terça-feira, 10 de janeiro de 2023

CERCA VIVA


“O máximo de liberdade que o ser humano pode aspirar é escolher a prisão na qual quer viver! A liberdade é uma abstração! Diga-me qual é a sua tribo e eu direi qual é a sua clausura! Só há liberdade se sua vida for produzida por você mesmo.” disse o filósofo holandês Baruch Spinoza... 

Nestes tempos pós pandêmicos (que ainda não acabaram...) temos a difícil tarefa de reconstruir nossas vidas. Muitos perderam parentes, empregos, benefícios. Outros entenderam que, sim, viviam em prisões previsíveis. “Estudos demonstram que” (coloco entre aspas, pois não localizei a fonte, mas o que importa é a mensagem), o número de divórcios subiu 26,9% de janeiro a maio só em 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Se comparado a igual período de 2020, o crescimento foi de 36,35% em 12 meses. Comparativamente aos cinco primeiros meses de 2017, quando tudo estava “normal”, número de divórcios aumentou incríveis 75,34% só no Estado de São Paulo! 

Conviver é uma arte. Suportar o outro, uma dádiva!! 

Está em cartaz no Teatro Sesi Centro o espetáculo Cerca Viva. Com ótimo texto de Rafael Souza-Ribeiro, a peça discute a relação de um casal que se muda para o interior, nos idos anos 50, por conta de uma promoção no trabalho. A esposa larga sua vida de professora e se aboleta com marido numa casa, onde vizinhos, futriqueiros e fofoqueiros, mandam e desmandam nos costumes e comportamentos locais. Com carpintaria teatral de alto nível, Rafael intercala momentos de tensão verbal com comédia rasgada, assédios morais com descobertas surpresas. O casal protagonista precisa conviver com a vizinha ex-atriz - que vive atuando - e o vizinho machão “cidadão de bem”. 

O cenário da dupla Elsa Romero e Luiz Henrique Sá é composto de objetos que ambientam os espaço propostos pelo texto, com destaque para a casa de arame que toda hora é montada e desmontada pelo elenco. O figurino de Bruno Perlatto caracteriza bem os personagens: o bronco, a vaidosa, a recatada e do lar e o engenheiro mediano. Ana Luzia Molinari de Sinomi ilumina todas as cenas com a competência e riqueza de detalhes de sempre. Destaque ainda para a trilha de Marcelo H. 

Cesar Augusto dirige o espetáculo aproveitando os ótimos atores que têm em mãos. Usa o palco disponível para separar cenas, coloca foco nos lances tensos e prepara a plateia para explosão de gargalhada. Ele sabe conduzir a história pelo caminho certo da família dos anos 50. Ótima direção deixando os atores criarem marcas e, ao mesmo tempo, limpando o caminho para que um não se sobressaia ao outro. 

Angela Rebello está impagável como a vizinha ex-atriz que não precisa se preocupar com dinheiro. Segura e correta, Angela arranca as maiores gargalhadas e cumplicidade da plateia. Camila Nhary é a mocinha que abandona sua carreira de professora de francês para acompanhar o marido e levar consigo frustrações e questionamentos. Camila mergulha no papel e defende sua personagem com unhas e dentes. Sávio Moll é o cidadão de bem, que se aproveita da solteirona ex-atriz para viver no bem bom e comandar o andamento da cidade. Sávio é seguro e competente. Não menos importante Gabriel Albuquerque dá vida ao mocinho, engenheiro que vai pro interior em busca de uma vida melhor para si e para a família que está construindo, porém não leva em conta os anseios e desejos da esposa, ora mentindo, ora defendendo, ora ausente, ora afetuoso. Um quarteto afinadíssimo. 

A peça é um apanhado positivo de “white people problems”: ninguém se preocupa com dinheiro, a mocinha não quer cozinhar pro marido, cujo objetivo é comprar um carro para impressionar os vizinhos, que vivem de olho na vida amorosa dos habitantes da casa ao lado. Como muitos e muitos relatos de histórias de casais, a peça retrata o ontem e o hoje da mesma forma.

Cerca Viva não só representa a prisão, o limite, entre o pessoal e o público. É também a grade imposta por nós mesmos, uma cerca que vive internamente, nos dizendo para onde ir, que atitude correta a tomar, e que acaba por impedir a liberdade de escolhas e caminhos. É o limite imposto no quintal entre duas famílias distintas, limite vivo, limite que os cerca, limite de plantas, limite de vida. 

Ótimo espetáculo, Cerca Viva fica em cartaz até dia 14 de fevereiro, às segundas e terças. Aplausos aos produtores Bárbara Montes Claros e Damiana Inês. Viva o teatro! Aplausos de pé.

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