sexta-feira, 25 de novembro de 2011

MULHERES SONHARAM CAVALOS

Todos sabemos que a Argentina, logo aqui do lado, ainda não conseguiu recuperar-se da ditadura militar e econômica. E quem somos nós, brasileiros, para falar sobre ditaduras? Temos larga experiência no assunto. Eles também. Nós vivemos uma economia mais segura (será?). Eles vivem correndo atrás da segurança que o brasileiro tem. Temos o mesmo passado de repressão e tortura. Nós, pacíficos natos, e pateticamente pacientes, não gritamos tanto quanto deveríamos quando somos assolados por noticias escabrosas vindas de Brasília. Abaixamos a cabeça, fazemos de conta que não estamos vendo, fazemos gritarias no facebook, mas somos incapazes de levar o grito para as ruas. Incluo o “nas ruas”, as telas de cinema, os palcos, as musicas. Depois de Gianfrancesco Guarnieri, Jandira Martini, Marcos Caruso e Juca de Oliveira, quem escreve peças políticas no Brasil? Quem registra o momento atual? Sou ignorante, quero saber.

Lá na Argentina, não. Anos luz de cultura à nossa frente, possuem um cinema e um teatro extremamente contemporâneo e atual, dignos de serem exportados para o mundo. Nomes como Daniel Veronese e Rafael Spregelburd, traduzem para o palco, não só a brutalidade - “cavalice” - das ditaduras, como na torturante forma de agir que os seres humanos estão “atuando” nas suas vidas. Patadas, frases agressivas, memórias plantadas e suprimidas.


Em cartaz no Poeirinha, novo espaço ao lado do Teatro Poeira, Mulheres Sonharam Cavalos, texto de Daniel Veronese, é um ótimo exemplo do que nos transformaram, do que fomos transformados durante e após uma ditadura. Maridos que batem, casamentos de conveniência, assassinatos sem punição. Um texto difícil. Um texto desafiador. A tradução de Leticia Isnard é competente, estudada, ágil, fluente e segura. Podermos imaginar a ação em qualquer parte do mundo.

Gosto muito de toda a direção de arte de Flávio Graff, que passei a admirar depois que assisti Outside. Na mesma linha, o cenário compõe-se de praticáveis em diversos planos, várias placas simulando “escombros” no teto, e apenas elementos necessários para localizar os personagens em cena: colchão, saco de pancadas, mesa e cadeira. Um biombo ao fundo sintetiza cozinha/despensa/banheiro com sombras. Muito bem exploradas. Figurino e caracterização dos atores também muito bem pensado, bonitos, elegantes e atemporais. Destaque para o imenso rabo de cavalo e para o vestido branco. Importantíssimos também para a compreensão do espetáculo, a luz de Paulo Cesar Medeiros e a sonoplastia do próprio diretor.

O elenco está afiado e entregue à montagem. O texto desafia, mas os atores encaram com firmeza. Analu Prestes, Elisa Pinheiro e Letícia Isnard sabem muito bem onde estão pisando. São as poderosas mulheres, cavaleiras, amazonas, que conduzem seus homens por onde desejam. Isaac Bernat, José Karini e Saulo Rodrigues, ótimos, pensam que mandam nas mulheres, mas para serem ouvidos, precisam relinchar e dar patadas no chão.

Ivan Sugahara é um talento para textos instigantes e investigativos. Direção segura, criativa, usando tudo que o cenário, o figurino, a trilha, a luz e o elenco possam render de melhor. Leva o espectador do silêncio absoluto a múrmuros de desacordo com o que está sendo dito. Assusta a plateia, aproxima o público da história, inclui cada um ali dentro, assistindo ou atuando, no universo da tortura, da ansiedade, da tensão, do conflito. Destaque para a parceria com os preparadores corporal e vocal, que resulta num trabalho competente, seguro e prazeroso.

Quem nunca deu uma patada que atire a primeira ferradura. Eu mesmo tenho uma aqui em casa, como amuleto de sorte e contra as patadas da vida. Uma peça para quem gosta de teatro, pra quem acredita que levantar a voz contra a submissão pode resultar em algo positivo para as futuras gerações. Um texto para servir de inspiração aos jovens autores brasileiros a buscarem na Argentina uma forma de levantarem as suas vozes contra os mandos e desmandos da pós ditadura.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

OBITUÁRIO IDEAL

No final de setembro, nossa vida mudou bastante. Passamos a frequentar UTI, salas de espera de emergência, ambulância. Convivemos com outros pacientes, presenciamos a precariedade da saúde e a falta de leitos em nosso país. Papai, embora não registrasse muito o que estava acontecendo, nos mostrou a dureza que é um paciente com câncer em fase avançada. Ele nos deixou em 19 de setembro. Naquele dia, antes do Fantástico terminar, mamãe ligou dando a notícia. No dia seguinte, trâmites burocráticos, velório e enterro. O nosso, muito triste, mas a causa da morte era natural. Doença. O velório ao lado era um furdunço só. Menina atropelada. No nosso teve oração católica. No do lado, cânticos evangélicos. No nosso, choros contidos. Ao lado, desesperos juvenis, "Ai, me leva junto!". Todos sofrendo a morte de uma pessoa querida. No nosso caso, era a ordem "natural" da vida. No do lado, mãe, pai, avó, tios, choravam e gritavam a morte brutal.

Assisti ao espetáculo Obituário Ideal, que estréia nova temporada na Casa de Cultura Laura Alvim, a partir do dia 11 de novembro. A peça, texto do genial Rodrigo Nogueira, que acompanho desde Play, é a história de um casal que, para tentar salvar o casamento, busca o verdadeiro sentimento, através da excitação em acompanhar velórios e enterros. Ao longo da peça eles procuram em jornais e programas de televisão informações, obituários, que possam indicar um enterro mais peculiar e excitante que o último acompanhado. No fundo, no fundo, está se discutindo, na peça, até que ponto um dos lados do casal deve se submeter a tentativas de manter uma relação, quando o matrimônio já está mais que morto. Discute-se, faz-se pensar, até quando vale insistir numa ilusão, num paleativo, numa migalha, em busca do "até que a morte nos separe". Neste caso, a morte dos outros é o único elo entre os dois. A cada novo enterro, um sopro de vida na vida do casal.

Gosto muito do texto. Ágil, divertido, inteligente, como sempre, Rodrigo brinca com as palavras, com as frases, leva a platéia para um caminho de raciocínio, mas logo percebemos que a conclusão é totalmente inusitada. Destaque para as ligações telefônicas recebidas, para os comentários sobre a diferença entre o enterro do rico e do pobre, e, principalmente, as manchetes dos programas de televisão que ouvimos ao longo da peça.

A direção do próprio autor junto com Thiare Maia, conduz a ação com simplicidade e competência. Sem grandes firulas, como é de se esperar, resolve simples problemas de trocas de roupas com eficiência e criatividade. Os atores falam perfeitamente o que o autor quer dizer, sem deixar duvidas sobre a mensagem do texto.

No palco, temos um simpático cenário de Aurora de Campos, que nos recordando a década de 50, acrescido da bonita e eficiente luz do Renato Machado. Pontos positivos também no figurino de Gabriela Campos e a trilha sonora, também do Rodrigo, que evoca cenas de mortes em novelas e locuções de Maria Beltrão para crimes que serão obituários ideais.

Maria Maya e Rodrigo Nogueira são divertidos, corretos, emotivos, eficientes, parceiros, generosos e afiados em cena. Ele domina o texto que escreveu, e como o marido que tenta salvar o casamento, consegue nos deixar atônitos com suas reações, principalmente quando a mulher diz para ele qual seria o obituário ideal para ela. Já Maria Maya, linda, cabelos a lá Amy Winehouse, competente e talentosa, consegue nos passar a insegurança, a falta do desejo pelo seu marido, o medo de encarar uma provável doença, ou uma possivel gravidez, é irônica no tempo certo. Uma dupla que se afinou no palco e que, espero eu, tenhamos mais encontros em muitos outros espetáculos.

Um tanto mórbido para o meu momento pessoal, confesso que ri bastante com o texto e com as atuações. Uma peça divertida, inteligente, crítica. O humor negro que eu gosto e com atores talentosos. Para quem gosta de teatro e tem o bom gosto das boas comédias.