domingo, 25 de setembro de 2022

GRAU ZERO

Lembro das aulas, na escola ou na faculdade, onde os professores obrigavam os alunos a pensar. Um professor específico, após “dada a matéria”, parava tudo e dizia: Pausa para Amadurecimento Profissional. E era nesta pausa que ele dava a dica, mostrava o lado que não víamos, indicava onde pesquisar, contava a realidade, soltava perguntas, propunha hipóteses diferentes da “matéria dada”. Daí aprendemos um “processo investigativo”, onde, embora acreditássemos no que os livros estavam dizendo como verdade, pensávamos sobre como poderia ser “se não fosse”. Ele nos ensinou a pensar. A escrever nossa história, a contar até a mesma, só que sob nosso ponto de vista.

Está em cartaz até hoje no Teatro Gláucio Gil, porém com torcida para que siga adiante, o espetáculo Grau Zero, texto brilhante de Diogo Liberano. A peça tem por base 3 alunos que recebem grau (nota) zero em suas monografias de mestrado. Aí resolvem tirar satisfação com a professora, mestra, orientadora. A história é contada e recontada sob vários olhares, os alunos são tiranos, ratinhos de laboratório, crianças de colégio, adultos irresponsáveis, aprendizes de feiticeiros. Uma genialidade. AMO quando o texto me faz ficar de boca aberta, quando recebo qualidade, me faz pensar sobre o que está sendo dito, quando concordo com o método da escrita apresentada. E este texto de Diogo Liberano, Grau Zero, me trouxe momentos de extremo prazer mental.

A partir daqui contém spoiler.

No palco, um cenário composto de estruturas de ferro e madeira, com quadros brancos. Deduzi que seja para caracterizar o desmonte, o descrédito, a decadência com que as escolas públicas estão sendo tratadas fisicamente. São 4 estruturas que compões perfeitamente tanto uma sala de aula quanto um cativeiro. Ótimo trabalho de Nícolas Gonçalvez. No figurino, Ticiana Passos dá vida aos alunos e professora com roupas atuais e confortáveis. Na luz, a sempre ótima Fernanda Mantovani dá a mesma importância de qualidade quando a plateia é convocada a virar aluno e quando a cena vira um interrogatório. 

O elenco é composto de 3 alunos homens e 1 professora mulher. João Pedro Novaes, Manoel Madeira e Pedro Yudi são “os meninos-homens” que questionam a mestra. Cada um brilha a seu tempo: Pedro na ótima cena da confissão de interesse pelo colega, João Pedro na cena da agressão à professora e Manoel quando busca se livrar do assédio do amigo. 

Talita Castro é a mestra. Seu trabalho arrebata corações, atrai olhares. Como uma verdadeira professora, nos dá uma aula de teatro. Para os “meninos-atores”, Talita é sua mestra, mostrando a eles, e ao público, como se faz, como se diz, como se comporta, como se atua em um espetáculo de teatro. Talita olha no fundo do olho da plateia – meninos, eu vi! – encara e defende sua causa (e a causa do texto); aproveita toda vírgula, cada espaço, toda respiração para dar seu recado. Convence a qualquer um a mudar seu ponto de vista, a imaginar uma outra história em cima de fatos deturpados ou verdadeiros. Talita Castro precisa e merece uma indicação a um prêmio de teatro.

Conduzindo e dirigindo o espetáculo, Marcéu Pierrot assina seu difícil trabalho com partituras e marcações seguras e certeiras. Difícil dirigir a mesma cena, porém com texto diferente. Este é o destaque de seu trabalho: quando a professora recebe um aluno atrasado, essa cena muda 4 ou 5 vezes, recontando a história sob novo olhar. E tudo se mantendo fiel a direção do espetáculo. Acerto também na cena em que os 3 alunos sequestram e torturam psicologicamente e ficticiamente, ou não, a professora. A violência está ali, não a vemos de fato acontecer, mas a forma como faz de um simples balde o saco de pancadas, é ótima. Aplausos de pé.

Grau Zero é daqueles espetáculos necessários para o agora. É o vira-voto, é o tapa na cara do fascista, reacionário, conservador que não enxerga a liberdade no outro. É a forma do dizer, sem dizer, que o que vivemos agora em nosso país é triste, trágico e truculento. É urgente que Grau Zero fique em cartaz até que muitas pessoas assistam a este trabalho digno de prêmios, aplausos e reflexões. Agradeço a Diogo Liberano, Talita Castro, Marcéu Pierrot, e não menos importantes João Pedro, Manoel Madeira e Pedro Yudi por usarem meu cérebro e me apresentarem um trabalho dos grandes e memoráveis. Vida longa a Grau Zero. Aplausos de pé. Bravo.