofobia e a repressão da polícia (e da
sociedade) que obriga a existência e resistência dos guetos, a homofobia e os
ataques dos congressistas contra o deputado que defende e dá voz ao grupo. Os
dois primeiros textos são de autoria do próprio ator, Leonardo Netto, e, creia,
uma dramaturgia das melhores existentes nos palcos cariocas desta temporada.
A primeira história, contada pela visão do garoto que
sofre bullying e tortura na escola é digna de quem passou por isto e sobreviveu.
A segunda conta a alegria, liberdade, medo e a revolta de um cidadão presente na
rebelião no bar Stonewall, em 28 de junho de 1969 NY, que deu origem ao dia do
orgulho LGBT. O terceiro solo é uma compilação de discursos e falas do deputado
auto-exilado Jean Wyllys durante seus mandatos na câmara federal dos deputados.
Textos de primeiríssima qualidade, que navega entra o personagem que vive a
história, o que conta e atua e o que está de fora fazendo a costura entre vídeos
e frases.
Fabiano de Freitas é o diretor da peça. Investigador
do tema, usa a raiva contida do ator, explora as emoções do assunto, nos traz
um Leonardo Netto diferente do que estamos acostumados a ver, ao mesmo tempo
solto e revoltado; se utiliza de marcas nada óbvias mas que explora todas as
possibilidades do cenário, da luz e do pequeno-grande teatro Poeirinha. Um
encontro de grandes. Fabiano é certeiro e seguro na proposta, aproxima o ator
do público incluindo e instigando a plateia. Gosto muito dos usos da tigela de
água no palco.
A cenografia de Elsa Romero, o figurino de Luiza Fardin,
a ótima direção de movimento de Márcia Rubin e a trilha sonora de Rodrigo Marçal
e Leonardo Netto são lindamente iluminadas pela luz do craque Renato Machado. Os
vídeos, que dão a real dimensão do caos em que vivemos, da homofobia e dos anos
de agressão, são do próprio autor e o mapping de Renato Krueger.
É óbvio que o brilhantismo da peça tem nome e
sobrenome: Leonardo Netto. Atuação impecável, forte, um grito e uma revolta
guardados por anos, a gana nos olhos, a tensão dos músculos, a verdade. Não sei
bem se tem atuação ali ou se são mini-reencarnações de personagens, tamanha a
verdade com que Leonardo Netto nos apresenta no palco. Histórias que podem acontecer com qualquer um.
Este espetáculo, “3 Maneiras de Tocar no Assunto” é
um exemplo claro deste momento de resistência, tempos em que se tem que tirar
forças para manter o ofício, levar arte, cultura e verdade ao público. A importância
deste espetáculo, o tempo irá dizer. O reconhecimento deste excelente trabalho de
equipe virá a galope. Fiquei impactado, feliz, emocionado. Me senti
representado e reconhecido. Acredito que todos que assistam à peça ficarão
revoltados, indignados e prestes a mudar a forma como se portar diante de
alguma ação de homofobia que assistir sem se importar, sem se envolver. Reagir com
elegância e educação é o bom exemplo. Esta peça é tudo isso e muito mais.
Aplausos de pé. Homofobia é crime. Obrigado.
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