A humanidade está louca. E dividida. Em três partes, não necessariamente
iguais. Os que pensam no coletivo como forma de melhorar a vida, os que pensam
em enriquecer e fazem do coletivo sua força escrava e os que vivem sem lado
nenhum e tentam sobreviver da melhor forma possível. É como diz o prólogo de
Antígona, escrito por Millôr Fernandes “...Ainda não acreditamos que no final /
O bem sempre triunfa. Mas já começamos a crer, emocionados, /
Que, no fim, o mal nem sempre vence. O mais difícil da luta / É descobrir o
lado em que lutar.”
Pois eu escolhi lutar ao lado daqueles que pensam no
coletivo como salvação para a humanidade. A visão “outro lado”, na briga do “nós
contra eles”, acha que o lado de lá é louco, é lixo, é decomposto. E não é uma
visão exclusiva do lado de cá, do lado que pertenço. A visão dos “do lado de lá”
também pensa que nós, os progressistas, os coletivistas, estamos loucos, decompostos,
lixo.
Pensamentos numa hora dessas?
Em julho de 2012 chegou ao Brasil o livro “Teatro Decomposto
ou o Homem-lixo”, da obra de Matéi Visniec publicada em francês. Matéi Visniec é
dramaturgo e teatrólogo. Meu primeiro contato foi na montagem de O Espectador,
no teatro Poeira, com consagradas atrizes brasileiras. Paixão imediata pelo
texto.
Agora, está em cartaz, no Teatro Laura Alvim, da casa que
leva também o nome, o espetáculo O Homem Decomposto. A peça tem alguns dos
monólogos e diálogos contidos no livro “Teatro Decomposto ou o Homem-Lixo” e, diz
a apresentação do livro “(...) não se contenta em construir uma ordem e um
retrato, e sim em tocar diretamente a matéria viva do cotidiano”. Interpretei esta
frase como um “vamos mostrar a humanidade de uma forma desconstruída e decomposta,
tal qual olhamos para aquela turma do lado de lá, que reza para pneus e coloca
celular na cabeça chamando os ET’s... Para o espetáculo, a tradução utilizada é
de Luiza Jatobá, a tradutora do livro.
Ary Coslov é o diretor. Quando se abrem as cortinas, temos
uma representação da Santa Ceia, de Michelângelo e a cena por si só já chama a atenção
e nos induz a acreditar que o homem é o mesmo desde os primórdios, épocas sem
tecnologia, onde o “retrato” (a obra, a foto, a imagem) era captada por alguem
que já sabia da decomposição e lixo do humano (cada qual a sua época...) Ary nos
traz uma direção extremamente moderna, ágil, divertida e criativa. Enlouquece
os atores nos seus monólogos e os descansa com direito até água nas cadeiras
laterais. Referências musicais, visuais e jornalísticas estão à disposição do
público. Como a já citada reza para ETs com telefones na cabeça, o que leva a
plateia a entrar no jogo proposto. Um trabalho belíssimo de direção unitária,
de conjunto, de imagens ditas e sublinhadas, delicadas, elegantes e seguindo à
risca a proposta de Matéi “monólogos que convidam a construir um conjunto, o
autor quis impor ao diretor uma única restrição: a liberdade absoluta”. Ary
está livre para criar, porém rígido no texto. Os atores seguem linha por linha,
palavra por palavra e está aí a beleza desta direção: movimento e palavra.
Colaborações impecáveis da equipe técnica: Wanderley Gomes
nos figurinos macacão (operários da arte!), a luz sempre perfeita de Aurélio de
Simoni, a trilha sonora de Ary Coslov e Gabriel Fomm, a direção de movimento de
Lavinia Bizzotto e Alexandre Maia.
O mais que talentoso elenco, impecáveis nas falas, na
composição de personagens, na postura cênica, no amor à arte, respeito ao colega,
seguem metodicamente as ordens do autor e do diretor: liberdade absoluta,
embora vigiados!
Guida Viana (é sempre um prazer e um aprendizado vê-la
atuando) nos faz gargalhar e emocionar com O Homem Cavalo e a vendedora do
produto Lavagem Cerebral.
Dani Barros (cada dia melhor, mais completa!) nos envolve
com borboletas imaginárias de A Louca Tranquila e divide com a plateia o prazer
deste texto.
Marcelo Aquino nos faz perder o fôlego com O Corredor e se compadecer com o homem das maqunias que cata corpos.
Junior Vieira (excelente em todos os momentos que atua!) nos
faz viver como um Homem da Maçã e o Revolucionário (Voz na luz ofuscante)
E, não menos importante, o gigante Mário Borges com sua defesa
de O Homem do Círculo, que “abre os trabalhos” dos monólogos, emocionando e
criando imediata empatia do público. E encerra com chave de ouro num grito silencioso
dentro do círculo construído no inicio da peça, fechando as pontas, “linkando” tudo
que foi dito.
Teatro é o nome que se dá a O Homem Decomposto. Tudo que se
pode localizar em livros de arte dramática, dicionário de teatro, estão em
cena. Todos os itens existentes em todas as escolas de teatro pelo país estão
nesta peça. É obrigatório cada estudante, cada amente do teatro, cada
apaixonado por texto e oratória assistir ao espetáculo, pois envolve o
espectador de tal maneira, e com tanta subjetividade e subtextos, que fica
claro o que se quer mostrar: a que ponto a humanidade é capaz de chegar – e se já
não estivermos à beira do “chegamos”...
O Homem Decomposto tem comédia, tem ironia, tem interpretação
de texto, tem sabedoria, tem arte, tem trabalho de grupo, tem amor envolvido. A
direção de produção é de Celso Lemos com Bárbara Montes Claros na produção
executiva. Um espetáculo de altíssimo nível, inteligente e sábio. Desejo mais
que vida longa, que seja assistido por muitos, assimilado por todos. E, quem sabe,
num futuro, possamos deixar de ver o outro lado como homens descompostos e nos
tornemos uma só sociedade, coletiva, una e progressista. Aplausos de pé. Viva o
Teatro!