quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

OLHEIROS DO TRÁFICO


As UPPs estão aí, vieram para ficar. A pacificação das comunidades precisa, ainda, de uma ação social governamental. Não adianta substituir uma ditadura, por outra. Uma milícia, um trafico, por uma polícia que impõe toque de recolher nas favelas, ameaça moradores e atira a esmo. Realmente temos boas notícias das UPPs. Aqui, em Botafogo, faz um tempo que não se ouve tiroteios na madrugada. Se existe tráfico, ou se acabou, não sei responder, mas sei que a segurança no morro, melhorou. Mas, nas ruas... Se lá em cima não tem trabalho, os aviões e olheiros do tráfico vão viver de que? Assaltar no asfalto, claro. Era questão de tempo para isso acontecer. Veja a nota que saiu, hoje, no Ancelmo Góis.

Está em cartaz na Casa da Gávea o espetáculo “Olheiros do Tráfico”, escrito e dirigido por Moisés Bittencourt. Dois meninos, conforme o nome da peça já diz, são responsáveis por vigiar o que acontece durante a noite. Moisés é craque nos diálogos e linguajar. Além de contar a história pelas vozes dos atores, incluiu ingredientes muito comuns como a festa funk no morro, a “periguete” namorada do traficante que pega um dos olheiros, o início da parceria entre os dois, a troca de favores, a traição. O retrato do efeito do pó na vida dos meninos é muito bem caracterizado e interpretado. Um garoto nascido e criado no morro, o outro no asfalto, são os dois olheiros. Com nascimentos bem diferentes, se igualam no momento em que defendem o morro, local onde vivem, e defendem o tráfico, seu “emprego”. Um tem por opção morar no morro. O outro é a falta de opção que o fez olheiro.

A trilha e a iluminação funcionam muito bem em toda a peça. O cenário, composto de 2 bancadas de camarim ao fundo e degraus, servem bem ao espetáculo. Achei ótimo usar a arquibancada como subida da favela! O figurino também se encaixa na trama.

Moisés, que assina também a direção, deixa claro que sabe do que está falando e conduz os atores por um caminho seguro e de uma realidade impactante. Se utiliza da entrega dos atores para fazer com que tenhamos ao mesmo tempo compaixão e raiva deles. Usa o humor na hora certa e o drama com responsabilidade. No início e no fim da peça, com os atores “sendo eles mesmos” é que precisa de uma atenção para a peça ficar redondinha. Mas, sem dúvida, o retrato da favela, dos olheiros do tráfico, está perfeita quando a ação se passa no morro.

O que resulta no ótimo caminho com que a história é apresentada, é a interpretação dos atores Sandro Barçal e Bruno Suzano. Ambos conseguem mostrar-se como atores, no início e final da peça, e olheiros do tráfico em 90% do espetáculo, fazendo bem a diferença entre Atores/Olheiros. Sabem do universo no morro, trejeitos, usam as palavras a favor de suas personagens para contar a história. Anotem os nomes: duas boas revelações!


Uma peça ousada, onde se mostra um pequeno, mas real, universo na vida dos garotos do tráfico. Mostra a diferença entre quem não tem oportunidades no asfalto, sendo rico ou pobre, e quem opta por seguir o poder dos traficantes. O fim de todos é o mesmo: uma vida muito curta. Vida longa ao espetáculo!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O HOMEM QUE TINHA MEMÓRIA


Entrei no Poerinha, escolhi o melhor lugar para ver a peça. O publico sentou-se e aguardou. Os atores, cada um com seu banquinho, sentaram no palco e começaram a contar histórias curtas, inusitadas, sobre suas infâncias e vidas. Nos incentivaram a buscar, na memória, por uma das nossas, antiga, tema livre. Lembrei de uma e contei.

Quando eu era pequeno, fui um dos Reis Magos, num Auto de Natal no teatro do Instituto de Educação. Acontece que Rei Mago não usa óculos. Ainda mais fundo de garrafas como os meus. Daí, a coitada da criança teve sua visão arrancada carinhosamente por uma professora, me empurraram vestido de Rei, no palco, e lá fui eu, míope, míope, em busca de uma manjedoura. Até hoje to procurando Jesus, Maria e José. Outros da plateia lembraram histórias também divertidas. A tônica foi o humor. Ninguem contou um drama. Foi ótimo ter ouvido aquelas histórias.

Está em cartaz no Teatro Poerinha, aqui, vizinho de casa, em Botafogo, teatro que gosto muito, a peça “O Homem que Tinha Memória”. São 3 histórias de Peter Bichsel, retiradas do livro “ O homem que não queria saber mais nada e outras histórias”. A primeira, um homem viciado em trens. Sabe tudo. Horários, carros, degraus, numero do vagão, paragem. Lembrei de quando estive viajando pela Alemanha. A segunda, a história de um homem que, para mudar sua tediosa rotina, resolve mudar o nome das coisas e entra num universo só seu. Lembrei-me de Marcelo Marmelo Martelo. A terceira, mais um homem, agora tentando provar que a Terra é redonda. Ele traça uma linha reta e planeja, em ricos detalhes, como dar a volta. Escolhe e calcula a necessidade de ferramentas, transporte, alimentação e hospedagem. Um trabalho solitário, tal qual um produtor cultural.

  

Em todas, a solidão do homem, e a memória deste homem, são a linha do texto. As histórias são muito bem contadas. Adaptadas, dirigidas e atuadas pelo trio de atores Cadu Cinelli, Edison Mego e Warley Goulart. Sem a pressa de chegar ao fim, eles desenham o texto, a direção e as atuações, com calma, paciência e eficiência. Sabem que, ao contar cada história, estarão buscando pela memória, deles mesmos, e do publico, algo que os liguem ao espetáculo. E conseguem. Como são os idealizadores e atores, eles sabem muito bem onde querem chegar com este trabalho e o objetivo é alcançado. Competência, talento e qualidade.
Convidaram o expert Isaac Bernat para a supervisão. E a visão de fora, de alguém com tamanha competência e bom gosto, comparando com as suas peças dirigidas, em cartaz no Rio, é bastante rica e complementar ao que o trio faz no palco.

A cenografia e o figurino, dos Tapetes Contadores de História, não poderia ser mais apropriada. Sabem usar, com perfeição, tecidos, objetos, velcro. Cenário necessário, limpo, harmonioso e de ótimo resultado. Bem como o figurino. Tudo respeitando cada uma das histórias, diferenciando-as uma das outras e dando complemento ao texto. A direção musical de Cadu Cinelli contribui para o andamento do espetáculo e troca de histórias. A luz de Aurélio de Simone é um complemento competente.


Gosto muito de ver espetáculos como este, atores talentosos, texto de bom gosto e inteligente, que pegam a plateia pelo coração e pelo cérebro. Nossa memória às vezes nos prega peças, mas as boas lembranças estarão sempre presentes, para que possamos contar para os mais novos e para os desconhecidos. E, certamente, esta peça já faz parte das minhas memórias e vou contar essa história por muito tempo. Aplausos de pé.