sábado, 2 de junho de 2018

A ORDEM NATURAL DAS COISAS



“Nós somos o que fazemos”. Termina assim o programa da peça “A Ordem Natural das Coisas”. E é assim que começo este texto. Faço produção, escrevo, crio cenário. Sei fazer outras coisas, mas é disso que gosto e disso que quero viver. Deixar para a sociedade algo que possa acrescentar, modificar, as pessoas. Parte disto está ligado diretamente ao que pensa Leonardo Netto, ator e dramaturgo, com quem tive a honra de trabalhar em A Moratória.
Assim como ele, resisto, luto, sigo na guerra contra o mal que nos envolve. As forças negativas que tentam tomar conta de tudo. Fujo das picuinhas, saio pela tangente na briga. Não estou aqui para entrar em discussão que não vai levar a nada. Eu, sim, quero levar literatura aos quatro cantos deste país. Quero levar cultura e mostrar que só a educação vai nos salvar. Somos um país de mal educados. Não existe a preocupação com o coletivo, com o outro. No Brasil, como diz Lúcio, personagem da peça: “O outro. Esta grande ameaça”. Enquanto pensarmos assim não seremos uma nação. Viveremos numa eterna guerra civil sem líderes e sem objetivos.
Está em cartaz até domingo no Sesc Copacabana – e torço muito para que tenham novas temporadas – o espetáculo “A Ordem Natural das Coisas”, texto de Leonardo Netto. A peça conta a história de um homem abandonado no altar pela noiva, que sequer vai ao casamento. Manda pelo pai um recado. Na casa onde seria o ninho de amor, o ex-noivo recebe a visita do ex-genro, amigo fiel. Mágoas e roupas sujas são lavadas. Porém surge uma vizinha que mostra ao protagonista que a vida segue adiante, apesar dos pesares. Calma. Não há o menor spoiler neste parágrafo. Isto é apenas 10 minutos de peça. O que acontece depois é de uma magia, uma verdade, uma perfeição dramatúrgica que é impossível não ficar tocado com toda a história.
Leonardo Netto tem neste espetáculo seu melhor trabalho de dramaturgo. Li uma crítica no jornal - que raramente concordo -, mas desta vez, em especial, o que está escrito é o que eu diria: na medida certa. Não há um só exagero e nenhum erro cronológico ou dramatúrgico. Tudo está esclarecido e de acordo com o que aconteceria na realidade nossa de cada dia. A colaboração da direção de movimento, de Márcia Rubin, é importantíssima para a composição dos personagens e andamento da história.
Além disso, Leonardo Netto dirige e sabe o que quer em cada cena, como cada frase deve ser expressada pelos atores. Ocupa o espaço – e o não espaço, o vazio do palco – com a força da sua dramaturgia. Espalha caixas no fim, limpa a alma, lava. Excelente trabalho.
No palco, a cenografia de Elsa Romero é um apartamento que acabou de receber uma mudança e presentes de casamento. As paredes estão na estrutura. Não há emboço, tijolos. Apenas a estrutura vazada. Tal qual o protagonista: alma aparente. O figurino de Maureen Miranda mostra claramente cada momento dos personagens. A luz de Aurélio de Simone é sempre uma aula. A trilha sonora (Leonardo Netto) e o desenho de som (Diogo Magalhães) contam parte da história da peça através dos discos. Adorei o som que começa na vitrola e acaba envolvendo todo o teatro.
Os atores, entregues. Beatriz Bertu é a vizinha Cecília, uma mistura de Amelie Poulain com Clarice Falcão, doce e objetiva. Cirillo Luna é Emiliano, o ex-cunhado e amigo fiel, que ampara o protagonista após o pé na bunda inesperado. Cirillo tem presença forte em cena e consegue mostrar a fragilidade dos sentimentos do seu Emiliano.
Mas é João Velho quem brilha neste espetáculo. Por ser o protagonista e ter ao seu lado um texto inteligente, uma direção segura, colegas talentosos e uma direção de movimento presente, João consegue construir seu Lúcio desde seu pé, virado para dentro na cena inicial, ao choro contido, ao “se deixar dançar com a música, apesar do sofrimento”. João tem aqui sua melhor interpretação. (Para as crianças, seu Bita, no teatro, é maravilhoso!) A segurança e a certeza de que o papel escrito para ele faz com que use as palavras com sabedoria. Ele não desperdiça uma frase, uma entrelinha, uma suspeita. João não antecipa. Seu Lúcio é pego de surpresa pela história assim como nós, espectadores. Ele também se surpreende. Um tempo de representação mágico! Me emocionei várias vezes com seu trabalho. Ao fim da peça, ainda sob emoção – não pelo drama do personagem, mas pelo seu trabalho – o abracei comovido.
A Ordem Natural das Coisas é um dos melhores textos dramáticos novos montado nos últimos tempos. Talvez dos últimos anos. A criatividade em tempos de crise aflora e a qualidade cênica aparece. Só os bons sobrevivem. Encaro este momento da falta de patrocínio como uma época da Seleção Natural do Teatro. Só vai ficar, e ser reconhecido, quem for bom. E, nesta peça, temos aquilo que de melhor o teatro carioca pode oferecer. Obrigado por resistirem! Contem comigo! Aplausos emocionados de pé.

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