quinta-feira, 2 de julho de 2015

SELFIE


Após dois anos sem férias, parti para as minhas, novamente no velho continente. Desde que viajei para aquelas bandas, não penso em mudar o rumo. O objetivo é conhecer o máximo de países da região. A imagem que tinha de lá era: frio, silêncio, paz e tranquilidade. Porém, desta vez foi diferente. Na Espanha, verão, me deparei com milhares de pessoas nas ruas das cidades que visitei. Japoneses com suas máquinas fotográficas, dando lugar aos smartphones, impedem a visão de monumentos. Eles não conseguem ver sem as câmeras. Além disso, o mundo está todo igual. Também por lá as pessoas ficam o tempo todo com a cara enfiada em seus celulares. No metrô, na rua, no shopping, no almoço, no teatro, no cinema, estão todos conectados. Parece que não basta viver a experiência, é necessário compartilhar o tempo todo com qualquer pessoa. Eu também me peguei viciado no Instagram (@aouila). Não consegui me desligar do Brasil. As notícias chegavam pelas redes sociais e pelas mensagens de whatsapp. O mais incrível desta vez foi poder ligar para a família, de graça, via wi-fi, de dentro da loja da Apple! Ficamos mais conectados ainda.

O somatório de multidão com a conectividade não me fez bem. Senti falta do silêncio português, da tranquilidade alemã e da simpatia holandesa. Conclui que preciso me desconectar da vida corrida e sem tempo. Quero trabalhar com menos intensidade, planejar mais, ter mais tempo para o ócio criativo, escrever mais, ler mais, estudar mais, filosofar, ajudar aos amigos... Voltei diferente, outra vez. E prometo cumprir as promessas que me fiz durante a viagem.

Está em cartaz no Teatro Leblon a inteligente comédia Selfie.  Muito bem escrita por Daniela Ocampo, a história nos conta a história de um rapaz que perde os dados de seu celular e, junto com isto, toda a sua vida armazenada: fotos, projetos, textos, arquivos. Fica clara a dependência da máquina. Para ter tudo de volta, ele busca com amigos e familiares as informações arquivadas em seus celulares, sem sucesso. Durante esta busca pelo seu passado arquivado, ele tem a idéia mais brilhante de todos os tempos: ser um computador, com self-wi-fi, onde pode acessar a internet num piscar de olhos. Sua vida vira um tormento. Pra lá de workaholic, ele se torna um chato. Um sabe-tudo. Sua vida perde o sentido. Em determinado momento, a tranquilidade e as coisas mais simples da sua vida, como o empinar de um pipa, começam a lhe fazer falta. É quando surge a proposta da peça: é possível viver sem a conectividade do mundo atual?

No palco, o figurino de Sol Azluay é o mesmo para os dois atores: um confortável macacão azul, como operários da engrenagem do dia a dia. A proposta de cenário, criação do diretor, é a delimitação espaço cênico no piso, mais duas banquetas. Sábia decisão, pois o que importa nesta história toda é a interpretação dos atores e a presença marcante dos celulares cenográficos. A luz assinada por Felipe Lourenço faz sombras bonitas, caminhos no chão, marca a alternância entre os momentos de sobriedade, preocupação, com os de gargalhada extrema. Muito boa também a trilha sonora, de Lincoln Vargas.

A direção do Marcus Caruso é um ótimo casamento com os recentes trabalhos da dupla de atores, vistos em Dois Para Viagem (peça com Matheus Solano e Miguel Thiré no elenco), e O Cara (texto e direção de Miguel Thiré, encenada por Paulo Mathias Jr.). Gosto muito do teatro onde se valoriza o ator, a palavra, sua expressão corporal e vocal para contar a história, e Caruso faz isso muito bem. É uma gincana, um crossfit. A agitação dos momento de “selfie” com a tranquilidade do soltar pipa, são dois momentos lindos.

A dupla Matheus Solano e Miguel Thiré é afinadíssima.  São amigos e cúmplices em cena. Emprestam seus corpos para dar vida a máquinas imaginárias de abrir cérebro, são mulheres e idosos. Todos os personagens têm composições completamente diferente dos outros tipos. Miguel se desdobra mais, pois cabe à ele interpretar os coadjuvantes do personagem principal, interpretado por Matheus. Estar na platéia é um presente para todos. Matheus e Miguel são professores para novos atores, e alunos exemplares, quando aplicam as técnicas de teatro aprendidas. E isso tudo ao mesmo tempo. Merecem indicações a prêmios de teatro.


Selfie é daqueles espetáculos que nos faz rir de nós mesmos. Quem assistir certamente se verá no palco, na dependência de um celular para tudo. Na vontade de ser mais livre desta prisão do dia a dia e ter mais tempo para curtir as coisas simples, sem precisar compartilhar com ninguém, guardar na memória as imagens, fotografias, dos bons momentos vividos. Tenho pena dos japoneses. Eles não curtem olhar diretamente para a Sagrada Família, em Barcelona, e absorver aquele banho de criatividade. Eles precisam fotografar. Eu toquei, cheirei, chorei e provei pra saber que aquela obra de arte era de verdade. É como diriam os Titãs, em Epitáfio: devia ter complicado menos, trabalhado menos, ter visto o sol se por.

https://www.youtube.com/watch?v=YOJiYy1jgRE - Clipe de Epitáfio

Corra para o teatro para ver Selfie. E pense como você está levando a sua vida. Um pouco de independência dos celulares não faz mal a ninguém. Aplausos de pé para toda a equipe, principalmente pelos idealizadores Carlos Grun, Matheus Solano e Miguel Thiré.

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