terça-feira, 25 de abril de 2023

MANIFESTO TRANSPOFÁGICO


Era comum no carnaval assistir, na terça feira, antes do fim da folia, aquela entrada do baile Gala Gay, na porta do Scalla, Leblon, Rio de Janeiro, onde modelos famosas apresentavam a passarela vermelha e selecionavam algumas travestis para entrevistar. Ora com ar de deboche, ora com seriedade. Entre piadas e leques, por vezes escutávamos falas sérias sendo ditas. 

Nunca víamos o interior do baile, na antiga Tv Manchete, mas a tradicional família brasileira, que habitava Iguaba Grande, região dos lagos, no carnaval, estava lá, ligada na entrada do baile. Assistia-se com alguns comentários jocosos. Maridos e pais assistiam. Tias comentavam. Mas assistiam.

Na semana que se seguia, as revistas Fatos e Fotos, Manchete, estampavam na capa personalidades do mundo travesti: Lola Batalhão era a mais famosa, com sua maquiagem pesada. Na capa. Da revista. Fatos e Fotos. Elas brilhavam.

Mas aí... findou-se o carnaval... e aquele momento de luxo e glamour acabava. Mudamos? O país mudou? Pra pior, sim. Há 14 anos no topo da lista dos países que mais matam transexuais no mundo. Em relatório divulgado pela Antra, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Brasil continua sendo campeão de desrespeito e violência com pessoas trans. Somos país que mais mata pessoas trans no mundo. São 131 trans e travestis assassinados no país em 2022.

Está em cartaz no Teatro SESI Centro, o educativo e emocionante espetáculo “Manifesto Transpofágico”, monólogo escrito e encenado por Renata Carvalho, graduanda em Ciências Sociais e que estuda os corpos trans desde 2007. A atriz nos apresenta um texto resultante de uma pesquisa cênica sobre o corpo travesti. Temos ali desde a injeção de silicone industrial até a auto mutilação por lâminas cortantes para se proteger de prisões aleatórias. É um tapa na cara da realidade que poucas vezes convivemos. A segunda parte da peça, é uma conversa franca e honesta com a plateia, sem julgamentos, explicativa, que só acrescenta boas informações e emociona quem compartilha desta experiência rica em humanidade.

O palco livre, tem um telão ao fundo para projeções, uma passarela atrás, que eleva a atriz e ora a coloca dentro da tela. Acima, um grande letreiro escrito TRAVESTI, que muda de cor à medida que a história pede. Cecília Lucchesi assina o vídeo art. Wagner Antônio assina uma luz competente e complementar ao texto. Destaque para o fio vermelho que ilumina o corpo da atriz justamente no momento em que se está mostrando um depoimento de uma travesti que se corta com gilete para escapar da prisão. O sangue jorra pela luz. Lindo.

A direção é assinada por Luiz Fernando Marques, que conduz o espetáculo por caminhos interessantes, como o inicio da peça onde apenas enxergamos o corpo da travesti, sem, contudo, enxergarmos seu rosto. Destaque ainda para o casamento entre projeções, atuação e cena. Palco e plateia são utilizados com precisão, onde todos podem se sentir acolhidos e confortáveis para participar.

Renata Carvalho é a autora e atriz do espetáculo. Conhecemos pela mídia seu trabalho quando sofreu ataques durante a encenação da peça ‘O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu’. Mais que uma escritora de produção contínua, com livros lançados, também tem em seu currículo outras peças, participação no seriado As Five (Globoplay), e em cinema. Uma gigante em cena. Segura, firme, decidida, é impressionante que tenha se preocupado com pequenos detalhes, como altura da música, tom de voz, intensidade da luz de cena, tudo isto para ter uma comunicação não-violenta e poder atingir seu objetivo: educar, ensinar, modificar. E consegue mais do que isso. Carisma, simpatia, elegância, talento e força. Muita força. Esta é marca do espetáculo.

Sempre digo neste espaço a importância e o objetivo do teatro. Acredito que, ainda nos dias de hoje, teatro seja um canal poderoso de denúncia, educação, transformação, registro. Quando um espetáculo me toca e me modifica, agradeço aos deuses da arte pela oportunidade de sair melhorado da peça.

No espetáculo “Manifesto Transpofágico” pude aprender, entender, com Renata Carvalho, como ainda estamos engatinhando no assunto igualdade de gênero, transfobia, preconceito. É uma das melhores aulas sobre o tema que você verá ao vivo em sua vida. É uma peça-show, um documentário-aula, onde a certeza é sair modificado, humanizado e, acima de tudo, em dar as mãos em busca de um país melhor. 

Agradeço imensamente à Marrom Glacê assessoria de imprensa pelo convite para assistir a este ato de mudança. Agradeço e aplaudo Renata Carvalho pelos ensinamentos, pela garra, por trazer para nós a realidade e, melhor que isso, nos indicar caminhos para melhorar a sociedade em que vivemos. Não basta criticar e apresentar o horror, é preciso indicar soluções para aqueles, que como eu, não fazem ideia de como contribuir para a melhora da sociedade. Em “Manifesto Transpofágico” temos caminhos apresentados como soluções. Amor, harmonia, aceitação, generosidade e, acima de tudo, humanidade. É por aí que temos que ir. Aplausos de pé, agradecidos e emocionados. Viva o teatro e viva a transformação. Viva Renata Carvalho!


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