domingo, 5 de outubro de 2025

O FORMIGUEIRO

Quem nunca ficou calado para escutar a briga no apartamento vizinho que atire a primeira pedra. Moro no último andar de um predio familiar onde a área de serviços dá para um vão interno do prédio e parece que o som sobe por ele. Escuta-se de tudo. Do assovio no banho ao barraco entre entes queridos e odiados. Abaixo de mim – e torço para não ser um leitor deste blog! – tem uma mãe que aguenta os destemperos da filha. Eventualmente a mãe cansa das barbaridades e revida. Páh! Não, não é um tabefe, é uma frase dita entre dentes rangidos que atingem a garota no seu ponto mais doloroso. E faz-se o silêncio no vão comum de áreas de serviço, banheiros e cozinhas.

Pois – prepare-se para a frase clichê – como a vida imita a arte (na verdade, arte é reflexo da vida), Thiago Marinho escreveu e dirige a peça O Formigueiro - em cartaz no teatro Gláucio Gil até 27 de outubro – que não pode e não deve ser resumido a um super-barraco, lavação de roupa suja entre irmãos. É muito mais que isso. É a vida real cheia de mentiras brandas que viram problemas graves, desentendimentos de berço, ciúmes disfarçados, fragilidades construídas, autocentrismos exacerbados. No aniversário da mãe, três irmãos se encontram para a comemoração. Outra irmã perde o voo e não chega. Histórias do passado sobem à tona e transbordam, se misturando com histórias presentes que complementam sofrimentos, marcas, dores e afetos mal resolvidos. O texto é ótimo. Mesmo. A construção da peça, que não é fácil, tem momentos de puro humor, dramas bem construídos, longos textos para os atores intercalados com diálogos e “triálogos” muito rápidos. É uma carpintaria bem pensada, onde um futuro desentendimento do meio da peça começa a ser construído na segunda fala do inicio do espetáculo. Técnico e sensível, o texto alterna entre problemas e soluções, acumula mistérios e tudo se resolve no fim, deixando o público ansioso por um novo encontro de todos.

Thiago também assina a direção, com supervisão de João Fonseca (que todos sabem, sou mega fã). Tudo pensado para valorizar as interpretações e o texto. Marcas naturais, não há nada gratuito ali. Desde a abertura da peça, onde a cadeira de rodas da mãe passa de mão em mão, até a presente-ausência da mãe, representada pelo xale e a cadeira de rodas; o vídeo das férias em Guarapari, a disposição do cenário, o figurino casual, a luz certeira, a trilha, o tom do elenco. Thiago, por ser autor, sabe a importância e a desimportância de cada cena e conduz o elenco por um caminho crescente de tensão e libertação de mágoas, sem deixar de mostrar que a cumplicidade daqueles irmãos é verdadeira. É destaque também a positiva parceria com a direção de movimento (Victoria Ariante).

O cenário (Victor Aragão e Clarah Borges) é interessante, pois nos ambienta em um apartamento porém com paredes de escadas independentes, umas mais altas, outras nem tanto, cujo simbolismo fica por conta da interpretação de cada espectador. Na minha doida imaginação, são as escaladas da vida de cada um ali presente. Caminhos que, ora altos, ora baixos, indicam os rumos que tomamos com nossas escolhas. O figurino (Luísa Galvão) é de bom gosto e bastante condizente com aquele momento. A iluminação (Felipe Medeiros) sabe o momento de auxiliar a comédia e deixar o drama mais forte. A trilha sonora (Ifátóki Maíra Freitas) mescla momento de tensão com uma única música conhecida por todos, o que faz o público sair cantando e entendendo tudo que foi mostrado ali.

Os quatro atores, Diego de Abreu (Cláudio Márcio), Lucas Drummond (Victor), Roberta Brisson (Joana) e Rodrigo Fagundes (Luiz) – em ordem alfabética – sabem muito bem como interpretar cada personagem. São atores que acreditam no que dizem, aceitam os sentimentos dos personagens e defendem suas causas com competência. Diego de Abreu é o marido que chega pelo meio da peça e muda a dinâmica do espetáculo trazendo mais humor e barraco para que a “a trama se adense”. Lucas Drummond começa como um personagem frágil, mas que, no desenrolar da peça, se mostra um dos mais sensatos, sensível e ciente da realidade entre os irmãos. Seu personagem vai num arco crescente de força e libertação, mas sem manter o respeito, o carinho e a raiva entre seus irmãos. Roberta Brisson, única mulher em cena, carrega o peso de ser mãe, filha, irmã e talvez a mais forte e sábia entre todos, mas sua força esconde uma baixíssima autoestima, com a vontade gigante de ser livre e viver sua vida, mas escondendo isso na tentativa de controlar a vida dos outros. Mesmo enquanto a sua vida está na beira no precipício. Rodrigo Fagundes, super conhecido por suas atuações em comédias e novelas, sempre no núcleo cômico, aqui tem a belíssima oportunidade de mostrar seu imenso talento em fazer um papel dramático, com todas as nuances disponíveis no texto. E ele aproveita tudo: desde o assoprar de uma colher de pau, brincando se deve ou não provar o strogonoff até a revelação de sua falência pessoal. É dura a vida de quem fica cuidando de parente com doença neurológica. Rodrigo aproveita este personagem para mostrar, mais uma vez, que é brilhante. O quarteto e o conjunto são ótimos.

Segredos de família, histórias que surgem e que não sabemos, sentimentos guardados ao longo de muitos anos, desgostos e invejas. Todos conhecemos alguém que tem, ou mesmo você, caro leitor, deva ter alguma coisa aí guardada contigo. O Formigueiro faz com que a plateia seja aquele vizinho escutando o barraco do lado, olhando pela janela da área de serviço o desenrolar do assunto gritado, sendo cúmplice de tudo aquilo que é dito no palco e apoiando mentalmente ora um, ora outro personagem. E no momento seguinte criticando a ação daquele mesmo personagem que há pouco havia apoiado. Céus! Como somos problemáticos!

O Formigueiro é um exemplo de espetáculo que prende o público, dialoga imediatamente com todos os presentes, reúne uma equipe extremamente competente e apresenta um teatro da melhor qualidade. Imperdível em todos os sentidos. É como se estivéssemos participando de uma terapia coletiva, uma constelação familiar ao vivo e à cores, onde podemos sair do teatro e imediatamente pensar em fazer uma análise de nossa vida familiar e como nos comportamos diante dos parentes.

Corra para o teatro. O Formigueiro chega para se somar à safra de espetáculos de alta qualidade com profundidade, ótimo elenco, equipe criativa competente, texto e direção de grande sabedoria. Aplausos de pé. Viva o teatro!!