terça-feira, 11 de novembro de 2014

NÔMADES


Faz quase 3 anos que perdi uma das mais importantes amigas que tive até hoje. Ela, com 77, nos deixou como disse que seria: sem dar trabalho. É ruim viver sem sua voz rouca ao telefone, sem seus comentários certeiros, sem suas baforadas de cigarro, sem suas observações do dia a dia. Com ela aprendi a “olhar o passado com os olhos do passado, não com os olhos de hoje”.

Nãna sempre foi atual. Moderna, à frente de todos os tempos. Quando partiu, sem autorização nossa, sem dizer adeus, me senti o mais órfão dos amigos. Não briguei com ela por sua ida, por me deixar aqui sem respostas e sem seu bacalhau na mesa de plástico da quitinete de Copacabana. Sabíamos que era este seu desejo: descansar em paz. Assim, nos confortamos. Até hoje ouço sua voz com o leve sotaque português ao pé do telefone: “Adivinha quem é?”. Sua rouquidão era inconfundível.
Acredito que a energia gerada por quem partiu continue presente, de outra forma. Hoje, sinto a presença da minha Nãna em pequenas frases que digo, situações que vivo e objetos pessoais dela que guardei. Minha única tristeza é a falta de notícias. O não poder vê-la (por enquanto) me deixa triste. Um dia resolveremos isto!

Está em cartaz no Teatro Poeira e peça Nômades. O texto escrito por Márcio Abreu e Patrick Pessoa, com colaboração das três atrizes e de Newton Moreno, explora as fases em que passamos desde o momento do trauma da notícia da morte, a raiva pela perda do amigo, a tristeza por sua ausência “para todo o sempre”, a dor da imensa saudade, até a consciência de que a vida continua. As personagens são atrizes que contam para a plateia alguns encontros, convivências, dia a dia, com a amiga que morreu de repente. A peça começa com uma belíssima despedida das três, no enterro da quarta amiga. A seguir uma sucessão de sentimentos, situações e catarse faz com que o público se una às três amigas, dilaceradas pela dor da perda, e façam uma viagem ao fundo do poço com elas, para que, todos, público e atrizes, saiam do buraco e celebrem a vida e a amizade.

Senti falta das amigas contarem como conhecer a falecida as transformou. Como eram antes e como ficaram depois da chegada da amiga por suas vidas? Nãna mudou minha forma de falar, de observar o mundo. Nãna me orientou, trocamos confidências que me foram (e ainda são) úteis ao meu dia a dia social. Somos a reunião de características de nossos amigos, parentes e personalidade própria. Ao conhecer alguém novo, que fica na nossa trajetória, algo desta pessoa é incorporado em nossa personalidade. O que ficou em cada uma das personagens?

O cenário e os objetos de Fernando Marés são de bom gosto e bem bolados. Destaque para a parede vermelha de portas que servem para as trocas de roupas das atrizes e mostrar que ao se fechar uma porta (morte), outra se abre para a vida. O figurino de Cao Albuquerque e Natália Duran é muito elegante e de acordo com a proposta da peça. A iluminação envolve todo o espetáculo com momentos de intimidade e exaltação necessárias ao texto. A direção musical de Felipe Storino faz a catarse necessária para que as dores possam ser expurgadas.

Marcio Abreu dirige a peça sabendo dosar os momentos de tristeza, tensão e gargalhadas com a exatidão para cada momento. Destaque para as interpretações individuais das amigas cantando e para as conversas em torno do sofá e mesa de centro. O discurso de agradecimento no velório é uma das cenas mais bonitas que vi recentemente em teatro.

Amigas. Esta é a melhor definição para Andreia Beltrão, Malu Gali e Mariana Lima no palco. Cumplices, generosas, colegas, profissionais e, acima de tudo, amigas. Cada uma sabendo seu momento de brilhar e auxiliando a amiga a ter seu estrelado aplaudido. Uma reverência à amizade. As três mostram ao público porque fazem parte do seleto grupo das melhores atrizes brasileiras. É um prazer vê-las no palco tão à vontade e, ao mesmo tempo, tão concentradas em seus trabalhos.

Com produção de José Luiz Coutinho e Wagner Pacheco, Nômades é uma celebração da vida. Choramos, rimos, nos solidarizamos com a perda das amigas em cena. A mensagem do espetáculo foi a escolha, das três, pela vida, pelo “seguir adiante em memória aos bons momentos em que todas viveram juntas”.

E é com esta celebração da vida (que não me canso de exaltar nesta peça) que recomento a todos que assistam este espetáculo para que possam lembrar dos amigos que se foram, fazer um pensamento positivo para, onde quer que estejam, olhem por nós. E que possamos seguir adiante em nossa história, até quando pudermos encontrar nossos amigos novamente. Viva a vida! viva Nômades!

Nenhum comentário: