sábado, 30 de julho de 2022

AS METADES DA LARANJA

Existe um documentário chamado “A Pessoa é para o que Nasce”. Encaro esta frase como um chamado da vida para que a pessoa siga o rumo “traçado”. O dom de cada um, aquilo que você sabe fazer de melhor, e faz por prazer, e faz porque sabe fazer, e faz porque é de dentro que vem a vontade. É incontrolável. Muitos artistas sentem essa força interna e só lhes resta fazer.

Durante a pandemia, o canal de Tauã Delmiro no Instagram – sim, é um canal. Não é perfil. É entretenimento puro! – foi um dos que mais me alegrava. Sua capacidade de inventar pequenas histórias nos stories, a edição sempre genial e criativa, dizia – e diz – que ali tem alguém que nasce para o que é. Ele é um ator, cantor, escritor e diretor completo. Nato. 

Esteve em cartaz no Rio, o brilhante musical “As Metades da Laranja”, com canções de Fábio Jr. A ideia? Do Tauã Delmiro. Dois irmãos gêmeos separados pela vida se reencontram depois de anos. Um rico, outro pobre. Você já viu isso em algum lugar... mas, calma. Todas as histórias já foram contadas. A forma como Tauã conta esta versão é o que importa. 

Cercado de amigos e talentos, Victor Maia e Analu Pimenta são "alma gêmea, carne e unha", os dois parceiros de cena que contam, interpretam e cantam, junto com Tauã, esta peça. O trio embarca nas brincadeiras, tons, vozes, crenças dos personagens e, juntos, constroem uma história divertida para o público, cheia das mais variadas emoções. Cada um ao seu momento brilha em cena. Analu Pimenta, sempre linda e entregue, Victor Maia sempre atento, afinado e no compasso mesmo descompassado, se fundem ao cérebro de Tauã e embarcam, sem medo nem dúvidas ao que ele propõe. Tauã, generoso, entrega de bandeja todo seu talento de ator e cantor para os colegas brilharem em cena e o público se divirta. O trio é mais que competente.

Junto deles está Tony Lucchesi. Se você não sabe quem é, 7 em cada 10 espetáculos musicais nos últimos 6 anos tem Tony Lucchesi na direção musical e nos teclados. Além de tocar e criar os arranjos, Tony é personagem perfeito para encarar o trio de atores e fazer parte deste espetáculo inesquecível. Tony entra de corpo e alma no papel de “todos os outros personagens” e músico de cena.

O palco, todo em laranja, tem cenografia idealizada por Tauã com “post-it” laranjas em dois tons que fazem meia laranja ao fundo. O figurino, todo laranja com camisas brancas e gravata preta – ideia do Tauã. A luz, de JP Meirelles abusa do âmbar (laranja) e acerta nos momentos de comédia e emoção.

Tauã inventou isso tudo. Como disse Victor Maia no momento dos aplausos, Tauã tinha pensado em usar um dinheiro guardado para comemorar seu aniversário com uma festa ou uma viagem, mas... resolveu montar uma peça. Ele nos dá de presente aquilo que ele tem de sobra. Ele prega botão, chuleia, atua, escreve e dirige. De sua cabeça saem as cenas mais hilárias dos últimos tempos em teatro – pena não poder escrever para não dar spoiler – mas tem desde alguém que cai da cadeira até o exercício da sementinha que vira árvore. Tem ator que simula ser um fantoche manipulado até conserto de cenário ao vivo. E logo depois de um numero que faz a plateia se acabar de rir, vem uma música de impacto em que todos choram de soluçar. É muita criatividade e generosidade para uma cabeça só. Tem ainda Manu Hashimoto como co-diretora que embarca na palhaçada-organizada com competência.

Não sei definir o tipo de teatro inovador que estamos vendo nascer com esta peça. Tem pastelão, tem besteirol, tem teatro de revista, tem musical. A harmonia do visual, a ordem das canções contando histórias, o exato tempo de cada piada, a afinação e a entrega dos 4 grandes artistas (Analu, Victor, Tony e Tauã) , faz de “As Metades da Laranja” um espetáculo brilhante, forte, inteligente, rico em conteúdo e referências de vida e de internet. 

Tauã Delmiro sabe muito bem como se divertir e como levar a sua alegria ao público. Ele é para o que nasceu... Não tem medo de ser criticado nem rotulado. Ele faz e rir e chorar, manipula a plateia com ciência. Ele é pra ser. E nós, publico, povo que ama teatro, só tem a agradecer. Obrigado Tauã. Obrigado equipe.

Agora fico cá rezando, torcendo para que “As Metades da Laranja”, um sonho lindo de viver, volte logo aos palcos cariocas e que muitas pessoas possam assistir, se divertir, cantar e se emocionar com este vulcão de talento em cena chamado Tauã Delmiro e seus comparsas, irmãos metralhas, carismáticos e competentes Analu Pimenta, Victor Maia e Tony Lucchesi. "Estou morrendo de vontade de você!" Aplausos de pé, com gritos de bravo. Imperdível.


domingo, 24 de julho de 2022

JUDY, O ARCO-ÍRIS É AQUI



A falta de referência, de memória, de conhecimento é o que mais precisa ser combatido para que o futuro não repita o passado e, melhor, que se aprenda com as coisas boas já vividas para melhorar o futuro. Em recente pesquisa inglesa, 1/3 dos entrevistados, da geração Z (jovens entre 10 e 16 anos), não conhece o trabalho dos Beatles ou Elvis. E, pior, para os próximos 10 anos a tendência é a redução do número de fãs... Alerta vermelho, alerta vermelho!

Por aqui, cada vez mais terceiro mundo, onde a cultura vem sendo demonizada, cachês faraônicos de sertanejos, ausência de público nas salas de teatro e cinema, mergulhar de cabeça em um espetáculo sobre uma estrela de cinema americano do século passado, é um ato corajoso e, mais que isto, (é clichê, mas é verdade) um ato de amor e resistência à história mundial da cultura e à falta de memória coletiva.

Flávio Marinho nos presenteia com um texto brilhante – Flávio Marinho e Brilhante são sinônimos! – sobre Judy Garland, atriz do mais famoso filme O Mágico de Oz, mãe de Liza Minelli (aquela que entrou de cadeiras de rodas ao lado de Lady Gaga na entrega mais recente do Oscar... que esteve com Bibi Ferreira em Nova York...), lembrou? Não? Não conhecia? Como você não conhece Judy Garland? Nunca ouviu falar de Bibi Ferreira? - (Pausa: corre pro teatro Riachuelo pois a história de Bibi Ferreira está em cartaz) - Nem sabia que Liza Minelli era filha de Judy Garland? Lady Gaga pelo menos você conhece? ... É pra reativar a sua memória, ou te fazer conhecer essas pessoas, que Flávio Marinho escreveu este musical. Não só trazer uma referência para todos os artistas, contar uma história exemplar sobre altos e baixos na carreira incerta de quem vive do trabalho e do amor à arte, mas para servir de exemplo para todas as gerações a respeito das constantes quedas e levantes que a vida nos dá.

No palco, o cenário de Ronald Teixeira é o necessário para se contar a história com o mínimo necessário: um baú, um “três tabelas”, um banco e um cavalete “flip-chart”. Ainda no fundo, um painel com lampadinhas. É dele também o excelente figurino, com 2 trocas de roupa que só enriquecem o trabalho. A luz de Paulo Cesar Medeiros é sempre certeira.

Liliane Secco é a diretora musical, arranjadora e tecladista em cena. Ao seu lado, André Amaral. Linda a cena em que ambos tocam juntos, à quatro mãos, no mesmo piano. Destaque também para a leveza dos movimentos mesclados com típicos movimentos de mãos da homenageada, sob o cuidado de Tania Nardini.

Luciana Braga está divina. Não existe outra expressão. Captadora de olhares e sorrisos, ela se expõe, se atira como alguém que “anda” de asa delta e voa alto. Nunca desce. Em suas mãos, e voz, e corpo, o espetáculo só cresce ao longo da encenação. Afinadíssima, segura, preparada, entregue, confiante. Nos seus olhos, nas mãos, no andar, temos ali a atriz em sua majestosa forma e esbanjando talento.

O grande maestro deste trabalho é Flávio Marinho, o nosso maior – e talvez mais completo – amante e apreciador de espetáculos de teatro de qualidade. Além de idealizar e escrever, Flávio dirige a peça. Sabe onde colocar a atriz e desenhar o espetáculo. Aproxima palco do público, desde o momento em que a plateia é recebida com Luciana já no palco, até o último e tão esperado grand finale com Luciana Braga sentada na beirada do palco, Além do Arco-Íris. Um espetáculo refinado cuja ficha técnica é a nata da classe artística.

“Judy, O Arco-Íris é Aqui” já pode ser considerado o marco da retomada teatral carioca. Com nenhum patrocínio, contando apenas com recursos próprios, amor e apoios culturais, fica provado que o teatro está vivo. É obrigatório assistir. Pela mensagem, pelo conteúdo, pela história de Judy, pela necessidade de se reinventar e se reconstruir, de Judy e Luciana. Pelo amor de Flávio Marinho pelas artes cênicas. Pelo talento de toda a equipe. Aplausos de pé! Vida longa a “Judy, O Arco-Íris é Aqui”.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

JOÃOSINHO E LAILA : Ratos e Urubus, Larguem minha Fantasia

Foto: Cláudia Ribeiro

A primeira vez, a gente não esquece: Caprichosos de Pilares, grupo de acesso, ala do sorveteiro. Aceitei. Fomos buscar fantasia, trouxe no saco preto pra casa. No dia marcado, lá fui eu pra Presidente Vargas. Não lembro se era do lado do “Balança-mas-não-cai” ou dos Correios. Aquela muvuca, zona, bagunça de gente com fantasias diversas e diferentes, uma gritaria, um povo alegre e outros preocupados, uns chefes de ala tensos, umas baianas desmontadas, os carros alegóricos lindos e imensos... Achamos nossa ala pois havia um pitoco com o número acima das nossas cabeças. “Isso não vai dar certo... é impossível! Muitas variáveis para dar errado! O risco é imenso!”. Ah, eu sabia o samba, tá? Era sobre chocolate o enredo. “É bom, que bom, bombom / Gostoso é o que você me dá / Chora cavaco, bate bum bum / Vem no meu samba, vou comer mais um”... só de lembrar, os zóio ficam cheios de água. É inesquecível. 

A escola “armada” na concentração, do nada, do nada, começa a andar... as alas se formam como por milagre, os carros se colocam entre as alas e a gente vai atrás. De repente, a escola vira pra Sapucaí... e ali, a emoção toma conta num tamanho único; o mundo todo está te olhando, te aplaudindo, te cantando, te torcendo, junto contigo. É a maior emoção da vida. É a alegria mais pura que um ser humano pode experimentar.

E foi essa a emoção que tocou minha alma e corpo quando começaram os primeiros acordes de “Beija-flor, minha escola / minha vida, meu amor”, no teatro de arena do SESC Copacabana começando a peça “Joãosinho e Laíla”. Dali em diante, nem precisei piscar os olhos para irrigá-los. Chorei mesmo.

O belíssimo texto de Márcia Santos tem tudo que uma boa dramaturgia de teatro precisa: pesquisa, personagens bem construídos, enredo, trama, uma questão a ser resolvida no fim da peça, impasses e desafios durante. Joãosinho Trinta é o carnavalesco da Beijar-Flor (carnaval de 1988 - construção / 1989 - desfile). Laíla é o diretor de carnaval/harmonia da escola. Um é o corpo, o outro a alma. Joãosinho é o gênio criativo, Laíla é o meticuloso perfeito. Obvio que atritos aconteceram. A pergunta da peça: será que eles vão conseguir apresentar o enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” com competência? A resposta já sabemos. Mas aguardamos até o final para saber “como será reproduzido” na peça.

Wanderley Gomes assina o figurino e a cenografia perfeitos. Um barracão minimalista cuja mesa vira Cristo Redentor no final. Sabe quando, ainda na concentração, o carro alegórico precisa abaixar pra passar sob a passarela ou o viaduto? Ou quando precisa abaixar pra passar na (antiga) “Torre da Imprensa”, quase na Apoteose? Pois foi assim que, “do nada”, a mesa virou Cristo Redentor. Igual aos carros alegóricos na avenida! Gênio!!

Valdeci Corrêa cria uma luz bonita e competente. Marcelo Alonso Neves é sempre perfeito na direção musical. Foi lindo relembrar os sambas da agremiação de Nilópolis! Colocar ritmistas era o obvio, mas, além disso, eles brincam com os instrumentos e fazem parte das cenas como personagens. Ótimo! Marlon Júlio é o assistente da direção musical e Felipe D’Lélis fez os arranjos da bateria. Os músicos: Felipe D’Lélis, Leo Antunes, Marlon Júlio, Juliane Procópio, Markinhos e Vitor Medeiros.

O ótimo elenco tem como protagonistas Wanderley Gomes (Joãosinho) e Cridemar Aquino (Laíla). Entregues, seguros, firmes. Os dois brilham ao seu tempo. São homenagens perfeitas. Anna Paula Black tem seu melhor momento como Tia Eulália, e ainda brilha como Rosângela. Fabio D’Lélis encanta com seus Jenilson e Hamiltinho. Mas, se me permitam um aplauso um pouco maior, Milton Filho é pura alegria, beleza e generosidade em cena. Sempre que está presente sabemos que tem coisa boa. 

E, não menos importante, Édio Nunes. Idealizador e diretor, sua sacada em montar esta peça é ótima. Um recorte do que seria a preparação do desfile mais importante da Beija-Flor (pra mim, né!) na Sapucaí, o embate entre dois gênios: Joãosinho Trinta (que eu admirava!) e o Laíla (que eu temia!), as fofocas de bastidores, o Cristo Mendigo, a solução pra entrar na avenida... Édio controla e comanda este espetáculo como num desfile: arma o elenco e os carros alegóricos (mesas) no palco, depois, no final, ele explode os corações na maior felicidade com o belíssimo, marcante e inesquecível desfile concentrado no Cristo coberto e depois empapelado com matérias de jornais. Édio é puro carnaval. Sua direção é como diz o samba: “Firme, belo perfil / Alegria e manifestação. Eis a Beija-Flor tão linda / Derramando na avenida / Frutos de uma imaginação”. Aplausos de pé com olhos cheios de água.

Na fantasia do sorveteiro, tínhamos um isopor que colocamos cerveja e bebemos durante o desfile. Meu sapato se desfez, cheguei descalço na apoteose. Nunca chorei tanto na minha vida quanto depois daquele desfile. De alegria, emoção e realização. A Caprichosos de Pilares foi rebaixada na apuração daquele ano em que eu desfilei... 

Leba laro, ô, ô, ô / Ebo lebará, laiá, laiá, ô / Leba laro, ô, ô, ô / Ebo lebará, laiá, laiá, ô.

Vida longa ao espetáculo Joãosinho e Laíla. Aplausos incansáveis de pé.