domingo, 19 de outubro de 2025

O LEGADO

Ainda não tive contato direto com a obra de Caio Fernando Abreu. Apesar de ter dois livros dele em casa, não os li, ainda. Ok, admito esta a falha de caráter de leitor... Com justificativas, me defendo. Minha paixão por romances policiais é intensa. Descobrir o assassino me tira da vida real assoberbada e atribulada. Então, Caio Fernando Abreu foi ficando ali, presente porém na espera pelo dia de ser selecionado para habitar a cabeceira da cama, local onde os livros da vez dormem ao meu lado.

Os anos 80 e 90 são marcados pela a epidemia da AIDS que tomou conta do mundo e matou um bocado de gente. Entre elas: Lauro Corona, Sandra Bréa e Renato Russo. Cazuza fez questão de que acompanhássemos seu dia a dia e sua luta. Madonna entrou na defesa dos portadores, Princesa Diana mudou a história ao abraçar doentes no hospital. O filme Filadélfia tomou as telas do mundo abrindo espaço para o assunto. A médica Márcia Rachid lançou Sentença de Vida em 2020 contando histórias vividas por ela em seus atendimentos, desde a chegada do vírus até o acompanhamento de tratamentos. O livro virou peça em 2023 pelas mãos de Gilberto Gawronski. E Caio Fernando Abreu também foi uma das milhares de vidas ceifadas.

Está em cartaz no teatro de arena do SESC Copacabana, O Legado. Escrita e dirigida por Renato Farias, o espetáculo é um encontro de três gerações de homens gays e as relações com a AIDS. Como aquela epidemia afetou e afeta ainda hoje o mundo. O que Caio Fernando Abreu nos ensinou sobre a forma de amar de sua época, e como seus escritos reverberam até hoje, é o seu legado. E a peça conta algumas histórias de amor, relações que podem ser saudáveis mesmo convivendo com o vírus, a sexualidade nos dias de ontem e de hoje e as relações entre a geração que viu amigos partirem e a geração atual que sabe das histórias, mas não viveu o medo e as partidas. Numa mistura de ficção com realidade, o texto parte da encenação de peça “Pela Noite” (texto de Caio Fernando Abreu) e as cartas trocadas entre o ator que propôs a montagem há 30 anos e agora, nesta nova montagem que é uma celebração dos 30 anos da Companhia de Teatro Íntimo.

O texto é bem dinâmico, ágil, atual, bem pensado e escrito com qualidade. Os diálogos rápidos tem passagens bem emotivas sem cair no óbvio ou no melodrama. É muito bom ver o texto do Renato Farias sendo dito numa arena repleta de pessoas, pois o texto comunica, informa, exemplifica, construindo uma narrativa e uma carpintaria teatral que leva o público a ficar grudado no que está sendo dito.

É também do proprio Renato a direção da peça. E é excelente. Com várias cenas caprichadas, tanto de amor, quanto de brigas, entradas triunfais de personagens, discussões, tudo é bem ensaiado e representado. Renato se preocupa com a dicção do elenco e conseguimos entender tudo o que todos estão dizendo, coisa rara hoje em dia! A cena dos três amigos de geração 80 que ora são representados pela geração 2000, juntos, os 9 em cena, ora um, ora outro, mudando as falas, mas mantendo personagens, no momento em que contam os motivos pelos quais – os da geração 80 – evitam tocar no assunto AIDS, é digna de prêmio! Renato também aproveita tudo o que o mundo gay dispõe e apresenta nos dias de hoje: shows de drag, vogue, drogas, sexo grupal, amores medrosos, desafios, invejas, corpos sarados versus corpos normais, enfim, todo o universo gay está sendo muito bem representado nesta história-legado-retrato. 

Orlando Caldeira assina uma direção de movimento perfeita para as épocas retratadas na peça, a disposição dos atores e seus movimentos corporais em todos os momentos. Um belíssimo casamento entre direção e direção de movimento.

A direção de arte de Thiago Mendonça nos mostra, na entrada do público, um monte de livros num centro de um gigantesco tapete vermelho, mas este monte se desfaz em pequenas partes que viram pufes com compartimentos secretos escondendo objetos de cena. Ótimo! O figurino de Ùga agÚ é bastante confortável e referencial. A marca Adidas das calças para todos mostra que, embora corpos diferentes, todos se juntam em algo que os faz iguais. Destaque para o figurino do show que Márcio Januário e Aleh Silva dão no palco, como se estivéssemos numa cena do seriado Pose. A luz de Daniela Sanches é belíssima, como sempre, e contribui imensamente nas cenas de sexo, brigas, dores e amores. Tudo isso abraçado pela trilha sonora de Diego Moraes.

O elenco de 9 atores: Dodi Cardoso, Márcio Januário, Renato Farias, Alain Catein, Orlando Caldeira, Thiago Mendonça, Aleh Silva, Gabriel Contente e João Manoel também está dividido por gerações diferentes, mas nada disso importa, pois todos, ao seu momento, têm espaço para dar o recado. E todos, todos, todos, estão totalmente entregues, seguros, com o texto na ponta da língua, sabem as entonações de cada palavra e como se comportarem cenicamente. São colegas e cúmplices neste espetáculo. Estão ali mostrando seus trabalhos individuais, mas o coletivo é quem ganha. São amigos encenando uma história de todos. São pedaços de um grupo social que ainda sofre separadamente com preconceitos e ataques e se defendem juntos, pois, sabemos que “nada é mais forte do que todos nós juntos”. Se pudesse dar um leve destaque, apenas indicar dois atores que me fizeram captar as atenções, digo que Dodi Cardoso e Thiago Mendonça fizeram meus olhos ficarem mais atentos e emocionados em algumas cenas, gestos e ações. 

Citei rapidamente o seriado Pose, que também abriu portas colocando pessoas trans como protagonistas de um seriado de grande impacto cujo tema é similar à peça. Mas é de Caio Fernando Abreu que vem a grande inspiração, pois, no fundo, no fundo, o que está se falando em cena é sobre amor, parceria, relações verdadeiras entre homens, parcerias de anos, cuja maior vontade e acerto é contar uma história que sirva para ontem, hoje e amanhã.

O Legado fala sobre todos os enfrentamentos de pessoas LGBTQIA+ e merece ser visto por aqueles que ainda resistem a acreditar que somos todos iguais perante a lei e que ninguém merece ser discriminado por qualquer que seja a sua condição. Então, vá já para o SESC Copacabana, engula seu preconceito, abra-se para uma história divertida, emocionante, inteligente e impecavelmente contada por esses 9 atores, pela equipe criativa, pela dramaturgia e direção e por uma produção da Bloco Pi Produções (com Damiana Inês na direção de produção e Wesley Mey e Alain Catein na produção executiva) de alto nível. Aplauso de pé. Viva o teatro!


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

DONATELLO

Alois Alzheimer, o psiquiatra que nomeou a doença que descobriu, está enterrado em Frankfurt, na Alemanha. Ele faleceu em 1915 e foi sepultado no cemitério de Westend. Eu estive lá em 2017 com Oliver Erb, amigo alemão, em um passeio – sim, alemães passeiam e se exercitam no cemitério – e mentalmente cumprimentei Alzheimer ao passar por seu jazigo.

A notícia é fresquinha: “O Alzheimer antes da memória falhar. Exames são capazes de detectar alterações biológicas que levam à doença e ajudar na prevenção. Os novos testes não detectam o Alzheimer diretamente, mas rastreiam alterações químicas associadas ao processo neurodegenerativo. (...) “O Alzheimer é responsável por 60 a 70% dos casos de demência, afetando (...) cerca de 1,5 milhão de brasileiros. Com o envelhecimento populacional, prevê-se que o número de casos triplique até 2050, tornando o diagnóstico precoce não apenas um avanço científico, mas uma necessidade de saúde pública.” (O Globo, 10/10/2025 – Receita de Médico – Ludhmila Hajjar).

Está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, quintas e sextas às 20h, o espetáculo Donatello. Vitor Rocha é o autor do texto, das letras e o ator da história sobre o momento entre o início da doença, a evolução, como ficam os familiares, e como isto impacta na vida de quem sofre com o mal e dos parentes próximos. A peça já começa falando sobre lembranças, memórias e recordações. Vitor busca apoio da plateia para palavras e nomes que marcam a vida de alguns espectadores. As lembranças vão surgindo em nós antes mesmo do inicio da história. E nos 5 primeiros minutos, eu já estava me controlando para não virar um vale de lágrimas ali mesmo, sem nem mergulhar no que viria a seguir.

O personagem principal começa como criança que sempre vai a uma sorveteria com o avô. Ambos têm no sorvete seu “alimento” favorito. E é justamente neste local de boas memórias e sabores que a doença se manifesta pela primeira vez. Ao entender a situação, dias depois, resolve ajudá-lo, não com a sua recuperação, mas não perder as suas memórias, lembranças. O que ele faz? Associa sabores de sorvete a lembranças boas. Assim, ao tomar aquele sorvete, daquele sabor, imediatamente se recordará do momento importante registrado e nominado. Memórias. 

Vemos o menino sofrer com a mudança do comportamento da família, principalmente do avô. Vemos o menino se tornar adolescente, adulto, começar a trabalhar, abrir mão dos estudos para cuidar do avô, ajudar em casa. A convivência com seu pai, que está sofrendo a mudança do pai dele (avô do menino) é tratada na peça de forma bonita e verdadeira. 

A que ponto, qual a quantidade de amor que temos e podemos doar para alguém em troca de nossa vida própria? O personagem se doa para o avô de uma forma tão humana e tão bonita que nos faz pensar o quanto ruim e desatentos somos com nossos pais, parentes, amigos, amores. 

A cada nova história vivida pelo personagem, a cada boa memória construída, um sabor de sorvete é associado a ela. 

O cenário, composto de móveis de madeira (mesa, cadeira, chapeleiro/cabideiro) é o necessário para contar aquela história. Ainda temos uma bicicleta que funciona muito para dar movimento e objetos/adereços de cena, com destaque para a mini-bicicleta que é uma lindeza! O figurino é parte integrante da história, pois o avô é representado por um casaco/capote. Sempre que o personagem pega aquele capote, sabemos que o avô está presente. Tanto o cenário quanto o figurino, não achei na ficha técnica o nome de quem assina, mas Batata Rodrigues assina a cenotécnica. Então, aplausos para você! Wagner Pinto assina uma iluminação certeira, com recortes e momentos de introspecção favoráveis ao desenrolar da história. Muito boa.

Vitor também criou as letras das músicas que completam o texto da peça. Criativas, divertidas e com um perfeito toque de espetáculos musicais, divide com Elton Towersey a ótima trilha sonora da peça, muito bem tocada por Felipe Sushi no teclado. Felipe também participa em alguns momentos da peça como elenco de apoio em perfeita sintonia com Vitor. O design de som é de Paulo Altafim.

Cabe à Victória Ariante a direção da peça. Victória cria ótimas marcas, usa todo o espaço cênico, aproveita os móveis, abusa da boa vontade do pianista! Mantém a forma doce e contida do menino ao longo de toda peça, mesmo o personagem se envelhecendo. A gente percebe que o menino ficou parado naquela sorveteria no dia do primeiro esquecimento do avô. Victória constrói o espetáculo antes do terceiro sinal e faz com que todos nós transbordemos de emoção durante e depois da peça. 

E Vitor Rocha, com sua atuação, nos apresenta e presenteia com um menino que acompanha o desenrolar da história sob os olhos do adolescente e do adulto. E isto passa para a plateia. Não sei se o objetivo era esse, ou se o mega carisma de Vitor Rocha nos faz acreditar que o menino da história é parte dele (do ator). Carisma e talento de um ator, autor e letrista que já já estará nas telas de cinema ou streaming, e ainda com espetáculos consagrados nos teatros brasileiros.

Vitor e Victória... Vitoriosos. (Trocadilho ridículo da piada de salão daquele tio do pavê...)

Donatello é um monólogo musical onde a emoção, a memória, o talento, delicadeza, afeto, descoberta e sensibilidade andam de mãos dadas. Confesso que tive que me segurar várias vezes para o choro não vazar pelos olhos. Mas por dentro, eu tava... E isto é um ótimo sinal. A peça toca, comunica, explica, envolve. Todos temos memórias e sentimos aquele medo de perde-las. O que somos sem nossas histórias, conhecimentos adquiridos, vivência, experiências guardadas? Meu segundo maior medo – altura sem proteção vence – é perder a memória. A peça usa o Alzheimer para falar sobre comportamento, conexões e como devemos usar e abusar de estar perto de quem escolhemos e nos escolheram para estar do lado.

Aplausos também para Lucas Drummond (diretor de produção) e Ana Paula Marinho (produtora executiva) que trazem esta beleza de espetáculo para o Rio de Janeiro, no ótimo Teatro Gláucio Gil. Sem sombra de dúvida, um dos melhores espetáculos que já passaram por esse palco. Emoção garantida, sentimentos renovados. Aplausos de pé. Viva o teatro!!


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

FUTURO

Qualquer texto escrito ontem já pode ser considerado “de época”. Escrever sobre o agora, o que vemos acontecer, sobre política, televisão, seriado, memes é uma forma de fotografar os acontecimentos. Parece óbvio. E é. Por isso mesmo que escrever sobre o agora, com a linguagem do agora e se manter atual é tão dificil. E é isso que o Leandro Muniz faz com a sua peça Futuro, em cartaz no Teatro Firjan SESI, no centro do Rio. Leandro está tão atual no que diz em cena, que seu espetáculo permanece, por um bom tempo, moderno e atual. Explico.

Futuro é um apanhado de situações divertidas onde um autor se propõe a revisitar um texto antigo e dar modernidade a este. E pede ajuda à inteligência artificial, ao algoritmo. Assim, ideias inusitadas surgem. Numa delas, o autor insere um prompt (é assim que chamamos uma “ordem” que damos a uma inteligência artificial) que busca misturar clássicos aleatórios de sucesso da dramaturgia, do cinema e da literatura, como por exemplo “Tietanic”, misturando Tieta com Titanic, sempre em busca do texto perfeito, do sucesso garantido.

Leandro também é o diretor e brinca consigo mesmo, ora como autor, ora como diretor, ora como personagem, se zombando e se confirmando. Como escrever uma peça de sucesso? Ele pergunta ao algoritmo. Este devolve uma peça onde mistura alguns dos sucessos atuais dos palcos brasileiros: Ficções (com Vera Holtz), Tom na Fazenda e King Kong Fran. Assim, entra em cena uma personagem de peruca loura com máscara de macaco e um balde de terra molhada. Quem assistiu às tres peças citadas aqui, vai sacar a piada do personagem. Não quero dar spoiler, mas tem vários trocadilhos entre memes, palavras da moda, como “prompt”, “bet”, “live”, “burnout”, “selfie”, “ozempic”... se misturando a Nelson Rodrigues e Shakespeare, só para citar alguns autores de sucesso.

É preciso destacar a cena em que o casal resolve lavar roupa suja, pedir desculpa um ao outro, através de prompts solicitados ao Chat GPT ou ao Gemini. O diálogo se dá assim: “escreva um texto onde eu peço desculpas a ele, mas sem ser piegas, porém mantendo a firmeza e uma paixão recolhida”. “Escreva um texto para ela, dizendo o quanto sinto sua falta, mas não deixe transparecer a minha inferioridade nem minha ansiedade”. E nós, plateia, sabemos exatamente o que sairia da Inteligencia Artificial e seria dito no palco. Mesmo sendo apenas prompt.

A busca pela perfeição, seja em corpos ou textos, nos já torna dependentes da Inteligência Artificial. Por falar nisso, você já deu bom dia para a sua favorita hoje? Apenas esta gentileza já consome energia e água.

No palco, o criativo cenário-luz ou a luz-cenário de Paulo Denizot dá o tom da modernidade e atualidade. O figurino de Ticiana Passos coloca os atores neutros e confortáveis. E Fabiano Kieger é sempre brilhante na trilha sonora e nas paródias.

Ainda na parte da direção, Leandro pega toda sua verve de humor acumulado com espetáculos brilhantes do passado e faz os atores de gato e sapato, se revezando em cena quase com esquetes curtos ao estilo “Ta no ar” onde pequeninas cenas se alternavam como se o telespectador estivesse com controle remoto mudando de canal. É importante destacar a parceria da direção com a direção de movimento (Carol Pires) e a assistência de direção (Adassa Martins).

O elenco é de amigos talentosos que merecem todo o aplauso caloroso. Bia Guedes, Dani Fontan, Márcio Machado, Victor Maia e Tulanih. Cada um, ao seu tempo, brilha e arranca gargalhadas. É impossível destacar uma ou outra cena de cada um. Eles aproveitam tudo! E se eu falar de uma cena, vai perder a graça quando você sentar na plateia para assistir. Então, aceite esta dica, já prepare sua mão para bater palmas sem fim para esses atores que são o suprassumo do humor carioca. Ótimos.

Voltando ao inicio confuso deste texto, a peça Futuro parece que fala de algum futuro próximo que irá acontecer, mas Leandro, elenco, equipe criativa, está falando do agora, do já. Este texto não vai envelhecer tão cedo. É dificílimo falar sobre o agora, nesta época em que tudo muda muito rapido. Ontem éramos só viciados em redes sociais, hoje somos dependentes da Inteligência Artificial para quase tudo. Ninguém faz uma busca no google. Já pede ao Chat GPT, Gemini, Grok ou outra de sua preferência, que faça logo uma lista. Desde lugares para visitar numa viagem até textos para uma monografia de fim de curso. A “I.A.” já faz tudo para nós. Mas... a que preço? Até quando vamos passar informações sem sermos dominados fisicamente pelas “I.A.’s”? Está certo chamar as “I.A.” no plural? Serão muitas ou todas serão uma só, nos dominando? Está ai a reflexão que o espetáculo Futuro deixa para nós. Para o já. Para o agora.

Um espetáculo importantíssimo para a cena teatral carioca, falando do futuro no presente, com uma qualidade técnica de alto nível. A produção é de Gabriel Garcia, com fôlego de algoritmo para manter o pé no chão diante de tanta criatividade.

Tenha fôlego e mente aberta para captar as milhares de referências que você verá no palco. Corra para o teatro e divirta-se muito! Viva o Teatro!!


domingo, 5 de outubro de 2025

O FORMIGUEIRO

Quem nunca ficou calado para escutar a briga no apartamento vizinho que atire a primeira pedra. Moro no último andar de um predio familiar onde a área de serviços dá para um vão interno do prédio e parece que o som sobe por ele. Escuta-se de tudo. Do assovio no banho ao barraco entre entes queridos e odiados. Abaixo de mim – e torço para não ser um leitor deste blog! – tem uma mãe que aguenta os destemperos da filha. Eventualmente a mãe cansa das barbaridades e revida. Páh! Não, não é um tabefe, é uma frase dita entre dentes rangidos que atingem a garota no seu ponto mais doloroso. E faz-se o silêncio no vão comum de áreas de serviço, banheiros e cozinhas.

Pois – prepare-se para a frase clichê – como a vida imita a arte (na verdade, arte é reflexo da vida), Thiago Marinho escreveu e dirige a peça O Formigueiro - em cartaz no teatro Gláucio Gil até 27 de outubro – que não pode e não deve ser resumido a um super-barraco, lavação de roupa suja entre irmãos. É muito mais que isso. É a vida real cheia de mentiras brandas que viram problemas graves, desentendimentos de berço, ciúmes disfarçados, fragilidades construídas, autocentrismos exacerbados. No aniversário da mãe, três irmãos se encontram para a comemoração. Outra irmã perde o voo e não chega. Histórias do passado sobem à tona e transbordam, se misturando com histórias presentes que complementam sofrimentos, marcas, dores e afetos mal resolvidos. O texto é ótimo. Mesmo. A construção da peça, que não é fácil, tem momentos de puro humor, dramas bem construídos, longos textos para os atores intercalados com diálogos e “triálogos” muito rápidos. É uma carpintaria bem pensada, onde um futuro desentendimento do meio da peça começa a ser construído na segunda fala do inicio do espetáculo. Técnico e sensível, o texto alterna entre problemas e soluções, acumula mistérios e tudo se resolve no fim, deixando o público ansioso por um novo encontro de todos.

Thiago também assina a direção, com supervisão de João Fonseca (que todos sabem, sou mega fã). Tudo pensado para valorizar as interpretações e o texto. Marcas naturais, não há nada gratuito ali. Desde a abertura da peça, onde a cadeira de rodas da mãe passa de mão em mão, até a presente-ausência da mãe, representada pelo xale e a cadeira de rodas; o vídeo das férias em Guarapari, a disposição do cenário, o figurino casual, a luz certeira, a trilha, o tom do elenco. Thiago, por ser autor, sabe a importância e a desimportância de cada cena e conduz o elenco por um caminho crescente de tensão e libertação de mágoas, sem deixar de mostrar que a cumplicidade daqueles irmãos é verdadeira. É destaque também a positiva parceria com a direção de movimento (Victoria Ariante).

O cenário (Victor Aragão e Clarah Borges) é interessante, pois nos ambienta em um apartamento porém com paredes de escadas independentes, umas mais altas, outras nem tanto, cujo simbolismo fica por conta da interpretação de cada espectador. Na minha doida imaginação, são as escaladas da vida de cada um ali presente. Caminhos que, ora altos, ora baixos, indicam os rumos que tomamos com nossas escolhas. O figurino (Luísa Galvão) é de bom gosto e bastante condizente com aquele momento. A iluminação (Felipe Medeiros) sabe o momento de auxiliar a comédia e deixar o drama mais forte. A trilha sonora (Ifátóki Maíra Freitas) mescla momento de tensão com uma única música conhecida por todos, o que faz o público sair cantando e entendendo tudo que foi mostrado ali.

Os quatro atores, Diego de Abreu (Cláudio Márcio), Lucas Drummond (Victor), Roberta Brisson (Joana) e Rodrigo Fagundes (Luiz) – em ordem alfabética – sabem muito bem como interpretar cada personagem. São atores que acreditam no que dizem, aceitam os sentimentos dos personagens e defendem suas causas com competência. Diego de Abreu é o marido que chega pelo meio da peça e muda a dinâmica do espetáculo trazendo mais humor e barraco para que a “a trama se adense”. Lucas Drummond começa como um personagem frágil, mas que, no desenrolar da peça, se mostra um dos mais sensatos, sensível e ciente da realidade entre os irmãos. Seu personagem vai num arco crescente de força e libertação, mas sem manter o respeito, o carinho e a raiva entre seus irmãos. Roberta Brisson, única mulher em cena, carrega o peso de ser mãe, filha, irmã e talvez a mais forte e sábia entre todos, mas sua força esconde uma baixíssima autoestima, com a vontade gigante de ser livre e viver sua vida, mas escondendo isso na tentativa de controlar a vida dos outros. Mesmo enquanto a sua vida está na beira no precipício. Rodrigo Fagundes, super conhecido por suas atuações em comédias e novelas, sempre no núcleo cômico, aqui tem a belíssima oportunidade de mostrar seu imenso talento em fazer um papel dramático, com todas as nuances disponíveis no texto. E ele aproveita tudo: desde o assoprar de uma colher de pau, brincando se deve ou não provar o strogonoff até a revelação de sua falência pessoal. É dura a vida de quem fica cuidando de parente com doença neurológica. Rodrigo aproveita este personagem para mostrar, mais uma vez, que é brilhante. O quarteto e o conjunto são ótimos.

Segredos de família, histórias que surgem e que não sabemos, sentimentos guardados ao longo de muitos anos, desgostos e invejas. Todos conhecemos alguém que tem, ou mesmo você, caro leitor, deva ter alguma coisa aí guardada contigo. O Formigueiro faz com que a plateia seja aquele vizinho escutando o barraco do lado, olhando pela janela da área de serviço o desenrolar do assunto gritado, sendo cúmplice de tudo aquilo que é dito no palco e apoiando mentalmente ora um, ora outro personagem. E no momento seguinte criticando a ação daquele mesmo personagem que há pouco havia apoiado. Céus! Como somos problemáticos!

O Formigueiro é um exemplo de espetáculo que prende o público, dialoga imediatamente com todos os presentes, reúne uma equipe extremamente competente e apresenta um teatro da melhor qualidade. Imperdível em todos os sentidos. É como se estivéssemos participando de uma terapia coletiva, uma constelação familiar ao vivo e à cores, onde podemos sair do teatro e imediatamente pensar em fazer uma análise de nossa vida familiar e como nos comportamos diante dos parentes.

Corra para o teatro. O Formigueiro chega para se somar à safra de espetáculos de alta qualidade com profundidade, ótimo elenco, equipe criativa competente, texto e direção de grande sabedoria. Aplausos de pé. Viva o teatro!!