sábado, 28 de setembro de 2013

1958 A BOSSA DO MUNDO É NOSSA


Primeiro ingrediente: sonhos. Sonho todas as noites. Viajo a lugares que não existem, encontro pessoas que já partiram, converso com desconhecidos. Voo, corro, me escondo. Às vezes (e posso contar nos dedos, talvez umas 6, que me lembre) acordo rido, pois, no sonho, estávamos às gargalhadas. E a piada é tão boa que permaneço sorrido ainda lembrando. Muitos amigos não se lembram de seus sonhos, sou privilegiado e grato por sonhar e lembrar. Pena que ao longo do dia o sonho vai se apagando. Às vezes some por completo, mas basta uma referência e ele é reavivado, porém apenas a parte importante daquele sonho fica. Reserve.

Segundo ingrediente: lembranças antigas. Sabe quando você volta à infância, ou à adolescência, e lembra do colégio? Lembra duma festa em que um fato marcante aconteceu? Um fato histórico? A queda das Torres Gêmeas, por exemplo. Naquele dia pode não se lembrar de tudo, mas o momento, o local, o fato, e uma pequena variação de ações, certamente você se lembra. Mas o fato é vivo. E flashes são recordados. Muita coisa se apaga, mas frases, gestos, posições, ficam. Lembro também da vitória da seleção em 1994. Eu no PC com a cara enfiada num joguinho de canos cujo objetivo era completar a instalação hidráulica para o líquido amarelo (ou seria verde?) passar. Este jogo dava sorte ao time do Brasil (oi?). Tenho flashes da cara do jogador que perdeu o pênalti (Rodrigo Baggio?) e dos pulos do Galvão Bueno. Flashes vivos. Reserve.

Pois agora junte os dois ingredientes acima e mergulhe de cabeça no espetáculo “1958 – A Bossa do Mundo é Nossa!”, inspirada no livro “Feliz 1958” de Joaquim Ferreira dos Santos e idealizada para o palco por Andrea Veiga. Lendo o programa, Andrea aliou-se a talentos da produção e do teatro: Andrea Alves e André Paes Leme, respectivamente. A peça é um apanhado de boas memórias, sonhos reais e flashes do que Joaquim conta no livro. Seria mesmo impossível transpor toda a história daquele “ano que não deveria terminar”, para um musical do teatro. Então, André Paes Leme, que assina o roteiro, pegou flashes, sonhos bons de acordar rindo, e ligou os momentos, junto com pequena história de 3 mocinhas. Um belo trabalho de pesquisa e organização da sequência dos fatos e das histórias, sempre tendo como principal lembrança os 7 gols da copa do mundo de 1958.

A direção é do próprio roteirista, o que ajuda pra caramba, pois as duas funções: direção e roteiro se completam. A opção por poucas falas, músicas na medida certa, e explorar, ao máximo, a plasticidade dos atores é um achado. Nunca vi um espetáculo como este. Eu não vi, alguém já deve ter visto, eu não. André usa os atores como contra-regras e como “objetos” de cena. Eles são estátuas, são atores interpretando atores, são testemunhas oculares, são cumplices das histórias acontecidas em 1958. Gosto muito da exploração do palco e da sequência (com idas e vindas sempre ao futebol). É tanta riqueza no espetáculo que gostaria de citar várias, mas não dá. Tenho que ver de novo. Uma eu adorei: logo no início da peça, os jogadores das duas equipes cantam seus hinos. Os da Suécia, sabem de cor e cantam com vontade. Já os brasileiros... quando muito sabem o refrão! Hilário! Esta direção certamente renderá uma indicação para prêmio de teatro. Muito merecido.

Somada à direção geral, está a direção de movimento, de Márcia Rubin. Posições, gestos, modo de parar em cena, leveza, tudo ajudando aos atores e ao diretor a compor a história. Atores são portas, atores são monumentos, atores são vários passageiros amontoados num avião. Um ótimo trabalho e um afiado casamento entre as funções direção e movimento.

O cenário é de criação de Carlos Alberto Nunes com uma equipe de primeira. Gosto muito dos cobogós estilizados, dos objetos (tv e rádio) e da inteligência com que um objeto simples vira algo inusitado: uma folha de papel vegetal vira a rampa do planalto! Casamento bacana entre cenário e direção. O figurino de Kika Lopes, colorido, auxilia no contar da história e ilustra a época. A luz de Renato Machado é sempre excelente! Com destaque para os refletores de LED que criam azuis e vermelhos bem fortes e bonitos. Cores vivas. Aplausos também para as projeções de Renato e Rico Vilarouca. Outra coisa a comentar: os personagens fumam em cena, mas os cigarros não são acesos. As fumaças estão na projeção!

E ainda temos direção musical (Marcelo Alonso Neves) e músicos! Os atores cantam com dignidade. Destaco Daniela Fontan cantando no programa da rádio nacional e Andrea Veiga, cantando nas boites, berços da Bossa Nova.

E o elenco, não menos importante, é composto por Andréa Veiga, Bianca Byington, Daniela Fontan, Diego de Abreu, Leandro Castilhos e Matheus Lima. Seria um pecado falar de cada um individualmente. E também seria uma heresia não elogiar um a um. Todos se entregam a este sonho, a estes flashes e momentos de 1958, com muita garra e competência. Todos têm seus momentos de protagonista e são generosos com os colegas no momento da cena do outro. Todos brilham individualmente e no conjunto. Aplausos de pé!

Este musical é inovador, com uma forma diferente de contar uma história. É verdadeiramente uma comédia musical. Gargalhei e atrapalhei os atores, mas era impossível segurar o riso. Cantei e me emocionei com os jingles que não escutei na época, mas que conheço bastante. Sonhei este sonho junto com o diretor e as Andreas. Tive flashes da minha história. E no final da peça fiquei com aquela sensação de ter acordado depois de um sonho com gargalhadas, e pude continuar rindo por um bom tempo. Espetáculo imperdível.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O DIA EM QUE RAPTARAM O PAPA


Éramos pequenos e fomos em fé até a Praça da Bandeira esperar o Papa passar. “A bênção, João de Deus, nosso povo te abraça. Tu vens em missão de paz. Sê bem-vindo, a abençoa a este povo que te ama”! Como percebem, ainda me lembro da música. Cantávamos em pé à espera dele. Bandeiras de papel amarelas misturadas às verde e amarelas. Veio o ônibus. Na frente, a figura de branco passou acenando pelo lado de dentro do vidro. Passou. Nos sentimos abençoados. Isso foi em 1980 e eu nem tinha 10 anos de vida! Infelizmente este ano, Papa Francisco não me viu no Rio. Estive fora, trabalhando, e acompanhei pela TV a JMJ que, se pelo lado da desordem a falta de infraestrutura nos envergonhou como cariocas, por outro lado nos encheu de alegrias como católicos e brasileiros, ao receber, tão carinhosamente, o novo Papa em sua primeira viagem internacional.

Está em cartaz no Teatro Clara Nunes a comédia “O Dia em que Raptaram o Papa”. O texto de João Bethencourt teve mais de 40 encenações pelo mundo. Precisa dizer mais alguma coisa sobre o texto? Sucesso, claro. Divertido e totalmente coerente, não falta uma explicação e tudo que se diz é sério e de ótimo gosto. As piadas atualizadas ajudam a aproximar o público da história. E nada mais atual e oportuno do que esta montagem, que estreou próximo à Jornada Mundial da Juventude.

Um taxista recebe uma bênção divina: conduzir o Papa no seu dia de folga. O que ele faz? Tem uma ideia de jerico (Pausa para amadurecimento profissional: no Nordeste, jerico é igual a mula): raptar o Papa e pedir resgate. Leva o dito cujo para sua casa, para enlouquecer sua esposa e filhos. A notícia se espalha. O mundo fica temeroso com o sumiço do pontífice. Até a eterna bola da vez Al Qaeda é acusada. O local do sequestro é descoberto. E, partir daí, surgem o Rabino, o Xerife da cidade, e o repórter contando tudo, ao vivo, para todas as televisões do mundo. O pedido de resgate é inovador e esperançoso. Será que vão conseguir liberar o Papa são e salvo? Haverá perdão pra o sequestrador? Vá ao teatro e assista até o fim.

A direção do Tadeu Aguiar é ótima! Integrando muito bem elenco, cenário, trilha sonora, ocupando com inteligência o espaço apertado do teatro Clara Nunes. Tadeu explora o talento do elenco para as frases da comédia e acerta na velocidade em que o elenco diz o texto. Comédia tem que ser rápida, mas com tempo para saborearmos as piadas. E assim Tadeu faz.

A cenografia de Edward Monteiro, em dois andares, é bastante bonita, colorida e bem acabada. Gosto dos janelões soltos no ar, nas laterais. Destaque também para os adereços de Clívia Cohen. Adorei a geladeira amarela pintada como um taxi novaiorquino. O figurino de Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo é sempre bom. Nada além do necessário para caracterizar a família judia, o rabino, o adolescente, o cardeal e o Papa e com isso acerta em cheio. O perfeito vídeo de Paulo Severo conta com Vanessa Gerbelli Ceroni e Françoise Forton interpretando âncoras de um telejornal, narrando a saga do Papa desaparecido. Tudo bem iluminado por Rogério Wiltgen.

No palco, o Papa de Rogério Fróes é mais parecido com Papa Francisco do que o antigo Bento XVI. Carismático e seguro. Marcos Breda é o divertido e atrapalhado sequestrador-taxista. Com um tempo de comédia bastante apurado, faz a plateia torcer por ele para que, no final da peça, seja feliz junto com sua família. Debora Olivieri, hilária como a esposa. Me arrancou gargalhadas! Renan Ribeiro e Sabrina Miragaia interpretam os irmãos, filhos deste pai louco, mas que amam a família e fazem tudo para ajudar a solucionar este imbróglio. Silvio Ferrari interpreta muito bem o Cardeal, exatamente como pensamos ser um deles lá no Vaticano (ok, fui irônico). E ainda temos Fabio Bianchini como o Xerife, Bruno Torquato como o repórter e Valter Rocha como o policial que, coitado, é explodido junto com o jardim da casa! Diversão pura!


Aplausos mais uma vez para os produtores Norma Thiré, Eduardo Bakr e Tadeu Aguiar. Espetáculo de excelente gosto, oportuno, bem criado, bem dirigido, que justifica os patrocínios recebidos. Além da atualidade do tema, trazer João Bethencourt para os palcos é sempre um tiro certo.  Pra você que aprecia o bom teatro, aquele que nos orgulha ver, vá já para o Teatro Clara Nunes e não perca esta oportunidade.


sábado, 7 de setembro de 2013

O JARDIM SECRETO


Morávamos na Tijuca, mais precisamente nos arredores da Praça da Bandeira. Ao lado do Instituto de Educação. A casa da frente era do tatatatatatatataravô que construiu no terreno de trás um pequeno prédio de 3 andares para os filhos homens. A vida seguiu e ali, quando me dei por gente, residiam 3 novas famílias aparentadas. Um grande páteo à frente nos permitia brincar de queimado, piques, vôlei, tomar banho de sol e de mangueira dentro da Piscina Toni. Logo ao lado, uma antiga casa de pedra, com um grande terreno atrás, era nossa vizinha. Recheada de mistérios. Lembro que ali havia bananeira, mangueira, jaqueira, sapotizeiro e diversas outras plantinhas menores. Os moradores eram idosos: Totí, Seu Barcelos e Dona Hilda. As crianças (nós) deixavamos a bola cair no jardim vizinho e a gritaria era alta: “Por favor, nos devolva a bola!” Sempre a mesma história. Totí morreu. Dona Hilda, a rabugenta, ameaçava furar a bola sempre. Tínhamos medo dela. Mas nada impediu que, ao crescermos um pouco, começassemos a pular o muro proibido. Era um universo à parte. Criávamos histórias sobre aquela casa sombria. Um jardim secreto. Dona Hilda também partiu, deixando um alívio para as bolas, mas Seu Barcelos continuava lá. Passado um tempo, não mais brincávamos de bola o tempo todo. A casa do lado foi ficado cada dia mais sombria, coberta pelas folhas e frutos das árvores que cresciam cada vez mais. Nosso jardim secreto era aquele. Impossível saber as histórias reais que ali viviam.

Está em cartaz no CCBB, Teatro 2, o espetáculo infantil O Jardim Secreto, inspirado na obra de Frances Hodgson Burnett. Adaptado para o teatro por Renata Mizrahi, a peça conta a história de uma menina que vai passar férias na casa sombria do tio. Lá, conhece uma governanta durona que impõe regras para a sua estada. Trabalhando para a família, o jardineiro arruma as flores com prazer. A menina logo se aproxima dele para conversar. O que também é proibido, mas quem se importa? Ele revela a existência de um primo, trancado no quarto, pois é bem “doentinho”. Ela parte para ver o primo e encontra um garoto mimado que acredita ser importante ficar em casa, na cama. Seus músculos, atrofiados por conta da inércia, impedem que ele alce voos, cresça, viva. Uma outra regra é informada: não entre jamais no jardim da propriedade. Xodó da tia, o local foi trancado pelo tio quando a esposa morreu. Pronto. Basta isso para que a menina, com ajuda do jardineiro, se interesse em vasculhar aquele espaço em busca de aventuras. E, de quebra, convença o primo doentinho a se aventurar naquele misterioso universo. Daí em diante, veja a peça e descubra o que acontece.

A direção é de Rafaela Amado. Caprichosa diretora, Rafaela constrói um caminho a ser percorrido pelas crianças e adultos com cumplicidade. Ficamos com ódio da governanta, adoramos o jardineiro, nos surpreendemos com móveis falantes. A abertura da peça é linda. A menina surge em cena do nada, num passe de mágica! Rafaela, com a ajuda do cenário, cria pequenos espaços no palco limitando cada canto a um cômodo da casa, e do jardim. Muito bem apoiada na equipe técnica e na direção de movimento de Mariana Baltar. As crianças ficam vidradas.

O cenário de Analu Prestes é uma instalação! Lindo, de excelente gosto, caprichado nos detalhes, consegue delimitar espaços, brincando com cortinas pintadas com motivos florais que se abrem e fecham, com cortinas de teatro, para revelar uma cama, um sofá e uma poltrona. A projeção no fundo do palco ajuda a contar a história e a deixar todo o ambiente mais colorido. O figurino de Ney Madeira é maravilhoso. Não existe outra expressão. Premo Zilka Salaberry de figurino já para ele. A luz de Luiz Paulo Nenen auxilia nas passagens de tempo, localização dos cômodos e na importância de cada cena. Tudo muito bem abraçado pela trilha sonora original de Marcelo Neves.

Os atores contam a história com dedicação: Camila Amado, com a governanta arrogante, nos dá um ódio mortal! Aplausos! João Velho, o jardineiro, super carismático, é o xodó das crianças. Todos querem abraçá-lo ao fim da peça. Arlindo Lopes, o menino/primo doentinho, capricha na construção e na evolução do menino ao longo do espetáculo. Elisa Pinheiro é a menina que vai mudar toda a vida daquela casa com sua visita de férias. Elisa hipnotiza com sua composição e torcemos para que tenha momentos felizes na casa. Luiz Henrique Nogueira traz a força do pai protetor, medroso de perder mais alguém que ama. E assim nos mostra a mudança de seu personagem do início para o término da história. Grasiela Müller, com seu poderoso acordeom, nos faz entrar no mundo do faz de conta quando está representando uma simples poltrona.


Claro que a história e o espetáculo não se resumem a este texto acima. Escondi coisas importantes para que você, leitor, se anime e vá ao CCBB assistir ao espetáculo. Soube que depois irão para o Teatro Fashion Mall e não perca. Leve as crianças sim. Espetáculos como este, de muito bom gosto, recheado de talentos individuais e que trata todas as crianças como seres pensantes, está em falta. É necessário formar esta plateia com espetáculos qualificadíssimos como este. Mais um sucesso da Turbilhãozinho de Ideias que co-produziu a peça com a Focus Films.


Para terminar, uma música de Chico Buarque, na voz de Nana Caymmi – Até Pensei – que fala de um bosque que um muro alto proibia... http://www.youtube.com/watch?v=-yB6FLkJg1A