terça-feira, 13 de agosto de 2024

EM NOME DA MÃE


Maria, mãe de Jesus. A Santa, a mãe de Deus. Aquela que tem vários nomes na terra, milhares de igrejas. A nossa senhora. Nossa. De todos. Virgem santa. Padroeira. A bendita entre as mulheres pois gerou o filho de Deus. Isso tudo nós já sabemos. Quem não sabe a oração “Ave Maria”? Sabemos que tem mais aves-marias no terço do que pais-nossos. Isto mostra o poder da oração de Maria? Não. Isso mostra que pra cada um pai-nosso, são necessárias 10 aves-marias... Cadê o equilíbrio de forças? 

A bíblia foi escrita por homens. E ao longo do tempo, homens modificam a história, traduzindo, com releituras. Existe 5 bíblias diferentes: a judaica, a hebraica, a católica, a ortodoxa e a protestante. Todas escritas e traduzidas por homens. Onde está a voz feminina na história de religião?

Vivemos – graças a força feminina – em uma época em que as mulheres estão começando a ter seus direitos mais respeitados. São recentes – comparadas à existência humana na terra - as conquistas das mulheres, como a Lei Maria da Penha, o voto feminino, o fim da absolvição dos homens “em nome da honra”, só pra citar algumas. 

Está em cartaz – apenas 8 apresentações – no Teatro Adolpho Bloch, o monólogo “Em Nome da Mãe”. A concepção, dramaturgia e atuação de Suzana Nascimento. Com base no livro de mesmo nome, do autor Erri de Luca, a peça nos mostra o lado de Maria, a mulher, a cidadã, aquela que, ainda jovem, não casada e que, por um anjo que veio do céu, se torna grávida de uma hora pra outra. A mulher tem que enfrentar o medo de ser mãe, a desconfiança da vizinhança, o susto do parceiro, e, além disso tudo, a preocupação com a justiça, que condena a mulher sempre que o assunto é traição.

Suzana nos traz um texto bem escrito, atual, e que mistura a atriz que o interpreta, a mulher moça Maria e a mãe de Jesus pós nascimento. Destaque para a carta que lê, juntando todos os tipos de mães de todas as religiões, num mesmo texto (a carta), trazendo referências das diversas religiões que têm mulheres como seres fortes. Lindo momento da peça. Suzana nos faz ver o lado da mulher, da moça, que não pediu para ser abençoada, que não foi adultera na relação, que não sabe com cuidar de uma criança e que implora para que seu filho, ao nascer, seja apenas um homem comum, do povo.

No palco temos a direção de arte, figurino e cenografia de Desirée Bastos e Jovanna Souza, que preenchem os espaços com tecidos de voil para dar profundidade e também servir de tela para projeções, com figurinos pendurados, as diversas faces da mulher, muitos potes de barro, mesa e cadeiras que parecem ser de uma casa antiga e ao mesmo tempo de fazenda. Ótima a ideia de usar tachos de barro como a barriga de Maria que vai crescendo.

A luz de Ana Luzia Molinari de Simoni e Hugo Mercier, criam desertos, céu, cometa... sabem bem o que estão fazendo. Criam focos de luz que transformam Maria em uma santa só com a luz. Frederico Puppi é um mago na trilha sonora. 

Miwa Yanagisawa empresta seu talento para conduzir a peça usando todo o palco disponível, sendo decisiva a sua cena final em que os objetos de cena “vão sendo tirados de Maria”, assim como seu filho foi sumariamente tirado da mãe e transformado em filho de Deus. Miwa dá à cena final a importância deste espetáculo. O fato de tudo ser retirado mostra o imenso “roubo” e vazio que Maria sofreu por ser descreditada como mulher e, principalmente, como a mãe. Maria deixa de se tornar a mulher que enfrentou uma vida em nome de seu filho para ser “apenas” a barriga de aluguel do filho – homem – de Deus – homem. Destaque ainda para a direção de movimento de Denise Stutz.

Além de idealizar e escrever, Suzana Nascimento atua como Maria. Impecável trabalho de uma atriz que estudou bastante o assunto, a mulher, a história cristã, para dar vida, mesmo sem ter tido seus próprios filhos, à mãe da figura mais importante do imaginário religioso. Suzana está segura, firme, emotiva e atual neste espetáculo. Ao misturar-se como atriz e Maria, mudando em pequenos gestos de olhares e mover de cabeça, Suzana traz para o público a verdade cênica e a verdade da mulher. Defende a personagem e sua própria vida, fazendo desta peça um alerta, um relato, uma constatação de que, apensar das conquistas, ainda há muita estrada para que mulheres estejam de igual para igual com os homens. Um trabalho impecável.

“Em Nome da mãe” é de grande importância para o teatro. Falar de mulher usando a mãe de Jesus como âncora cênica faz com que todas as mulheres se sintam defendidas e homenageadas. Da evangélica à umbandista. Da católica à espírita. Todas são Marias. A peça está no limite entre a religião e a humanidade, sem ser agressiva. 

Corram para assistir “Em Nome da Mãe”, se solidarizar com Maria, abraçar Suzana e Miwa, aplaudir de pé este trabalho impecável de entrega, denuncia e respeito. Viva Maria, Viva o Teatro!

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

CLARA NUNES - A TAL GUERREIRA - MUSICAL

Quando o coração para de bater, o cérebro para de ser irrigado com sangue, o corpo para de funcionar por completo, aí o decreto baixa: fim da vida. O que sobra, ainda, é a energia entre as moléculas, prótons e elétrons que, mesmo com o corpo sem o suspiro da vida, persistem e vão se desplugando até que tudo vira pó. Isso já sabemos. Mas... e a consciência? O que se passa no cérebro sem irrigação? Pra onde vão todas as memórias que construímos?

A tal vida após a morte é uma crença sem comprovação científica (Há controvérsias). Para me acalmar, prefiro crer na energia que une prótons e elétrons e esta é, sim, interminável, mesmo que cada partícula esteja em outra molécula, outro corpo, outra vida. 

Supondo que, em teorias religiosas, exista um limbo, um espaço entre a vida terrena e o almejado céu, onde estaremos sentados ao lado de Deus Pai todo poderoso, é neste limbo, neste intervalo, onde o filme da sua vida irá passar: “Olha, Fulano, aqui você cometeu um erro, aqui você acertou na mosca, lembra de Sicrano? Sabe aquela história da vizinha?”. O espaço-tempo entre a morte e a vida eterna é um período entre o “acostumar-se”, “explicar-te” e "siga em paz"! Filosofia numa hora dessas?

Posto isto, não é que o time Jorge Farjalla, Irmãos Griesi (Daniella e Marco), Felipe Lima e Vanessa da Mata de juntaram para criar uma história, um musical, sobre este espaço-tempo de Clara Nunes? Pois creia neste blogueiro: “Clara Nunes – a Tal Guerreira – Musical” é daqueles espetáculos que entram pra história, pois fogem aos padrões, às obrigações, às regras do que se tem visto por aí no teatro.

Com texto poético de André Magalhães e Farjalla, a peça, ora contada em verso, ora em prosa, traz os Orixás protetores de Clara Nunes, sua mãe e seu pai protetores, como guias de sua breve jornada neste espaço-tempo. Abrem seus caminhos, indicam memórias, fazem com que Clara se acostume com sua nova forma, relembre seu passado e entenda que seu caminhar na Terra finalizou com louvor. Objetivo atingido, Clara segue em direção à luz maior, ao esplendor da vida, simbolizado pela água da Portela sobre sua cabeça no fim da peça.

Começando pelo super-branco cenário do Marco Lima, profissional que me inspira muito, o espaço-tempo bebe na fonte de carros alegóricos e uma casa de bambas (onde fica a banda). Lindo demais ver a cortina de tiras de pano, de diversas alturas, preenchendo, como nuvens, a parte superior do palco. Direção de arte de Kelson Spalato. 

Temos o figurino de Luiz Cláudio Silva e Farjalla, abusando dos detalhes e das referências das religiões africanas, contrastando com as cores dos artistas. Destaque pro único vestido preto usado por Bibi Ferreira. Sensacional a ideia de vestir Vanessa da Mata em cena, trocando roupa e peruca aos olhos do público. Visagismo de Simone Momo. 

Cesar Pivetti traz aquela luz belíssima de sempre, que já é sua marca habitual. Neste espetáculo, Pivetti – sabendo ou não – usa os diferentes materiais das roupas do elenco para fazer cores diferentes no figurino. Tem uma cena, toda em azul que as saias e calças ficam um azul turquesa e as camisas um azul bebê. É de uma genialidade ímpar, pois ele usa os refletores de led para colorir o mesmo figurino com cores diferentes. Nunca vi isso.

Fernanda Maia na direção musical nos oferece o que há de melhor em arranjos e qualidade da orquestra em cena, ainda usando instrumentos para a trilha sonora. Desenho de som de Bruno Pinho. 

Gabriel Malo coreografa tudo com harmonia: nos sambas, nas músicas das religiões africanas, no gestual de Clara Nunes incorporado por Vanessa da Matta, e na expressão corporal de Bibi Ferreira por Carol Costa.

Vanessa da Mata é muito guerreira e forte ao dar corpo e voz à Clara Nunes, mas é exatamente por isto que a proposta e a ideia são excelentes. Os jovens conhecem Vanessa, os “meia idade” conhecem Vanessa e lembram de Clara, os “idade avançada” conhecem Vanessa e Clara Nunes. Sua emoção, potência vocal nas canções, seu corpo emprestado, sua entrega e coragem, somados à sua verdade em cena, fazem com que Clara Nunes viva através de sua presença. Interpretar Clara Nunes no teatro, no cinema ou na televisão, é saber que a energia e a força de Clara Nunes estarão presentes em cena. E Vanessa da Mata traz esta energia, este gigantismo, esta entidade para o palco.

Com excelente atuação, Carol Costa revive Bibi Ferreira em todos os sentidos: corpo, voz, alma e energia. Memorável. Temos os homens da vida de Clara: André Torquato (Aurino), Caio (Adelzon) e Renan Mattos (Poeta). Como seus protetores, Gui Leal (Ogum), Reynaldo Machado (Èsù), Fábio Enrique (Mané Serrador). Como mães e protetoras, Ananza Macedo (Nanã) e Leilane Telles (Iansã). No excelente corpo de atores e cantores temos ainda Bel Lima, Paulo Viel, Jessé Scarpellini, Vitor Vieira, Edmundo Vitor, Preta Ferreira, Larissa Grajauskas, Flavio Pacato, Jade Ito, Elix e Jesus Jadh.

Jorge Farjalla sempre com sua visão diferenciada sobre a arte cênica, sobre como deve ser um espetáculo, nos traz mais uma direção inovadora. Como assim, uma cantora fazer peça musical de teatro? Ele faz. E faz arrepiando a plateia desde o número inicial até o último acorde. Farjalla sabe que se seguir o que todo mundo faz, ele não se destaca. E o que ele propôe então? Sair da curva, inovar, valorizar o espetáculo, a arte pontuada no texto, no figurino, na música, na dança. Cada arte em separada de seu espetáculo importa. Beleza, detalhes e visual. Tudo para que a plateia se emocione, levando ao público a força de sua criatividade e sua arte. Imagino o pensamento deste mago do teatro, que ainda será reconhecido como inovador, criativo, cativante. Farjalla assina sua própria marca no teatro brasileiro. Saravá!

Daniella e Marco Griesi têm formado um time excelente com Farjalla, acreditando nas suas propostas culturais e isto só faz com que se solidifiquem como grandes produtores que são. Soma-se a eles Felipe Lima, jovem produtor que só coloca seu nome em projetos de excelente qualidade.

Ufa. Um texto gigante para quem estava há muito tempo sem postar neste espaço, sem escrever sobre teatro. Pois “Clara Nunes - A Tal Guerreira”, com Vanessa da Mata, merece todo este aplauso, este texto-agradecimento, pelo que apresentam no Teatro Bravos. Imperdível, memorável e apaixonante. Viva Clara Nunes! Viva o Teatro Brasileiro!