domingo, 16 de agosto de 2015

ANTOLOGIA DO REMORSO


É sábio o dito popular : “Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida”. Uma vez falado, fica complicado consertar. E se eu não tivesse falado nada?? Fazer cagadas deste tipo é típico de sagitarianos. Como bom exemplar do signo, aprendi que não se deve passar a mão na barriguda perguntando para quando é o bebê; a não perguntar para o amigo sobre o companheiro apresentado no último encontro; e não questionar sobre o almejado projeto, se deu, ou não, certo. É desconcertante a resposta: estou gorda, não grávida; o outro me deixou recentemente; o projeto foi por água abaixo. Dar conselhos, muito menos. “Ah, se você tivesse feito o que eu sugeri, não estaria nesta situação”... isto só piora. Pelo simples fato de que o “se” não existe. Se eu tivesse continuado na engenharia, talvez não tivesse blog de teatro... O “se” é a eterna duvida. E, após o malfeito, o que nos resta é o remorso.


Está em cartaz no Teatro Gonzaguinha, no Centro de Artes Calouste Gulbenkian, o ótimo espetáculo Antologia do Remorso. A anta que vos escreve recorreu ao nosso amigo Google e confirmou o que já sabia, mas queria uma definição melhor: “Antologia é o termo usado para categorizar coleções de obras curtas, tais como histórias curtas e romances curtos, em geral agrupados em um único volume para publicação”. Pois na peça estão reunidos textos curtos de Flávia Prosdocimi, onde o tema remorso é recorrente. Quando li o titulo, imaginei imediatamente uma novela mexicana do SBT. Estaria eu caindo na armadilha do preconceito? E se não fosse isso? O jeito era conferir de perto.

É inegável que a autora bebeu na fonte de Nelson Rodrigues. Impossível não lembrar do cronista e dramaturgo ao longo do espetáculo. Depois da terceira história, já temos a certeza de que vem mais uma morte e ficamos ansiosos por saber como e quem vai morrer nas histórias.

Em todos os contos, além do remorso, temos a família brasileira representada. Ora um marido ciumento, ora uma esposa fogosa. Um carnaval serve de pano de fundo, uma criança é o alvo da cena. A forma de escrever, em parte narrando, em parte diálogo, é muito bem resolvida pela autora, que tem mão firme e sabe ser econômica. Não me recordo de ter visto recentemente nenhum autor que se aproxime tanto de Nelson Rodrigues quanto Flávia. E isto é uma dádiva. Pra mim, ainda hoje, Nelson Rodrigues é o melhor exemplo da boa dramaturgia brasileira. E Flávia chega para preencher uma lacuna. Aplausos.


No palco, a cenografia é composta apenas de 3 cadeiras que, por milagre, inteligência e criatividade, guardam, nos assentos, parte do figurino que é trocado ao longo da peça. Mérito (cenário e figurino) de Júlia Marina. A iluminação, de Tiago e Fernanda Mantovani, completa o cenário, dá ainda mais vida às cenas, cria sombras e míseros espaços cênicos, auxiliando, e muito, todo o trabalho da direção e atores. Uma das melhores iluminações de espetáculos de teatro deste ano.

A direção é de Daniel Belmonte que sabe muito bem onde quer chegar. Caprichando na interpretação, pausas e degustação das palavras, Daniel explora tudo que o texto lhe oferece. Acerta nas entonações, é atento na dicção, nos momentos em que, mesmo sendo narrado, o texto pode ser interpretado, no intervalo entre os contos, na inserção sonora, na escolha da trilha (que muitas vezes completa a ação e valoriza o conto) e, além de tudo, explora o palco com inteligência. Nada ali é gratuito. Certamente houve uma contribuição dos atores na movimentação de palco, e, inteligentemente, Daniel aproveitou tudo que cabia e seria favorável ao espetáculo. Aplausos.


O elenco é composto por três jovens, inteligentes e talentosos atores. Todos se destacam e aproveitam cada palavra, cada cena, cada monólogo como se fosse a joia mais preciosa do momento. O trio formado por Elizabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago D’Ávila bate uma bola redondinha. Cada um se entrega aos personagens com gosto, com prazer. Se divertem em cena, é notável. Entram num jogo familiar a cada novo conto, novo texto, e deixam a plateia com água na boca e boquiabertos. Excelentes atuações, o que prova, cada vez mais, que o teatro carioca está vivo e seus novos atores chegam com força no mercado, querendo espaço e reconhecimento. Ótimos!

Antologia do Remorso, embora sem um título convidativo, é um ótimo espetáculo. Ali está o que há de melhor no teatro carioca do momento: texto de qualidade, direção certeira, atores dedicados e equipe competente. Torço para que a peça tenha ainda vida longa e rode a cidade (e o país) de norte a sul, mostrando um pouco da atualidade de Nelson Rodrigues sob um olhar jovial e moderno de Flávia Prosdocimi, Daniel Belmonte e os atores.


A peça fica em cartaz até o fim de agosto. Então, reserve na agenda um dia (de sexta a domingo) para assistir ao espetáculo, abraçar os atores no final, e, depois, sair para discutir tudo aquilo que viu no palco do Teatro Gonzaguinha. É mais um dos espetáculos que recomendo. Certamente você, assim como eu, ficará ainda mais apaixonado pela arte de representar. Aplausos de pé com gritos de Bravo!

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