sexta-feira, 15 de outubro de 2010

DEUS DA CARNIFICINA

Já dizia irmã Selma, personagem de “Terça Insana”: “eu quero muito abrir um orfanato, porque cuidar de criança é uma coisa que relaxa a gente”. Claro que o tom é de pura ironia. Vejo isto agora, com o projeto “Lê Pra Mim?” que estamos desenvolvendo no Rio e em Salvador, ao mesmo tempo. Crianças de diversas culturas se encontrando para ouvir história. E vocês pensam que elas ficam quietinhas? Negativo. É uma gritando mais que a outra, uma batendo e apanhando mais que a outra... porém é verdade que existem os ‘quietinhos’. Estes tramam e incentivam aos pancadeiros a socar o coleguinha no olho certo.

Sobre o tema “como fomos estragados ao longo dos anos”, sugiro a leitura de “Marcas de Nascença”, excelente livro de Nancy Huston que conta a historia de 5 crianças, pela ótica das próprias. Cada uma em sua época, sua década. Dos anos 2000 aos anos 30 – o livro vem de cá pra lá - podemos perceber as marcas que deixamos nas crianças e as marcas que temos hoje.

Em “Deus da Carnificina”, excelente texto de Yasmina Reza, autora francesa premiadíssima mundo a fora, o entrevero entre crianças é o ponto de partida para mostrar as feridas sociais que estamos vivendo, aqui no Brasil, lá na França. É tudo igual. Como os pais estragam e mimam seus filhos, como reagem ao falar deles, a dedicação total e nenhuma às crianças, como a inversão dos papéis de mãe e pai – segundo as “Normas Técnicas” da sociedade em que vivemos – influencia no comportamento das crianças, a falta de limites – tanto de pais quanto de filhos – e a derradeira e lamentável explosão de emoções (ufa!!), está tudo na peça. O texto não se localiza em uma cidade especifica, mas temos a certeza de que a história aconteceu ontem à tarde. Texto é merecidamente premiado e montado mundo à fora.

A direção é de Emilio de Melo, que recentemente foi premiado por “In On It”, atuando ao lado de Fernando Eiras. Em “Deus da Carnificina”, Emilio é rígido com marcas e ao mesmo tempo rígido com cada palavra que os atores estão falando. Tudo é aproveitado. De um simples toque do aparelho celular à desesperada cena de ataque de nervos de uma mãe incompreendida. Até fazer Julia Lemmertz vomitar em cena, ele consegue. Das peças que tenho visto, esta direção, sem duvida, é a que mais se aproxima da perfeição.

Já falando do elenco, Julia Lemmertz e Paulo Betti, Débora Evelyn e Orã Figueiredo são os casais que se confrontam para defender seus filhos e seus interesses. Elenco equilibradíssimo. Todos generosos, sabendo dar passagem ao colega, sabendo olhar no olho, levantar a bola para que o parceiro de palco possa cortar a bola e marcar pontos. Muitos pontos. Julia Lemmertz não desperdiça nem um suspiro. Débora Evelyn cresce ao longo da peça junto com sua personagem, defendida com unhas e dentes. Paulo Betti, como o pai “to-nem-aí” faz a gente ter ódio de aparelhos celulares. Em minha humilde opinião (hoje to humildezinho...) sugeriria ao Orã que não abusasse tanto de sua verve cômica. Claro que ele é brilhante nesta parte, mas o texto não precisa de apelações para ser engraçado. As situações já são suficientemente toscas para que aquele pai não seja tão bufão assim. Não precisa jogar para a platéia rir. Ela já está na sua mão desde o inicio. Adoro Orã desde “Bugiaria”.

Na cenografia, que infelizmente não tenho o nome, existe uma gigante mesa decorada com milhares de peças LEGO, o que nos traz ainda mais para universo infantil, assim como os livros de arte carinhosamente – e psicoticamente – cuidados por aquela mãe que mais parece uma menina adorando seu diário. O figurino, único, é bastante elegante e acerta em cheio para cada personagem. A luz ilustra as cenas apenas para acrescentar brilho ora aqui ora ali, mas sem duvida quem manda é o texto. E a trilha sonora da peça com uma musica no inicio do espetáculo nos prepara para a carnificina que vem a seguir.

Esta peça é para ser vista diversas vezes. Para sairmos do teatro acrescentados. O que estamos ensinando às nossas crianças, o que estamos deixando de legado para o futuro? Que educação recebemos e a que estamos passando adiante precisa ser revista urgentemente. Yasmina Reza, Emilio de Melo, Débora Evelyn, Julia Lemmertz, Orã Figueiredo, Paulo Betti e toda a equipe, ciente disto, dá o que o teatro carioca precisa: a chance de pensarmos e discutirmos o futuro da humanidade. Que carnificina é essa que este Deus para quem (???) todos rezamos diariamente, nos está conduzindo? Somos nós os Deuses da Carnificina?

Aplausos de pé.
Vá ver. Imperdível.

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