sábado, 15 de novembro de 2025

O HOMEM DECOMPOSTO

A humanidade está louca. E dividida. Em três partes, não necessariamente iguais. Os que pensam no coletivo como forma de melhorar a vida, os que pensam em enriquecer e fazem do coletivo sua força escrava e os que vivem sem lado nenhum e tentam sobreviver da melhor forma possível. É como diz o prólogo de Antígona, escrito por Millôr Fernandes “...Ainda não acreditamos que no final / O bem sempre triunfa. Mas já começamos a crer, emocionados, /

Que, no fim, o mal nem sempre vence. O mais difícil da luta / É descobrir o lado em que lutar.”

Pois eu escolhi lutar ao lado daqueles que pensam no coletivo como salvação para a humanidade. A visão “outro lado”, na briga do “nós contra eles”, acha que o lado de lá é louco, é lixo, é decomposto. E não é uma visão exclusiva do lado de cá, do lado que pertenço. A visão dos “do lado de lá” também pensa que nós, os progressistas, os coletivistas, estamos loucos, decompostos, lixo.

Pensamentos numa hora dessas?

Em julho de 2012 chegou ao Brasil o livro “Teatro Decomposto ou o Homem-lixo”, da obra de Matéi Visniec publicada em francês. Matéi Visniec é dramaturgo e teatrólogo. Meu primeiro contato foi na montagem de O Espectador, no teatro Poeira, com consagradas atrizes brasileiras. Paixão imediata pelo texto.

Agora, está em cartaz, no Teatro Laura Alvim, da casa que leva também o nome, o espetáculo O Homem Decomposto. A peça tem alguns dos monólogos e diálogos contidos no livro “Teatro Decomposto ou o Homem-Lixo” e, diz a apresentação do livro “(...) não se contenta em construir uma ordem e um retrato, e sim em tocar diretamente a matéria viva do cotidiano”. Interpretei esta frase como um “vamos mostrar a humanidade de uma forma desconstruída e decomposta, tal qual olhamos para aquela turma do lado de lá, que reza para pneus e coloca celular na cabeça chamando os ET’s... Para o espetáculo, a tradução utilizada é de Luiza Jatobá, a tradutora do livro.

Ary Coslov é o diretor. Quando se abrem as cortinas, temos uma representação da Santa Ceia, de Michelângelo e a cena por si só já chama a atenção e nos induz a acreditar que o homem é o mesmo desde os primórdios, épocas sem tecnologia, onde o “retrato” (a obra, a foto, a imagem) era captada por alguem que já sabia da decomposição e lixo do humano (cada qual a sua época...) Ary nos traz uma direção extremamente moderna, ágil, divertida e criativa. Enlouquece os atores nos seus monólogos e os descansa com direito até água nas cadeiras laterais. Referências musicais, visuais e jornalísticas estão à disposição do público. Como a já citada reza para ETs com telefones na cabeça, o que leva a plateia a entrar no jogo proposto. Um trabalho belíssimo de direção unitária, de conjunto, de imagens ditas e sublinhadas, delicadas, elegantes e seguindo à risca a proposta de Matéi “monólogos que convidam a construir um conjunto, o autor quis impor ao diretor uma única restrição: a liberdade absoluta”. Ary está livre para criar, porém rígido no texto. Os atores seguem linha por linha, palavra por palavra e está aí a beleza desta direção: movimento e palavra.

Colaborações impecáveis da equipe técnica: Wanderley Gomes nos figurinos macacão (operários da arte!), a luz sempre perfeita de Aurélio de Simoni, a trilha sonora de Ary Coslov e Gabriel Fomm, a direção de movimento de Lavinia Bizzotto e Alexandre Maia.

O mais que talentoso elenco, impecáveis nas falas, na composição de personagens, na postura cênica, no amor à arte, respeito ao colega, seguem metodicamente as ordens do autor e do diretor: liberdade absoluta, embora vigiados!

Guida Viana (é sempre um prazer e um aprendizado vê-la atuando) nos faz gargalhar e emocionar com O Homem Cavalo e a vendedora do produto Lavagem Cerebral.

Dani Barros (cada dia melhor, mais completa!) nos envolve com borboletas imaginárias de A Louca Tranquila e divide com a plateia o prazer deste texto.

Marcelo Aquino nos faz perder o fôlego com O Corredor e se compadecer com o homem das maqunias que cata corpos.

Junior Vieira (excelente em todos os momentos que atua!) nos faz viver como um Homem da Maçã e o Revolucionário (Voz na luz ofuscante)

E, não menos importante, o gigante Mário Borges com sua defesa de O Homem do Círculo, que “abre os trabalhos” dos monólogos, emocionando e criando imediata empatia do público. E encerra com chave de ouro num grito silencioso dentro do círculo construído no inicio da peça, fechando as pontas, “linkando” tudo que foi dito.

Teatro é o nome que se dá a O Homem Decomposto. Tudo que se pode localizar em livros de arte dramática, dicionário de teatro, estão em cena. Todos os itens existentes em todas as escolas de teatro pelo país estão nesta peça. É obrigatório cada estudante, cada amente do teatro, cada apaixonado por texto e oratória assistir ao espetáculo, pois envolve o espectador de tal maneira, e com tanta subjetividade e subtextos, que fica claro o que se quer mostrar: a que ponto a humanidade é capaz de chegar – e se já não estivermos à beira do “chegamos”...

O Homem Decomposto tem comédia, tem ironia, tem interpretação de texto, tem sabedoria, tem arte, tem trabalho de grupo, tem amor envolvido. A direção de produção é de Celso Lemos com Bárbara Montes Claros na produção executiva. Um espetáculo de altíssimo nível, inteligente e sábio. Desejo mais que vida longa, que seja assistido por muitos, assimilado por todos. E, quem sabe, num futuro, possamos deixar de ver o outro lado como homens descompostos e nos tornemos uma só sociedade, coletiva, una e progressista. Aplausos de pé. Viva o Teatro!