segunda-feira, 28 de outubro de 2019

NASTÁCIA



Tá no Google: “Feminicídio é o homicídio cometido contra mulheres que é motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero”. As matérias jornalísticas também estão lá: “Assassinatos de mulheres crescem 250% neste ano em Belo Horizonte”. “Aumentaram 44% em São Paulo até agosto de 2019”. “O Brasil não é apenas o quinto país com mais feminicídios do mundo, mas esses números podem aumentar, já que parte dos homicídios de mulheres registrados poderiam ser também feminicídios, assim como a maioria dos estupros de mulheres seguidos de morte devem ser consideradas também feminicídios por terem como motivo o ódio e o desprezo pela mulher.” Pra onde vai nossa sociedade? Até quando mulheres continuarão a ser maltratadas e seus maridos/companheiros/amantes ficarão impunes?
No palco do Teatro III do CCBB, está em cartaz o espetáculo Nastácia. Com ótima dramaturgia de Pedro Brício e tradução de Paulo Bezerra, temos a cena do livro que retrata a festa de aniversário de Nastácia, mocinha do romance O Idiota, do aclamado filosofo, escritor e jornalista russo Fiodor Dostoiéviski. A história nos coloca como coadjuvantes das angústias, revoltas e revanches de Nastácia, que arma o maior rebú na sua festa. Um pretendente a casamento faz tudo para agradá-la, o velho amante tenta demovê-la de suas loucuras e convencê-la a aceitar o casamento arranjado, até que chega o Príncipe, personagem principal do livro. Nastácia parte com ele, mas foge, mas volta, mas foge de novo, mas volta... ufa! Até que faz a sua escolha e o fim... é importante assistir ao espetáculo pra saber o resto.
A criativa direção de arte, com instalação, figurino e cenografia, de Ronaldo Fraga, ambienta todo o espaço cênico, com molduras plotadas, mesas com rodinhas, cadeiras de época, e os mais variados objetos que dão o tom da nobreza, mas sabemos que são de fácil compra. É isto que faz a beleza da cenografia: o uso do objeto cotidiano a favor de uma ação teatral diferente. Taças plásticas douradas, garrafas de metal prateada, são taças de vinho e garrafas de champagne. Coloca plateia dentro da ação em um palco semi-arena com passarela. O figurino também completa a simplicidade e a elegância necessários, com destaque para a malha inicial da atriz com suas partes intimas desenhadas. Tudo iluminado por Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal com competência. Temos ainda a trilha sonora de Gabriel Lisboa e os vídeos de Cao Guimarães.
Miwa Yanagizawa é a diretora deste ótimo espetáculo. A plateia é incluída na história, como convidados da festa. A utilização de todo o espaço do Teatro III é inteligente. Destaque para a condução dos atores que, em determinados momentos, explicam para a plateia, saindo do personagem, mas mantendo o ritmo da apresentação.  Soluções teatrais inteligentes, como a entrada da aniversariante em cima de um carrinho de rolimã. Um casamento geral com a equipe. Um capricho!
No elenco, Julio Adrião e Odilon Esteves, dão vida a Totski e Gánia respectivamente. O jogo teatral dos dois é muito bom. Sabem que a estrela é Nastácia, e se emprestam aos papéis com verdade cênica e atuações seguras.
Flávia Pyramo é Nastácia e a idealizadora do projeto. Excelente trabalho. Flávia não perde uma vírgula. Atenta e esperta em cena, conduz o espetáculo como uma nobre anfitriã. Olhar profundo, verdadeiro. Se empresta a Nastácia com garra e dedicação. Leveza ao correr no palco. Força nas cenas de embate. É pra aplaudir de pé.
Nastácia mostra que o feminicídio vem desde que o mundo é mundo. E a peça propõe uma reflexão. E se Nastácia denunciasse os abusos? E se revoltasse contra os homens que a tratam como objeto sexual? E se o fim fosse a sua felicidade e os malfeitores punidos? É importantíssimo ver que este espetáculo toca numa ferida aberta e jorrando sangue, comparando o passado, apresentando a literatura de qualidade, e fazendo do teatro um lugar seguro para discussões, arte e aprendizado. Viva Nastácia. Aplausos sem fim.

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