sábado, 28 de setembro de 2024

A SALA BRANCA


Imagine-se diante de um quebra-cabeças cheio de peças. Todas se encaixam no final. Mas a junção perfeita destas traz, para quem vê a obra pronta, imagens que se combinam isoladamente dentro do todo. Não é uma paisagem perfeita, muito menos um rosto, uma obra de arte ou arquitetura. Não, não. Temos neste quebra-cabeças pontas soltas sem destino, outras que finalizam sem o trivial ponto final, estradas que morrem antes do horizonte. Mas... de que importa? Qual a necessidade de se dar fim, compreender a fundo cada imagem criada? Pra que desvendar mistérios criados pelo interlocutor aonde eles não existem no quebra-cabeças, na trama, no texto? “Pare de querer desvendar mistérios onde eles não existem.” (É mais ou menos assim uma das frases ditas pela professora protagonista).

É esta a questão em jogo no espetáculo “A Sala Branca”, em cartaz na sala Multiuso do SESC Copacabana. Traduzida por Daniel Dias da Silva, o texto de Josep Maria Miró explora a ansiedade, a curiosidade, a necessidade de esclarecimentos do público, atiça a curiosidade e, acima de tudo – e o que é mais genial – deixa o público ávido por respostas que ele mesmo poderá criar, decifrar, descobrir, para que sua alma fique acalentada, para que sua ansiedade seja saciada por si só. Josep Maria Miró não se propõe a responder nada. O que ele quer dizer, e o que é importante, é aquilo que está dito no palco.

Daniel Dias da Silva transcreve para o português a língua catalã, mas a fala é universal. Na peça, uma professora reaparece na vida de 3 alunos aleatórios, que ela ensinou a ler, e faz uma confusão na cabeça de cada um deles, levando-os a refletir sobre seu passado e, acima de tudo, como estão suas vidas no presente. “Você está feliz?” é a pergunta que joga cada um dos alunos num redemoinho de lembranças e revelações. Senhorita Mercedes, a professora, está viva? É um fantasma de cada um dos 3 alunos, que volta para o presente a fim de atormentá-los ou tirá-los da zona de conforto? Ela provoca a explosão de segredos ou ela expurga a mágoa contida? Eis o mistério da fé.

No palco, o cenário de Sergio Marimba nos traz paredes brancas, mesa e cadeiras brancas de ferro e uma estrutura que simula um local fechado, apenas com os contornos. Lindo ver o cenário projetado em sombras nas paredes brancas. As sombras do passado, as marcas do escondido, estão ali naquela quase-sala. O figurino de Victor Guedes traz a característica de cada um dos personagens com exatidão: o arquiteto, o segurança, a corporativa e a doce e misteriosa professora. Vilmar Olos brinca com a luz e as sombras nas paredes, delimitando cenas curtas divididas entre presente e passado. 

Gustavo Wabner, que esteve em cena no espetáculo “O Princípio de Arquimedes”, do mesmo autor catalão, sabe como conduzir as cenas para o desejo do dramaturgo. É boa a ideia de colocar os personagens no palco, porém fora de cena, para que sejam sombras marcantes. Ótimo seu trabalho de direção dos atores. Percebemos que a palavra, o texto, foi bastante estudada e estruturada para que, durante a apresentação, mesmo parados, os atores demonstrem sentimentos até mudos. Impossível deixar de notar o olhar fixo da professora sobre seu aluno arquiteto, focada nele, aguardando o triunfo da explosão e expulsão do drama contido por anos por aquele que ela ensinou a ler.

O quarteto fantástico de atores está batendo um bolão. Melhor que um jogo de vôlei final de olimpíada, ou um revezamento de corrida de obstáculos, cada um deles têm seu proprio monólogo para chamar de seu, tem interação e integração com os demais colegas. Todos mudam o tom no momento exato em que o diálogo sai do presente e volta ao passado. Ângela Rebello (professora, tá viva? Tá morta? É pobre? É inconveniente? É carente? - quem poderá nos responder?), Isabel Cavalcanti (aluna que se tornou integrante do mundo corporativo), Daniel Dias da Silva (aluno que se tornou arquiteto) e Sávio Moll (aluno que se tornou segurança do mercado) estão extremamente seguros e com o texto na ponta da língua. Um bate bola entre os quatro que chega a tirar o fôlego da plateia – que não pisca, com medo de perder uma mudança, um indicio, uma pista qualquer que possa responder às inúmeras dúvidas que o texto nos propõe, embora não proponha nenhum mistério! A gente que cria expectativa por um fim tradicional. Ótimos os quatro atores, ótimos!

O pano de fundo da peça, e o que é realmente importante, são as questões profundas: abandono do filho, homoafetividade reprimida, suicídio do colega de turma, bullying, vergonha, diferenças de classes, mãe solteira, “Você está feliz?”...

Sair de uma peça de teatro se fazendo infinitas perguntas: estou feliz? O que me marcou na escola? O que fiz de errado que preciso – e posso! – confessar? Minhas escolhas foram as melhores? Quem é aquela professora pelamordedeus? Porque ela escolheu aqueles três alunos? O que os une? O que os separa? Porque só agora ela voltou? Voltou ou nunca saiu? Pra onde ela vai? Quem será o proximo a vê-la? Tá viva ou tá morta? Tire suas próprias conclusões ao assistir a “A Sala Branca” e escolha o seu caminho, seu quebra-cabeças final, através das peças dadas e pistas jogadas ao público pelo espetáculo.

Assista e saia renovado, agraciado com um belo espetáculo, saia cheio de dúvidas e colha as suas melhores respostas. É este o objetivo do espetáculo. Duvidas promovem reflexões. Reflexões promovem revelações. Revelações provocam mudanças. “A Sala Branca” nos recebe de um jeito e nos devolve para a vida cotidiana modificados. Aplausos de pé.


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