domingo, 19 de outubro de 2025

O LEGADO

Ainda não tive contato direto com a obra de Caio Fernando Abreu. Apesar de ter dois livros dele em casa, não os li, ainda. Ok, admito esta a falha de caráter de leitor... Com justificativas, me defendo. Minha paixão por romances policiais é intensa. Descobrir o assassino me tira da vida real assoberbada e atribulada. Então, Caio Fernando Abreu foi ficando ali, presente porém na espera pelo dia de ser selecionado para habitar a cabeceira da cama, local onde os livros da vez dormem ao meu lado.

Os anos 80 e 90 são marcados pela a epidemia da AIDS que tomou conta do mundo e matou um bocado de gente. Entre elas: Lauro Corona, Sandra Bréa e Renato Russo. Cazuza fez questão de que acompanhássemos seu dia a dia e sua luta. Madonna entrou na defesa dos portadores, Princesa Diana mudou a história ao abraçar doentes no hospital. O filme Filadélfia tomou as telas do mundo abrindo espaço para o assunto. A médica Márcia Rachid lançou Sentença de Vida em 2020 contando histórias vividas por ela em seus atendimentos, desde a chegada do vírus até o acompanhamento de tratamentos. O livro virou peça em 2023 pelas mãos de Gilberto Gawronski. E Caio Fernando Abreu também foi uma das milhares de vidas ceifadas.

Está em cartaz no teatro de arena do SESC Copacabana, O Legado. Escrita e dirigida por Renato Farias, o espetáculo é um encontro de três gerações de homens gays e as relações com a AIDS. Como aquela epidemia afetou e afeta ainda hoje o mundo. O que Caio Fernando Abreu nos ensinou sobre a forma de amar de sua época, e como seus escritos reverberam até hoje, é o seu legado. E a peça conta algumas histórias de amor, relações que podem ser saudáveis mesmo convivendo com o vírus, a sexualidade nos dias de ontem e de hoje e as relações entre a geração que viu amigos partirem e a geração atual que sabe das histórias, mas não viveu o medo e as partidas. Numa mistura de ficção com realidade, o texto parte da encenação de peça “Pela Noite” (texto de Caio Fernando Abreu) e as cartas trocadas entre o ator que propôs a montagem há 30 anos e agora, nesta nova montagem que é uma celebração dos 30 anos da Companhia de Teatro Íntimo.

O texto é bem dinâmico, ágil, atual, bem pensado e escrito com qualidade. Os diálogos rápidos tem passagens bem emotivas sem cair no óbvio ou no melodrama. É muito bom ver o texto do Renato Farias sendo dito numa arena repleta de pessoas, pois o texto comunica, informa, exemplifica, construindo uma narrativa e uma carpintaria teatral que leva o público a ficar grudado no que está sendo dito.

É também do proprio Renato a direção da peça. E é excelente. Com várias cenas caprichadas, tanto de amor, quanto de brigas, entradas triunfais de personagens, discussões, tudo é bem ensaiado e representado. Renato se preocupa com a dicção do elenco e conseguimos entender tudo o que todos estão dizendo, coisa rara hoje em dia! A cena dos três amigos de geração 80 que ora são representados pela geração 2000, juntos, os 9 em cena, ora um, ora outro, mudando as falas, mas mantendo personagens, no momento em que contam os motivos pelos quais – os da geração 80 – evitam tocar no assunto AIDS, é digna de prêmio! Renato também aproveita tudo o que o mundo gay dispõe e apresenta nos dias de hoje: shows de drag, vogue, drogas, sexo grupal, amores medrosos, desafios, invejas, corpos sarados versus corpos normais, enfim, todo o universo gay está sendo muito bem representado nesta história-legado-retrato. 

Orlando Caldeira assina uma direção de movimento perfeita para as épocas retratadas na peça, a disposição dos atores e seus movimentos corporais em todos os momentos. Um belíssimo casamento entre direção e direção de movimento.

A direção de arte de Thiago Mendonça nos mostra, na entrada do público, um monte de livros num centro de um gigantesco tapete vermelho, mas este monte se desfaz em pequenas partes que viram pufes com compartimentos secretos escondendo objetos de cena. Ótimo! O figurino de Ùga agÚ é bastante confortável e referencial. A marca Adidas das calças para todos mostra que, embora corpos diferentes, todos se juntam em algo que os faz iguais. Destaque para o figurino do show que Márcio Januário e Aleh Silva dão no palco, como se estivéssemos numa cena do seriado Pose. A luz de Daniela Sanches é belíssima, como sempre, e contribui imensamente nas cenas de sexo, brigas, dores e amores. Tudo isso abraçado pela trilha sonora de Diego Moraes.

O elenco de 9 atores: Dodi Cardoso, Márcio Januário, Renato Farias, Alain Catein, Orlando Caldeira, Thiago Mendonça, Aleh Silva, Gabriel Contente e João Manoel também está dividido por gerações diferentes, mas nada disso importa, pois todos, ao seu momento, têm espaço para dar o recado. E todos, todos, todos, estão totalmente entregues, seguros, com o texto na ponta da língua, sabem as entonações de cada palavra e como se comportarem cenicamente. São colegas e cúmplices neste espetáculo. Estão ali mostrando seus trabalhos individuais, mas o coletivo é quem ganha. São amigos encenando uma história de todos. São pedaços de um grupo social que ainda sofre separadamente com preconceitos e ataques e se defendem juntos, pois, sabemos que “nada é mais forte do que todos nós juntos”. Se pudesse dar um leve destaque, apenas indicar dois atores que me fizeram captar as atenções, digo que Dodi Cardoso e Thiago Mendonça fizeram meus olhos ficarem mais atentos e emocionados em algumas cenas, gestos e ações. 

Citei rapidamente o seriado Pose, que também abriu portas colocando pessoas trans como protagonistas de um seriado de grande impacto cujo tema é similar à peça. Mas é de Caio Fernando Abreu que vem a grande inspiração, pois, no fundo, no fundo, o que está se falando em cena é sobre amor, parceria, relações verdadeiras entre homens, parcerias de anos, cuja maior vontade e acerto é contar uma história que sirva para ontem, hoje e amanhã.

O Legado fala sobre todos os enfrentamentos de pessoas LGBTQIA+ e merece ser visto por aqueles que ainda resistem a acreditar que somos todos iguais perante a lei e que ninguém merece ser discriminado por qualquer que seja a sua condição. Então, vá já para o SESC Copacabana, engula seu preconceito, abra-se para uma história divertida, emocionante, inteligente e impecavelmente contada por esses 9 atores, pela equipe criativa, pela dramaturgia e direção e por uma produção da Bloco Pi Produções (com Damiana Inês na direção de produção e Wesley Mey e Alain Catein na produção executiva) de alto nível. Aplauso de pé. Viva o teatro!


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

DONATELLO

Alois Alzheimer, o psiquiatra que nomeou a doença que descobriu, está enterrado em Frankfurt, na Alemanha. Ele faleceu em 1915 e foi sepultado no cemitério de Westend. Eu estive lá em 2017 com Oliver Erb, amigo alemão, em um passeio – sim, alemães passeiam e se exercitam no cemitério – e mentalmente cumprimentei Alzheimer ao passar por seu jazigo.

A notícia é fresquinha: “O Alzheimer antes da memória falhar. Exames são capazes de detectar alterações biológicas que levam à doença e ajudar na prevenção. Os novos testes não detectam o Alzheimer diretamente, mas rastreiam alterações químicas associadas ao processo neurodegenerativo. (...) “O Alzheimer é responsável por 60 a 70% dos casos de demência, afetando (...) cerca de 1,5 milhão de brasileiros. Com o envelhecimento populacional, prevê-se que o número de casos triplique até 2050, tornando o diagnóstico precoce não apenas um avanço científico, mas uma necessidade de saúde pública.” (O Globo, 10/10/2025 – Receita de Médico – Ludhmila Hajjar).

Está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, quintas e sextas às 20h, o espetáculo Donatello. Vitor Rocha é o autor do texto, das letras e o ator da história sobre o momento entre o início da doença, a evolução, como ficam os familiares, e como isto impacta na vida de quem sofre com o mal e dos parentes próximos. A peça já começa falando sobre lembranças, memórias e recordações. Vitor busca apoio da plateia para palavras e nomes que marcam a vida de alguns espectadores. As lembranças vão surgindo em nós antes mesmo do inicio da história. E nos 5 primeiros minutos, eu já estava me controlando para não virar um vale de lágrimas ali mesmo, sem nem mergulhar no que viria a seguir.

O personagem principal começa como criança que sempre vai a uma sorveteria com o avô. Ambos têm no sorvete seu “alimento” favorito. E é justamente neste local de boas memórias e sabores que a doença se manifesta pela primeira vez. Ao entender a situação, dias depois, resolve ajudá-lo, não com a sua recuperação, mas não perder as suas memórias, lembranças. O que ele faz? Associa sabores de sorvete a lembranças boas. Assim, ao tomar aquele sorvete, daquele sabor, imediatamente se recordará do momento importante registrado e nominado. Memórias. 

Vemos o menino sofrer com a mudança do comportamento da família, principalmente do avô. Vemos o menino se tornar adolescente, adulto, começar a trabalhar, abrir mão dos estudos para cuidar do avô, ajudar em casa. A convivência com seu pai, que está sofrendo a mudança do pai dele (avô do menino) é tratada na peça de forma bonita e verdadeira. 

A que ponto, qual a quantidade de amor que temos e podemos doar para alguém em troca de nossa vida própria? O personagem se doa para o avô de uma forma tão humana e tão bonita que nos faz pensar o quanto ruim e desatentos somos com nossos pais, parentes, amigos, amores. 

A cada nova história vivida pelo personagem, a cada boa memória construída, um sabor de sorvete é associado a ela. 

O cenário, composto de móveis de madeira (mesa, cadeira, chapeleiro/cabideiro) é o necessário para contar aquela história. Ainda temos uma bicicleta que funciona muito para dar movimento e objetos/adereços de cena, com destaque para a mini-bicicleta que é uma lindeza! O figurino é parte integrante da história, pois o avô é representado por um casaco/capote. Sempre que o personagem pega aquele capote, sabemos que o avô está presente. Tanto o cenário quanto o figurino, não achei na ficha técnica o nome de quem assina, mas Batata Rodrigues assina a cenotécnica. Então, aplausos para você! Wagner Pinto assina uma iluminação certeira, com recortes e momentos de introspecção favoráveis ao desenrolar da história. Muito boa.

Vitor também criou as letras das músicas que completam o texto da peça. Criativas, divertidas e com um perfeito toque de espetáculos musicais, divide com Elton Towersey a ótima trilha sonora da peça, muito bem tocada por Felipe Sushi no teclado. Felipe também participa em alguns momentos da peça como elenco de apoio em perfeita sintonia com Vitor. O design de som é de Paulo Altafim.

Cabe à Victória Ariante a direção da peça. Victória cria ótimas marcas, usa todo o espaço cênico, aproveita os móveis, abusa da boa vontade do pianista! Mantém a forma doce e contida do menino ao longo de toda peça, mesmo o personagem se envelhecendo. A gente percebe que o menino ficou parado naquela sorveteria no dia do primeiro esquecimento do avô. Victória constrói o espetáculo antes do terceiro sinal e faz com que todos nós transbordemos de emoção durante e depois da peça. 

E Vitor Rocha, com sua atuação, nos apresenta e presenteia com um menino que acompanha o desenrolar da história sob os olhos do adolescente e do adulto. E isto passa para a plateia. Não sei se o objetivo era esse, ou se o mega carisma de Vitor Rocha nos faz acreditar que o menino da história é parte dele (do ator). Carisma e talento de um ator, autor e letrista que já já estará nas telas de cinema ou streaming, e ainda com espetáculos consagrados nos teatros brasileiros.

Vitor e Victória... Vitoriosos. (Trocadilho ridículo da piada de salão daquele tio do pavê...)

Donatello é um monólogo musical onde a emoção, a memória, o talento, delicadeza, afeto, descoberta e sensibilidade andam de mãos dadas. Confesso que tive que me segurar várias vezes para o choro não vazar pelos olhos. Mas por dentro, eu tava... E isto é um ótimo sinal. A peça toca, comunica, explica, envolve. Todos temos memórias e sentimos aquele medo de perde-las. O que somos sem nossas histórias, conhecimentos adquiridos, vivência, experiências guardadas? Meu segundo maior medo – altura sem proteção vence – é perder a memória. A peça usa o Alzheimer para falar sobre comportamento, conexões e como devemos usar e abusar de estar perto de quem escolhemos e nos escolheram para estar do lado.

Aplausos também para Lucas Drummond (diretor de produção) e Ana Paula Marinho (produtora executiva) que trazem esta beleza de espetáculo para o Rio de Janeiro, no ótimo Teatro Gláucio Gil. Sem sombra de dúvida, um dos melhores espetáculos que já passaram por esse palco. Emoção garantida, sentimentos renovados. Aplausos de pé. Viva o teatro!!


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

FUTURO

Qualquer texto escrito ontem já pode ser considerado “de época”. Escrever sobre o agora, o que vemos acontecer, sobre política, televisão, seriado, memes é uma forma de fotografar os acontecimentos. Parece óbvio. E é. Por isso mesmo que escrever sobre o agora, com a linguagem do agora e se manter atual é tão dificil. E é isso que o Leandro Muniz faz com a sua peça Futuro, em cartaz no Teatro Firjan SESI, no centro do Rio. Leandro está tão atual no que diz em cena, que seu espetáculo permanece, por um bom tempo, moderno e atual. Explico.

Futuro é um apanhado de situações divertidas onde um autor se propõe a revisitar um texto antigo e dar modernidade a este. E pede ajuda à inteligência artificial, ao algoritmo. Assim, ideias inusitadas surgem. Numa delas, o autor insere um prompt (é assim que chamamos uma “ordem” que damos a uma inteligência artificial) que busca misturar clássicos aleatórios de sucesso da dramaturgia, do cinema e da literatura, como por exemplo “Tietanic”, misturando Tieta com Titanic, sempre em busca do texto perfeito, do sucesso garantido.

Leandro também é o diretor e brinca consigo mesmo, ora como autor, ora como diretor, ora como personagem, se zombando e se confirmando. Como escrever uma peça de sucesso? Ele pergunta ao algoritmo. Este devolve uma peça onde mistura alguns dos sucessos atuais dos palcos brasileiros: Ficções (com Vera Holtz), Tom na Fazenda e King Kong Fran. Assim, entra em cena uma personagem de peruca loura com máscara de macaco e um balde de terra molhada. Quem assistiu às tres peças citadas aqui, vai sacar a piada do personagem. Não quero dar spoiler, mas tem vários trocadilhos entre memes, palavras da moda, como “prompt”, “bet”, “live”, “burnout”, “selfie”, “ozempic”... se misturando a Nelson Rodrigues e Shakespeare, só para citar alguns autores de sucesso.

É preciso destacar a cena em que o casal resolve lavar roupa suja, pedir desculpa um ao outro, através de prompts solicitados ao Chat GPT ou ao Gemini. O diálogo se dá assim: “escreva um texto onde eu peço desculpas a ele, mas sem ser piegas, porém mantendo a firmeza e uma paixão recolhida”. “Escreva um texto para ela, dizendo o quanto sinto sua falta, mas não deixe transparecer a minha inferioridade nem minha ansiedade”. E nós, plateia, sabemos exatamente o que sairia da Inteligencia Artificial e seria dito no palco. Mesmo sendo apenas prompt.

A busca pela perfeição, seja em corpos ou textos, nos já torna dependentes da Inteligência Artificial. Por falar nisso, você já deu bom dia para a sua favorita hoje? Apenas esta gentileza já consome energia e água.

No palco, o criativo cenário-luz ou a luz-cenário de Paulo Denizot dá o tom da modernidade e atualidade. O figurino de Ticiana Passos coloca os atores neutros e confortáveis. E Fabiano Kieger é sempre brilhante na trilha sonora e nas paródias.

Ainda na parte da direção, Leandro pega toda sua verve de humor acumulado com espetáculos brilhantes do passado e faz os atores de gato e sapato, se revezando em cena quase com esquetes curtos ao estilo “Ta no ar” onde pequeninas cenas se alternavam como se o telespectador estivesse com controle remoto mudando de canal. É importante destacar a parceria da direção com a direção de movimento (Carol Pires) e a assistência de direção (Adassa Martins).

O elenco é de amigos talentosos que merecem todo o aplauso caloroso. Bia Guedes, Dani Fontan, Márcio Machado, Victor Maia e Tulanih. Cada um, ao seu tempo, brilha e arranca gargalhadas. É impossível destacar uma ou outra cena de cada um. Eles aproveitam tudo! E se eu falar de uma cena, vai perder a graça quando você sentar na plateia para assistir. Então, aceite esta dica, já prepare sua mão para bater palmas sem fim para esses atores que são o suprassumo do humor carioca. Ótimos.

Voltando ao inicio confuso deste texto, a peça Futuro parece que fala de algum futuro próximo que irá acontecer, mas Leandro, elenco, equipe criativa, está falando do agora, do já. Este texto não vai envelhecer tão cedo. É dificílimo falar sobre o agora, nesta época em que tudo muda muito rapido. Ontem éramos só viciados em redes sociais, hoje somos dependentes da Inteligência Artificial para quase tudo. Ninguém faz uma busca no google. Já pede ao Chat GPT, Gemini, Grok ou outra de sua preferência, que faça logo uma lista. Desde lugares para visitar numa viagem até textos para uma monografia de fim de curso. A “I.A.” já faz tudo para nós. Mas... a que preço? Até quando vamos passar informações sem sermos dominados fisicamente pelas “I.A.’s”? Está certo chamar as “I.A.” no plural? Serão muitas ou todas serão uma só, nos dominando? Está ai a reflexão que o espetáculo Futuro deixa para nós. Para o já. Para o agora.

Um espetáculo importantíssimo para a cena teatral carioca, falando do futuro no presente, com uma qualidade técnica de alto nível. A produção é de Gabriel Garcia, com fôlego de algoritmo para manter o pé no chão diante de tanta criatividade.

Tenha fôlego e mente aberta para captar as milhares de referências que você verá no palco. Corra para o teatro e divirta-se muito! Viva o Teatro!!


domingo, 5 de outubro de 2025

O FORMIGUEIRO

Quem nunca ficou calado para escutar a briga no apartamento vizinho que atire a primeira pedra. Moro no último andar de um predio familiar onde a área de serviços dá para um vão interno do prédio e parece que o som sobe por ele. Escuta-se de tudo. Do assovio no banho ao barraco entre entes queridos e odiados. Abaixo de mim – e torço para não ser um leitor deste blog! – tem uma mãe que aguenta os destemperos da filha. Eventualmente a mãe cansa das barbaridades e revida. Páh! Não, não é um tabefe, é uma frase dita entre dentes rangidos que atingem a garota no seu ponto mais doloroso. E faz-se o silêncio no vão comum de áreas de serviço, banheiros e cozinhas.

Pois – prepare-se para a frase clichê – como a vida imita a arte (na verdade, arte é reflexo da vida), Thiago Marinho escreveu e dirige a peça O Formigueiro - em cartaz no teatro Gláucio Gil até 27 de outubro – que não pode e não deve ser resumido a um super-barraco, lavação de roupa suja entre irmãos. É muito mais que isso. É a vida real cheia de mentiras brandas que viram problemas graves, desentendimentos de berço, ciúmes disfarçados, fragilidades construídas, autocentrismos exacerbados. No aniversário da mãe, três irmãos se encontram para a comemoração. Outra irmã perde o voo e não chega. Histórias do passado sobem à tona e transbordam, se misturando com histórias presentes que complementam sofrimentos, marcas, dores e afetos mal resolvidos. O texto é ótimo. Mesmo. A construção da peça, que não é fácil, tem momentos de puro humor, dramas bem construídos, longos textos para os atores intercalados com diálogos e “triálogos” muito rápidos. É uma carpintaria bem pensada, onde um futuro desentendimento do meio da peça começa a ser construído na segunda fala do inicio do espetáculo. Técnico e sensível, o texto alterna entre problemas e soluções, acumula mistérios e tudo se resolve no fim, deixando o público ansioso por um novo encontro de todos.

Thiago também assina a direção, com supervisão de João Fonseca (que todos sabem, sou mega fã). Tudo pensado para valorizar as interpretações e o texto. Marcas naturais, não há nada gratuito ali. Desde a abertura da peça, onde a cadeira de rodas da mãe passa de mão em mão, até a presente-ausência da mãe, representada pelo xale e a cadeira de rodas; o vídeo das férias em Guarapari, a disposição do cenário, o figurino casual, a luz certeira, a trilha, o tom do elenco. Thiago, por ser autor, sabe a importância e a desimportância de cada cena e conduz o elenco por um caminho crescente de tensão e libertação de mágoas, sem deixar de mostrar que a cumplicidade daqueles irmãos é verdadeira. É destaque também a positiva parceria com a direção de movimento (Victoria Ariante).

O cenário (Victor Aragão e Clarah Borges) é interessante, pois nos ambienta em um apartamento porém com paredes de escadas independentes, umas mais altas, outras nem tanto, cujo simbolismo fica por conta da interpretação de cada espectador. Na minha doida imaginação, são as escaladas da vida de cada um ali presente. Caminhos que, ora altos, ora baixos, indicam os rumos que tomamos com nossas escolhas. O figurino (Luísa Galvão) é de bom gosto e bastante condizente com aquele momento. A iluminação (Felipe Medeiros) sabe o momento de auxiliar a comédia e deixar o drama mais forte. A trilha sonora (Ifátóki Maíra Freitas) mescla momento de tensão com uma única música conhecida por todos, o que faz o público sair cantando e entendendo tudo que foi mostrado ali.

Os quatro atores, Diego de Abreu (Cláudio Márcio), Lucas Drummond (Victor), Roberta Brisson (Joana) e Rodrigo Fagundes (Luiz) – em ordem alfabética – sabem muito bem como interpretar cada personagem. São atores que acreditam no que dizem, aceitam os sentimentos dos personagens e defendem suas causas com competência. Diego de Abreu é o marido que chega pelo meio da peça e muda a dinâmica do espetáculo trazendo mais humor e barraco para que a “a trama se adense”. Lucas Drummond começa como um personagem frágil, mas que, no desenrolar da peça, se mostra um dos mais sensatos, sensível e ciente da realidade entre os irmãos. Seu personagem vai num arco crescente de força e libertação, mas sem manter o respeito, o carinho e a raiva entre seus irmãos. Roberta Brisson, única mulher em cena, carrega o peso de ser mãe, filha, irmã e talvez a mais forte e sábia entre todos, mas sua força esconde uma baixíssima autoestima, com a vontade gigante de ser livre e viver sua vida, mas escondendo isso na tentativa de controlar a vida dos outros. Mesmo enquanto a sua vida está na beira no precipício. Rodrigo Fagundes, super conhecido por suas atuações em comédias e novelas, sempre no núcleo cômico, aqui tem a belíssima oportunidade de mostrar seu imenso talento em fazer um papel dramático, com todas as nuances disponíveis no texto. E ele aproveita tudo: desde o assoprar de uma colher de pau, brincando se deve ou não provar o strogonoff até a revelação de sua falência pessoal. É dura a vida de quem fica cuidando de parente com doença neurológica. Rodrigo aproveita este personagem para mostrar, mais uma vez, que é brilhante. O quarteto e o conjunto são ótimos.

Segredos de família, histórias que surgem e que não sabemos, sentimentos guardados ao longo de muitos anos, desgostos e invejas. Todos conhecemos alguém que tem, ou mesmo você, caro leitor, deva ter alguma coisa aí guardada contigo. O Formigueiro faz com que a plateia seja aquele vizinho escutando o barraco do lado, olhando pela janela da área de serviço o desenrolar do assunto gritado, sendo cúmplice de tudo aquilo que é dito no palco e apoiando mentalmente ora um, ora outro personagem. E no momento seguinte criticando a ação daquele mesmo personagem que há pouco havia apoiado. Céus! Como somos problemáticos!

O Formigueiro é um exemplo de espetáculo que prende o público, dialoga imediatamente com todos os presentes, reúne uma equipe extremamente competente e apresenta um teatro da melhor qualidade. Imperdível em todos os sentidos. É como se estivéssemos participando de uma terapia coletiva, uma constelação familiar ao vivo e à cores, onde podemos sair do teatro e imediatamente pensar em fazer uma análise de nossa vida familiar e como nos comportamos diante dos parentes.

Corra para o teatro. O Formigueiro chega para se somar à safra de espetáculos de alta qualidade com profundidade, ótimo elenco, equipe criativa competente, texto e direção de grande sabedoria. Aplausos de pé. Viva o teatro!!


domingo, 21 de setembro de 2025

MACBETH LADY MACBETH

“Está nos autos, excelência!”, disse aquele relator do STF para o dissidente colega topetudo ao negar, diante da primeira turma, o óbvio, o documentado e auditável. Houve sim uma tentativa de matar o presidente eleito e o membro do STF. Mandaram até um cabra ficar de tocaia. Mas, na hora H, o putrefato mandatário da nação abortou a missão. Outro exemplo: uma pastora, mãe adotiva de mais de dez crianças, combina com um jovem filho-amante matar o marido para ele assumir o trono de rei da casa. Mataram. Descobriu-se e hoje, a pastora que usava peruca padece numa cela sem maquiagem, sem beleza, sem carinho, sem coberta, num tapete atrás da porta... alias, quase isso. Noticiaram recentemente que a tal está de namoro firme com uma detenta do Talavera Bruce.

Isto posto, tá aí em cima a justificativa para a peça Macbeth Lady Macbeth, em cartaz no Mezanino do SESC Copacabana até dia 05 de outubro. Muitos acham que Shakespeare é um autor do passado, mas ele, visionário, sabe que a humanidade não muda... é a mesma... A peça ainda é atual e fala sobre a banalidade da brutalidade dos dias de hoje. Planeja-se matar um ser humano como quem olha a barata e pensa em pisá-la. Ou se mata um companheiro como quem ataca um mosquito com sua raquete elétrica. 

É assim: “Após retornar vitorioso de uma guerra, o general Macbeth é recebido com a profecia de três bruxas: “Salve, Macbeth, que um dia há de ser rei”. Motivado por essa previsão e em parceria com sua companheira Lady Macbeth, o casal planeja e executa o assassinato do rei Duncan. Macbeth e Lady Macbeth lidam com a realização de seus desejos, mas também com o peso de sentimentos inescapáveis à existência humana.” Esta é a sinopse da peça que assistimos. E tem muito mais aí por trás e vou te contar a seguir.

Quando entramos, os atores estão performando cenas que parecem aleatórias. Movimentos e expressões seguem uma ordem e, ao se repetirem diante da entrada do público, conseguimos saber o que está sendo dito sem dizer. Alegria dela, medo dele, parceria no bater de mãos hi-five em cima. O cenário composto de uma grande mesa e duas cadeiras, é cheio de simbolismo. Sabemos, pelas inúmeras reconstruções de época vistas no cinema, que ali estamos falando de séculos muito passados. Cálices de prata, barro e madeira, frutas verdadeiras e falsas, pratos, folhagens. É lindo o cenário iluminado. Nota-se raízes de plantas nas pernas das mesas, crescidas ao longo do tempo, mostrando a solidez dos reinos, da parceria dos atores, da cumplicidade de Macbeth e sua Lady. O figurino também é bonito e inteligente pois usa materiais modernos para dar vida ao longínquo passado. Destaque para uma capa, um manto, escondido nas costas do ator que é revelado quando Macbeth vira Rei. Ainda sobre a roupa de Macbeth ficou clara a referência da cota de malha medieval. Ambos são assinados por Teresa Abreu. Ótimos.

A luz de Nina Balbi também é muito criativa para um palco cujo teto é baixíssimo! Destaque para os refletores elipsoidais que, sobre uma estrutura escondida com pano preto, iluminam, horizontalmente, toda a mesa no meio do palco, projetando sombras (memórias, fantasmas...) na cortina do fundo. Excelente! 

A trilha de Marcelo H é certeira. Sons, músicas incidentais de tensão, a referência ao filme “A Grande Beleza” na música tocada para o baile oferecido pelos protagonistas “Far L’ Amore” (Bob Sinclar sobre canção original de Raffaella Carrà) – “Aah, a far l'amore cominicia tu” (Aah, a fazer amor comece você), tudo a ver com este casal bandido, assassino e cúmplice!

Miwa Yanagizawa dirige a peça. A sagacidade de usar a intimidade dos atores para os personagens, a cumplicidade, o jeito de falar do dia a dia de ambos, a movimentação... tudo funciona. É durante a peça que notamos que o prólogo, mudo, a performance, nada mais era do que os atores passando a peça no silêncio, uma pré-peça, onde um “cenas dos próximos capítulos” prévio já mostrava para a plateia as marcas e expressões. Ótima também a alternância do texto, ora dito por um ora por outro, o mesmo texto, na carta inicial enviada por Macbeth para sua Lady, o jeito como ele a escreve, o jeito com ela a lê. Também ótima a troca de papeis com mesmo texto no medo do pós-assassinato. Tudo amarrado e pensado. A loucura dos dois, o baile, o romance... Miwa sabe que os atores usam cada vírgula para expressar sentimentos e contar aquela breve história. O coloquial no falar do texto clássico de Shakespeare é o que aproxima o público jovem (somos todos jovens diante do “Bardo de Avon”, apelido dado ao mestre da dramaturgia). Aplausos e mais aplausos.

Cláudia Ventura e Alexandre Dantas, atores da peça. É um deleite vê-los em cena. Tudo que foi escrito acima (perdoem o tamanho...) só é possivel porque os dois são feras, fodas e fantásticos atores. O domínio que têm de si, de sua palavra, de seus sentimentos, de suas expressões faciais e corporais está dito, mostrado, em cena. Tudo é bom. Do olhar cúmplice à piada da masturbação – Macbeth Alexandre masturba sua Lady Cláudia, porém erra o ponto G e acaricia a cadeira... gargalhadas! O carinho de Lady Cláudia quando Macbeth Alexandre se amedronta ao voltar para seu quarto com o punhal ainda sujo de sangue. A proteção de Lady quando seu marido surta na festa... Sou mais que fã e admirador. Sou aluno e aprendiz da dupla. Com esta peça, a sua Cia FaláCia comemora 35 anos de estrada. E muito bem comemorados.

O que vemos não é Macbeth e sua Lady cúmplices. São Cláudia e Alexandre cumplices. Só mesmo um casal que se curte, se admira e embarca na roubada, na aventura e na glória, um casal que tem tamanho lastro e intimidade pode apresentar um espetáculo desta monta, como diria Odette, aquela.

Para finalizar, (UFA!) corram, corram e corram para assistir a este espetáculo. É sensacional por todos os motivos ditos acima. É quando a gente assiste a espetáculos como este que a alegria e a certeza de estar na profissão certa se renova. Excelente. Bravo!


sábado, 20 de setembro de 2025

A PÉROLA NEGRA DO SAMBA

Dia 19 de setembro é o Dia Nacional do Teatro. E, não óbvio, e “quem me conhece sabe”, que o meu lugar favorito no mundo é uma sala de teatro, lá estava eu no Teatro Carlos Gomes, centro do Rio de Janeiro, onde assisti a grandes espetáculos que marcaram minha vida nas plateias, para assistir ao novo musical dirigido e escrito a quatro mãos por Luiz Antonio Pilar e Leonardo Bruno, “A Pérola Negra do Samba”, em homenagem a Jovelina Pérola Negra.

Pilar é um mestre em retratar histórias de grandes artistas, como Candeia, Ataulfo Alves, Leci Brandão, entre outros, não só no teatro, mas também na tv e no cinema. Leonardo Bruno é jornalista especialista em música popular e carnaval. Sem dúvida um encontro de bambas que só podia dar certo.

O musical conta de forma criativa e divertida a história de Jovelina, desde pequena, passando pela juventude até entrar na maior idade onde começa a frequentar rodas de samba e se apaixona pelo pagode. Daí em diante, tem que assistir para saber os mínimos detalhes. É hilária a cena de Jovelina pequena correndo pela casa. Um acerto gigante a criação das personagens Cebola e a Diretora da Gravadora. O roteiro nos faz mergulhar nas canções, emoções e a vida de Jovelina, com sua força de mãe e mulher, seu medo de entrar numa vida de artista e a consagração ainda atual.

O cenário de Lorena Lima é composto de caixotes modernos e coloridos de feira que são muito úteis para o desenrolar da história e formam também um bonito fundo de palco. O figurino de Rute Alvez é ótimo, pois nos remete à vida da cantora, parece ser confortável para o elenco e, além disso, é bem confeccionado. A luz de Daniela Sanches é sempre bonita e aqui temos focos e movings que conduzem a história junto com a direção.

Aplausos de pé para a direção musical de Rodrigo Pirikito e Matheus Camará. Um conjunto de músicos excelente! Além dos dois diretores musicais, temos Daniel Esperança, Wesley Lucas, Pedro Ivo e Thainara Castro em cena. Preparação vocal de Pedro Lima é notada nas vozes perfeitas do elenco.

Pilar também é o diretor e temos neste trabalho uma direção muito minuciosa e caprichada. Percebe-se a partitura da atriz (Fernanda Sabot) fazendo a mãe de Jovelina pedindo ao patrão para trazer a filha para o trabalho, a desenvoltura e imensas possibilidades de Cebola (Thalita Floriano), que hora dialoga com a plateia, ora comanda a banda. Todas as cenas da Diretora da Gravadora são ótimas. O movimento dos caixotes de feira, ora palco, ora queijo, ora esconderijo, a beleza do figurino, a luz mágica, a movimentação e gestuais, tudo está pensado com carinho e aplicado pelo elenco com entrega. Ótimo conjunto e acerto de escolhas. Direção, pra mim, é isto: harmonizar o visual, encaminhar o elenco, ajustar volumes, indicar entonações, fazer a equipe criativa entender a proposta e, mais que apenas executar, deixar todos que trabalham ao seu redor encantados e entregues à sua direção. É isso que sai do palco e chega na plateia. A preparação corporal de Luiza Loroza é percebida nos gestuais e comportamento cênico do elenco.

Thalita Floriano é Cebola de ponta a ponta. Espetacular seu trabalho. Aproveita todas as falas, se diverte, faz a plateia gargalhar e canta muito! Fernanda Sabot é a sensacional Diretora da Gravadora, entre outros personagens, e é a voz afinada que emociona com seu canto forte e emotivo. Thiago Thomé faz de patrão a marido, de apresentador a amigo fiel de Jovelina e canta muito! Thiago sabe que o palco é delas, mas ele pede passagem e se coloca com sabedoria e elegância. Cabe à Verônica Afro Flor o desafio de ser Jovelina Pérola Negra e Afro faz isso com respeito, carinho e emoção. Sua voz forte permite que tenhamos uma homenageada em cena e acreditemos em tudo que ela diz, canta e interpreta. A cena de Jovelina com o namorado/marido/pai dos filhos é linda, bem como Jovelina criança é belíssima. Sem contar nos pagodes inesquecíveis que Afro Flor faz a gente relembrar e agradecer por ter vivido no mundo junto com Jovelina.

A peça começa e nós, público, vamos nos acostumando com aquela história que vai se contando. Vamos entrando na história, a velocidade do texto, a sequencia de músicas, elenco, cenário, luz... quando do palco vemos uma cena que nos faz cair na real: é uma verdade em forma peça de teatro – neste momento a magia está feita. A plateia foi enfeitiçada. Tem duas cenas em que Jovelina é montada diante dos olhos do público. Roupa, peruca, sapato. De menina para mulher. De doméstica para cantora. Ali, aos olhos do público, a magia do teatro acontece. E então... somos todos consumidos pelo espírito do teatro. O teatro é, sem dúvida, o melhor lugar do mundo neste momento.

Dia 19 de setembro, Dia Nacional do Teatro, agora também é o dia de Jovelina Pérola Negra voltar aos palcos cariocas, com seu pagode que não deixa cair, é, é, sem vacilar, sem se exibir, pois ela, Jovelina, elenco, direção, dramaturgia, músicos, equipe criativa, só vieram mostrar o que aprenderam para nós. E saímos todos encantados pelo musical.

Imperdível. Aplausos de pé até as mãos ficarem roxas! Viva o teatro, viva Jovelina Pérola Negra!


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Foi em 2012 quando pisamos em Belo Horizonte com o projeto Lê Pra Mim?, que incentiva a leitura de livros brasileiros. Levamos sempre alunos de escolas públicas e, em BH, realizamos no Museu de Artes e Ofícios. Teuda Bara e Inês Peixoto, divas das artes cênicas, nos deram o prazer e a honra de lerem para as crianças, dentro do Lê Pra Mim?. Como ficamos tão amistosos naquele dia “ines-quecível”,  Sônia de Paula e eu fomos convidados a assistir, dentro do galpão do Grupo Galpão, um ensaio de Teuda em seu monólogo que iria estrear e rodar o país. Me senti um privilegiado, sentado ao lado da equipe do Galpão, para assistir a este ensaio-aula que foi. Sem falar no gigantesco prazer e honra de estar dentro da casa do Grupo Galpão, onde a arte vibra pelas paredes, tetos e estruturas.

O Grupo Galpão costuma convidar diretores para experimentações teatrais que geram – sempre! - grandes sucessos nacionais. Tive o privilégio de assistir a “Romeu e Julieta” de Shakespeare, “Os Gigantes da Montanha” de Luigi Pirandello – ambos dirigidos por Gabriel Vilella (para ver Os Gigantes no Rio, a plateia sentou na escadaria do Monumento aos Pracinhas no Aterro do Flamengo ao ar livre!), “Tio Vânia” dirigido por Yara de Novaes, “Nós” dirigido por Márcio Abreu, “Cabaré Coragem” dirigido por Júlio Maciel, e agora “(Um) Ensaio sobre a cegueira” dirigido por Rodrigo Portella.

Este espaço onde escrevo sobre teatro, me serve como memória do que assisti, gostei e indico para meus 3 leitores assíduos. Posto isso, como diria Odete Roitman, não tenho lastro nem monta para tecer criticas profissionais ao trabalho de ninguém, mas me reservo ao direito de, usando de minha liberdade de expressão, auditável e digital, e sempre dentro das quatro linhas da constituição (entendedores entenderão), opino sobre as peças de teatro que marcam minha vida artística de espectador profissional.

E chego a Saramago, Galpão e Rodrigo Portella. (Um) Ensaio sobre a Cegueira, em cartaz no Rio de Janeiro, no teatro Carlos Gomes, é uma adaptação do livro de José Saramago (que eu li e amo), para o teatro. Já tivemos cinema, mas certamente a adaptação teatral é muito mais rica e forte que o filme. Rodrigo seleciona as partes mais atordoantes do livro, onde os seres humanos são postos à prova o tempo todo, antes, durante e depois de passarem por um surto coletivo de cegueira leitosa branca nos olhos dos personagens. Sem spoiler, leiam Saramago, ou assistam ao filme. Rodrigo Portella faz milagre com muita competência, amor ao livro e, principalmente uma segurança sem tamanho do que apresenta para o público.

Rodrigo Portella também dirige. Senhores. Senhoras. Senhoros... o que assistimos no teatro - no último domingo - é de uma riqueza, beleza, naturalidade, competência, carinho e amor ao teatro, que não se tem como escrever sem usar todo o dicionário de palavras elogiosas. 

É emocionante ver como Rodrigo Portella entende que o Galpão é grupo. Ele inclui a plateia no espetáculo, não casualmente, mas literalmente. Pequena parte do público sobe ao palco para participar das cenas mais marcantes do espetáculo. A cena da volta das mulheres que serviram de moeda de troca por comida – onde todas limpam a que mais sofre – é dessas que ficarão para sempre na memória de quem assiste; a cena imediatamente antes desta, totalmente muda, em que o público fica quase 2 minutos em silêncio, angustiado, compenetrado, assistindo e compartilhando sentimentos; na mistura de narrações com diálogos; no arrumar do cenário vindo do fundo do palco desnudo, enfim... só de escrever, me arrepio. Ao final, a plateia, em convulsão, está toda integrada, conquistada, sequestrada por emoções e questionamentos sobre como os humanos podem passar de “cidadãos de bem” a “demônios da tasmânia”. Uma direção acertada, bem feita, detalhista, inclusiva, competente, ousada e ao mesmo tempo segura e tranquila. A gente sabe o trabalho que dá, mas o que Rodrigo nos mostra, é que tudo foi fácil, rapido e limpo. É impossível ver as dores dos ensaios, pois a alegria, entrega e parceria do Grupo Galpão com a direção é perfeita (não existe outra palavra).

O Grupo Galpão, para mim, é uma das três trupes teatrais que eu mais admiro, respeito, sigo, assisto e sou fã. Todos, absolutamente todos, sabem atuar e como se portar no palco. Não interpretam, eles vivem. Antônio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André / Rodolfo Vaz e Simone Ordones são todos, todos, todos, atores espetaculares. Não tem uma frase dita de maneira errônea, não tem uma entonação diferente do que tem que ser, não tem uma movimentação corporal gratuita. Eles não só sabem o que estão fazendo, como se divertem, são disciplinados, colegas, únicos e fazem com muito amor. É tanto amor no palco entre si, pela profissão que escolheram, pelo público, pelo colega, pelo teatro, pela direção, por Saramago, que a gente sente. Sim, nós, público, sentimos. É energia vibracional vinda do palco. É amor. É teatro.

Cabe citar o cenário de Marcelo Alvarenga, a luz de Rodrigo Marçal com o diretor, o figurino de Gilma Oliveira, os adereços de Rai Bento, o visagismo de Gabriela Domingues, a sensacional Direção Musical de Frederico Puppi e a movimentação dos atores. Toda uma equipe unida e acertada.

É preciso finalizar o texto, mas não consigo parar de pensar na peça que assisti: no final apoteótico onde público e atores saem do Sanatório juntos, nos abraços ao fim da peça, no respeito e carinho com os espectadores, nas lágrimas durante, é tudo sensacional. Tudo.

Me alonguei porque é o Grupo Galpão, é Saramago e é Rodrigo Portella.

Este espetáculo é daqueles em que os deuses do teatro se sentem orgulhosos. É mais que celebração. É amor mesmo. Puro e coletivo. É profissionalismo e arte. Eu só tenho a agradecer por ter assistido, presenciado e vivido esta experiência teatral. Muito, muito, muito obrigado. Aplausos de pé sem fim. Viva o Galpão! Viva o Teatro!


domingo, 10 de agosto de 2025

LAGARTIXA SEM RABO

O livro Marcas de Nascença, da autora Nancy Huston, traduzido por Ilana Heinberg e lançado pela Editora L&PM, no Brasil em 2012, conheci através de uma crônica de Marta Medeiros, em alguma coluna de jornal. O livro conta, através da visão das 4 crianças de uma mesma familia, porém gerações em sequência, (filho, mãe, avó, bisavó), as marcas que situações familiares deixam nos pequenos e como isto impacta em seus comportamentos ao se tornarem adultos. Recomendo a leitura.

O que isto tem a ver com Lagartixa sem Rabo?

Lagartixa sem Rabo é um espetáculo de teatro, escrito por Dora de Assis, com atuações da autora e Dora Freind e dirigido por Gabriel Rochlin, sobre a ótica feminina e infantil de acontecimentos marcantes na vida de uma menina, que se torna adolescente ao longo da peça, e cujas marcas, culpas e frustrações moldam a sua personalidade, comportamentos, decepções e medos.

Juntando o livro à peça, sabemos pelo release que a peça tem por base um livro e, nas duas citações acima, a visão da criança é a base da escrita, da encenação.

Lagartixa sem Rabo, em cartaz no Teatro Gláucio Gil, em Copacabana, tem um texto belíssimo e delicioso de se escutar. Cheio de belas metáforas, combinações de palavras inovadoras e frases pensadas, texto que dá gosto de ver sendo dito pelas atrizes. Foge do lugar comum. Não é a poesia barata e dificil de entender, é um poema em prosa, com colorização, com comparativos que só mesmo a língua portuguesa pode promover. É uma pena que minha memória não consiga registrar várias frases para reproduzir aqui. Mas, indo ao teatro, você há de concordar comigo depois.

A cenografia e figurino de Julia Moraes, que também assina a assistência de direção, merece ser esmiuçados. Figurino primeiro: linha é a base. Além dos bodies das atrizes, com meia calça lembrando cobra (lagartixa), uma touca com gigante rabo nos traz para a cena a pele e a referência. Belíssimo. 

O cenário composto de uma imensa manta sobre um pequeno praticável que é elevado ao fundo formando uma parede, um banco suspenso e uma gigante corda branca grossa cheia nós que vem do teto e deita no banco, temos ainda como objeto dois novelos de linha que são usados pelas atrizes para tecer prosa com a plateia. A grossa corda branca se transforma, no imaginário, pela ação da direção, em um tubo que mantém vivo o avô da protagonista. Sem spoiler, a mesma corda vira uma corrente arrastada, aquela corrente da culpa. Os nós da corda são desatados pela protagonista quando dialoga em pensamentos altos e com a plateia. Lindo! Os novelos são a linha da vida. A novela que se desenrola do princípio até a conclusão da trama. É ótimo também usar a manta como um paredão, onde aparecem, atrás e em cima, as duas primas – interpretadas pela mesma atriz - que são reconhecidas, uma a uma, pela simples troca de posição do rabo do figurino. Colocando as primas nesta posição, elas se tornam altas, maiores que a menina, que é a importância que a protagonista dá para a opinião das parentas.

Clarice Sauma cria uma luz muito bonita e que nos faz acreditar naquela cena que assistimos, dando mais elementos para construirmos mentalmente o que o texto conta. Frederico Santiago é o criador da ótima trilha sonora, que se junta a todos os elementos técnicos com competência e qualidade. Enfim, figurino, cenário, luz e som perfeitamente entrosados e pensados nos mínimos detalhes.

Dora e Dora são as atrizes da peça. Interpretando a mesma personagem, Lila, única protagonista, possuem uma gigante simbiose no palco. Amigas de longa data, confundidas por suas similaridades físicas, Dora e Dora se entregam generosamente uma à outra e à personagem sem medo. Dora Freind nos tira risos ao imitar o irmão bebê mais novo e na cena do mágico na festa infantil. Dora de Assis brilha ao interpretar as duas primas e nos momentos com o avô. Tem muito mais cenas lidas das duas, mas deixo você, leitor, virar espectador e ficará certamente de boca aberta com essas duas gigantes.

Gabriel Rochlin é o diretor deste espetáculo tocante, bonito, profundo e atual. Suas marcas (de nascença? de cena?) permitem às atrizes brincarem e encararem os dramas da pequena menina que comete um ato que a faz carregar uma culpa por muito tempo e da adolescente cheia de dúvidas. Gabriel explora a palavra dita e o que o corpo diz com seus movimentos. É uma direção pensada, como disse antes, nos mínimos detalhes. É bem ensaiado, coreografado, com união total da equipe. Gabriel sabe muito bem o que quer fazer e dizer com a peça. Assim, todos brilham. Vemos o conjunto unido para contar a história. Gargalhadas para a cena da personagem ensaiando Nelson Rodrigues com o diretor fictício cortando 90% das falas. Excelente.

A protagonista tem o hábito de cortar os rabos das lagartixas como diversão, passatempo ou até momento de fuga, onde tenta se livrar de alguma dor, passando-a para o animal indefeso. Alguém abaixo dela, alguém que não irá reclamar, algo que ela possa se sentir deusa e superior. Essa também é uma das culpas que carrega ao longo de toda a peça. Brilhantemente, no final, uma frase dita pela mãe a faz compreender muitas dessas suas culpas carregadas e se livrar de algumas. A peça faz um fechamento com o início, ligando pontos, arrumando perguntas futuras, amansando as dores.

A produção é de Ellen Miranda e Laura Picorelli e a arte gráfica é obra de Luiza Vaz. Parabéns!

Lagartixa sem Rabo merece ser visto por todos que lerem este texto ou tiverem contato com a divulgação da peça, feita por Catharina Rocha. É sobre todos nós, crianças adultas, carregadores de medos e frustrações, que serão resolvidos, ou não, ao longo do passar dos anos. Aplausos de pé com gritos de “Bravo!”. Viva o teatro, viva a nova dramaturgia brasileira!


domingo, 27 de julho de 2025

TEMPO QUE EXISTE EM MIM

O mais comum é acharmos que Tempo é uma sucessão de momentos que se movem do passado para o futuro, onde acumulamos experiência e modelamos a realidade em que vivemos. Kant vê o Tempo como “uma forma da intuição, uma estrutura mental que nos permite organizar as experiências e perceber a sucessão de eventos”. Platão concebia o Tempo como “um reflexo imperfeito do mundo das ideias, onde tudo é imutável e eterno”.  Aristóteles, por outro lado, via o tempo como “a medida do movimento, ligado à sucessão de eventos e à relação de ‘antes’ e ‘depois’". (Obrigado, Chat GPT! Sem estas informações não saberia como começar a escrever estes pensamentos!)

Quanto tempo temos? A frase é dúbia. Quanto de tempo há em mim e quanto de tempo ainda me resta? Do que acumulei, o que tenho é mais positivo? Do que me resta, quanto será benéfico? Procuro deixar para a humanidade coisas que, no futuro, possam utilizar à vontade. Por isto escrevo livros, blog, peças, produzo teatro, shows e exposições, registrando o agora para uso-fruto de quem virá depois e para quem passa o Tempo comigo.

Claudia Mauro se apossou de seu Tempo e escreveu a peça TEMPO QUE EXISTE EM MIM, contando (falar e somar) e relembrando (memorizar e registar) um pouco de sua história, de forma divertida e reflexiva. Com muito humor, ao falar de seu corpo, nas formas dos músculos, na comparação com uma geladeira; com nostalgia ao pinçar memórias de infância com músicas e sons, ao trazer a família para o palco, a irmã, a mãe, o marido. Tudo junto e misturado, oferecendo ao público uma dramaturgia, relevante e necessária, para dizer aos seus contemporâneos: olha, sou humana, somos assim, o relógio marca, mas aqui dentro tudo parece igual.

No palco livre de cenário, um limbo, um espaço-tempo entre a vida terrena e o paraíso, Claudia Mauro canta, dança e representa, mostrando que é uma atriz das melhores que temos nos tempos atuais. Mesmo não precisando provar nada pra ninguém (talvez para si mesma?), TEMPO QUE EXISTE EM MIM prova para Claudia, e confirma para o público, a sua inteligência - cênica e pessoal -, humor e beleza. Sua tão citada ansiedade é controlada e Claudia não atropela as palavras e nem come os finais das frases, longe disto. Claudia é articulada (em sua forma de falar e em sua carreira), tem total domínio de si, de sua arte e do que pode deixar de legado, registro de seu momento atual, uma belíssima menina-mulher de 50 anos, onde fazemos – todos, até eu faço – um balanço do que fomos, o que deixamos e o que esperamos do que falta viver.

O espaço vazio, caixa preta, me lembrou Stranger Things (o seriado). Quando a personagem Onze (Eleven) está desacordada ou em momentos de grande esforço mental, ela frequentemente aparece em um "vazio" ou "mundo" totalmente preto, também conhecido como "espaço mental". Nesse espaço, ela acessa memórias, manipula objetos com seus poderes telecinéticos e se comunica com outras pessoas. É neste local que se passa a peça. (Gostei da aliteração “passapeça”!). Claudia, neste espaço-tempo, também se comunica e manipula o Tempo como um objeto.

A luz de Paulo Cesar Medeiros gira os refletores no sentido horário dos ponteiros do relógio analógico de um mundo digital, onde a atriz avança e volta na linha da vida, ilumina do fundo (contraluz) deixando a silhueta de Claudia Mauro valorizada. Sombras na parede, que aumentam e diminuem, fazem com que imaginemos os tempos que Claudia viveu na infância e as marcas que a vida lhe dá atualmente.

A direção de Alice Borges e Rogério Fanju é rígida no sentido do ritmo da peça. Os diretores não deixam espaço para que o publico se movimente na cadeira! É tudo cronometrado. A forma de Claudia falar, o gestual, a movimentação (olha Édio Nunes e Lucinha Machado aí na dança e no samba!), a sensível trilha sonora de Marcelo H, e o figurino de Georgia Guimarães estão unidos aos desejos da direção e da protagonista. A direção acerta ao evitar o Stand-Up Comedy e trazer o texto para teatro verdadeiro, com princípio, meio e fim, narrativa, pausas dançantes, história de vida que leva a plateia à identificação imediata.

O publico ri de Claudia, ri de si, ri sozinho, ri de nervoso, ri de identificação, ri de ansiedade e, por fim, um abraço coletivo, nos aplausos, riem juntos da vida, zombam juntos do tempo que existe em todos nós.

Que nome se daria para uma peça com apenas “Texto, atuação, iluminação e direção”? Seria a versão “Um banquinho e um violão” que tem na música brasileira? Cartas para a redação. É disto que se trata TEMPO QUE RESTA EM MIM: texto, atuação, iluminação e direção (incluindo aí coreografias, trilha sonora e figurino) muito bem executados. Um espetáculo sensível, divertido, com conteúdo e muito amor próprio.

TEMPO QUE EXISTE EM MIM está em cartaz no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim apenas por mais uma sexta-feira, mas, um passarinho me contou que em breve pousará em outro palco carioca. Corra na proxima sexta-feira para assistir à peça. E me agradeça depois! Aplausos de pé.


sábado, 26 de julho de 2025

TAKOTSUBO CORAÇÃO PARTIDO


Músicas, livros, filmes e peças de teatro são canais importantíssimos para escoamento de histórias pessoais. Imagina se todo mundo contasse um pouco de si, um pedacinho da sua vida, em uma dessas formas artísticas? Certamente teríamos muita arte para debater. Além disso, os consultórios de psicologia teriam material inesgotável para partilhar com seus clientes; histórias similares que servem como exemplos, insights, referências, para que se possa amenizar uma dor, fortalecer uma ideia, indicar um caminho a ser seguido. Sabemos que a criança aprende pelo exemplo. Adultos também, basta acertar a narrativa.

Tenho assistido nas últimas 2 semanas a espetáculos teatrais de grande qualidade, o que mostra que a pandemia foi uma primeira peneira e agora, nesta fase de escassez de patrocínios, uma segunda peneira está trazendo para os palcos – pelo menos os cariocas – histórias que importam, com excelentes atores, dramaturgos, diretores e equipe pra lá de criativa, porém concisa.

Está em cartaz por curtíssimo tempo na Sala Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim, o famoso Porão, o espetáculo TAKOTSUBO CORAÇÃO PARTIDO. Fui ao Chat GPT saber a origem e o significado da palavra. Diz “ele” que “A Síndrome de Takotsubo (...) ou síndrome do coração partido, é uma condição cardíaca temporária que ocorre em resposta a estresse físico ou emocional intenso. O nome ‘Takotsubo’ vem de uma armadilha japonesa para polvos, pois o formato do coração durante a síndrome se assemelha a essa armadilha." 

O texto, escrito por Mônica Guimarães e Cláudia Mauro, é ágil, eficiente e apresenta uma história com princípio, meio e fim, que leva a plateia a ficar ligada nos acontecimentos. Tudo se passa muito rapido, em apenas 50 minutos de peça, mas o que está sendo dito, e que foi escrito, é o necessário para se formular o proposito da peça em questão: alertar, informar, contemplar e comemorar a vida. 

A peça é um relato pessoal passado a limpo e em velocidade máxima diante dos olhos do público. A qualidade do texto merece ser destacada, justamente pelo pouco que é dito, as frases escolhidas são o que marca a vida da protagonista. Palavras de afeto, acolhimento, carinho, amizade, agressão, raiva, humilhação, conservadorismo e liberdade conduzem a história de uma mulher atual que sofre, ora calada, ora revoltada, diante de homens e mulheres que tentam conduzir a sua vida para o caminho que eles desejam, criticando as escolhas, a liberdade e atitudes de uma mulher que só quer ser feliz.

Édio Nunes e Larissa Bracher, diretores de peça, optam por dar importância a cada cena, tanto um pequeno momento de reflexão da protagonista sentada em uma cadeira, quanto a cena da mesma cadeira usada como barreira contra o agressor. Os diretores não medem esforços para gastar a emoção dos atores trazendo a verdade cênica para o teatro. Conduzem o elenco a contar a história para a plateia - sentada praticamente dentro o palco – e, com isto, fazem, de todos, cumplices e parceiros da narrativa. Destaque para o uso de todo o espaço cênico disponível e as cenas fortes de agressão e romantismo, equilibradas sem exageros, permitindo aos atores extravasar sensações e passar verdade no que fazem.

A cenografia de Wanderley Gomes é o necessário, com destaque para o altar do budismo – Butsudan – fazendo com que, simbolicamente, as pequenas portas se abram em momentos importantes da história, como caminhos a serem seguidos, emoções sendo libertadas, liberdade almejada, paz e conforto. Temos ainda a cadeira “que tudo vê e ouve” e a área cênica branca que ajuda a iluminação. É dele também o figurino, a opção pelo vermelho sangue da protagonista, uma mulher vibrante, sangue forte, já informa que, antes da primeira palavra, ali tem algo que extravasa a pele. O figurino masculino é neutro, justamente para servir ao amigo, marido, pai, médico, se encaixando em todos os personagens.

Elogios à trilha ótima de Marcelo H, que dá vontade de sair dançando com a protagonista na festa; à luz de Paulo Cesar Medeiros, que faz milagre no micro-teatro, usando vermelho e azul para momentos de tensão e paz; e à direção de movimento de Toni Rodrigues que ajusta o andar, a dança, o enfrentamento, o recolhimento dos atores.

Guilherme Dellorto é o ator que faz o amigo, o pai, o marido, o médico e conseguimos diferenciar cada um dos personagens com sua voz e gestuais. Guilherme sabe que é o coadjuvante, mas que seus personagens são fundamentais para a história contada.

Monica Guimarães é a idealizadora, escreveu o texto e a protagonista. Com uma peça baseada em seus próprios fatos reais, não pense que Monica está em zona de conforto por isto. Pelo contrário, se coloca como atriz vivendo um personagem e defendendo sua cria. A história daquela mulher que sofreu tanto a ponto de seu coração chegar a “se partir” de tanto desgosto, embora sua, nos faz acreditar que Monica está dando vida a uma outra Monica, que não ela, porém sendo ela... confuso? Explico. Fernando Pessoa diz: “O poeta é um fingidor... Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” É isso que Monica faz. Monica é uma poeta-atriz. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que realmente sente. Pois a história contada no palco, é sua, pessoal e intransferível.

É mais que louvável ver um espetáculo que trata uma religião, o budismo, como caminho para autoconhecimento, fortalecimento e calmaria, sem ser panfletária. Não é uma peça que prega o “junte-se a nós, pois salvaremos a sua vida”, mas sim “olha, eu fiz este caminho e o resultado me salvou. Decida se te serve.” 

Temos nesta peça um alerta: não aceite menos do que você merece, não guarde para si as pauladas da vida. Reaja! Fale! Seja cada vez mais dono, dona, de si. TAKOTSUBO cumpre seu papel de mostrar uma história verdadeira de superação, enfrentamento, crença, verdade e, acima de tudo, amor.

Viva o Teatro, seja ele num porão em Ipanema ou no anfiteatro romano, o que importa é a forma como se contar uma história. E TAKOTSUBO cumpre com louvor seus objetivos. Aplausos de pé.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

DJAVAN O MUSICAL - VIDAS PRA CONTAR


É, farrétempo que cá não venho... não tenho muitas explicações. A vida é feita de ciclos. Também farrétempo que não escrevo mais histórias de humor, que me renderam 4 livros de contos... tenho sentido saudade de mim escritor... quem sabe ele volta! Por hora, voltei aqui para registrar um musical que nos lembra do Brasil que amamos. Aquele que ficou ali atrás, antes das redes sociais, da politica agressiva, das brigas familiares, da vida binária que nos colocaram: eles e nós. Djavan completou 75 anos em 2024. Todas as comemorações pela data serão poucas.

Está em cartaz no Teatro Multiplan, até 20 de julho, o musical em homenagem e registro da obra do gigante artista: DJAVAN, O MUSICAL: VIDAS PRA CONTAR.

Temos ali o que interessa sobre o artista: amores, filhos, família, amigos e canções. E, obviamente, os colegas de profissão que cantaram e estiveram presentes – e ainda estão! – na trajetória do cantor. De Gal a Bethânia, de Steave Wonder a Caetano, de João Araújo a Chico Buarque. Sem as surras de datas que cansam a plateia (ufa!), o espetáculo apenas cita as mais importantes e conta as vidas que o público quer assistir.

A dramaturgia está em cada cena: na abertura, com as bandeirinhas virando varal, na história do irmão preocupado com o artista “que não vai dar em nada”, a mãe que traz a música desde a infância, a criança interior que não acredita que um Roberto Carlos possa cantar sua música, a importância das raízes e referências. Tudo está sob medida. Mérito de Patrícia Andrade e Rodrigo França.

No palco, temos o cenário de André Cortez, trazendo elementos que auxiliam a direção: portas-janelas que se abrem dando movimento ao espetáculo e os bancos-bandeirinhas de festa junina. A luz, de Daniela Sanches, casa perfeitamente com o cenário trazendo vida, cor e andamento nas músicas. O figurino de Karen Brusttolin é aquela riqueza e beleza de sempre. 

Destaque para a impecável direção musical de Fernando Nunes e João Viana (filho de Djavan), que apresentam as composições do cantor no exato tom e andamento que a plateia ama cantar! Jules Vandystadt assina os arranjos e a ótima harmonia vocal do elenco. Os músicos são Ale Matias, Diego Cordeiro, Multi, Pedro Silveira e Pitito. Perfeitos!

Cantei 99% das músicas. Sina, Samurai, Azul, Fato Consumado, Açaí, Oceano, Lilás, Flor de Lis... “Capim do vale, vara de goiabeira, na beira do rio, paro para me benzer...” (Capim) é uma das minhas favoritas e deixaram pro segundo ato e eu já tava em cólicas!!

O elenco competente e afinado é composto por Aline Deluna (Maria Bethânia), Alexandre Mitre – Djacyr (irmão Djavan), Eline Porto – Aparecida (1ª esposa de Djavan, super carismática!), Ester Freitas – Djanira (irmã Djavan e que canta The Shadow Of Your Smile que é uma beleza!!!), Erika Affonso (Alcione), Gab Lara (Chico Buarque e João Araújo), Walerie Gondim (Gal Costa, levando a plateia ao delírio pela semelhança, e Rafaella - esposa de Djavan), Tom Karabachian (Caetano Veloso).

Mas é preciso destacar:

Marcela Rodrigues, como Dona Virgínia (mãe Djavan), que traz uma emoção além da conta. É uma sensação de mãe de todos, mãe do ator que faz o Djavan, mãe do elenco em cena, a sua voz, sua presença nos faz querer abraçá-la ao término de cada número em que canta. 

Milton Filho – Elegbara – é aquele ator que nos faz entrar em cena com ele. Milton é sempre a nossa voz no palco. Seu personagem conduz, induz, acalenta, orienta e apoia Djavan. Canta, dança e representa!

Raphael Elias – Djavan – é gêmeo em voz, gestos e atuação do Djavan! É como se Raphael vivesse em um mundo paralelo, outra dimensão, em que ele é o proprio Djavan. Carisma, talento e amor à arte é o que recebemos na plateia. Obrigado por sua entrega...

João Fonseca é o maestro-diretor deste musical. São incontáveis os espetáculos que já assisti dirigidos por ele e sua forma de encaminhar um musical, usando de humor, emoção, foco e organização do todo ainda me impressionam muito. João de Tim Maia, de Cassia Eller, de Cazuza, escreve também sua história dentro das histórias dos artistas que ele faz homenagem. João sabe a hora de rir e deixar as lagrimas descerem. A cena da partida da mãe é uma beleza cênica e emotiva. As três cantoras de Jazz, o humor dos telefonemas, as ordens das músicas, o vazio do palco que agiganta o artista... João está afinado e cada vez mais competente. A coreografia e direção de movimento de Marcia Rubin é um casamento mágico com a direção. Ótimo!

A produção da Turbilhão de Ideias, do Gustavo Nunes, é a responsável por trazer o melhor da MPB em musicais biográficos. Gustavo está escrevendo na história do teatro um conceito de espetáculo além do entretenimento. É soma de música, cultura, qualidade, emoção e memória. É a reunião de “vermelhos e azuis”, de famílias brigadas, de lados que não se falam, mas cantam juntos a música. É um registro do Brasil que amamos e nascemos nele, século passado.

Sai renovado, lavado (lágrimas em litros) e muito feliz! Aplausos de pé são poucos. Aplausos até a mão ficar vermelha. Viva Djavan, viva o teatro!!